Fogo na Dor: o #8M e os temerários perigos da história única

Foi em fevereiro que pipocou na minha timelaje o chamado para uma Greve Internacional de Mulheres no dia 08 de março de 2017. As autoras, dentre as quais se incluem Angela Davis, Nancy Fraser e Tithi Bhattacharya, provocavam-nos a manter acesa a onda de protestos observada nas marchas de mulheres contra Trump, em 21 de janeiro nos EUA.

Autoras Greve Internacional #8M

Intelectuais Feministas autoras do Manifesto à Greve Internacional das Mulheres.

No documento, as ativistas conclamavam mulheres a lutarem por um feminismo que represente 99% das pessoas, revisando erros e acertos e focando na importância de uma agenda expandida – anti-racista, anti-imperialista, anti-heterossexista e anti-neoliberal – para os movimentos com este recorte. Por aqui, feministas negras do naipe de Deise Benedito e Lúcia Xavier aderiram à mobilização, compartilhando reflexões e propondo ações ligadas ao cenário brasileiro nas redes sociais. A rápida adesão por milhões de mulheres confirmou a impossibilidade crescente de separar o mundo e o ativismo em “real” e “virtual”. Afinal, em um país de maioria feminina, campeão em índices de feminicídio, trabalho doméstico e lesbobitransfobia, o que pode ser mais real do que conclamar as mulheres para irem às ruas lutarem por direitos trabalhistas, de saúde e segurança?

O fato é que este cenário de mobilização é alimentado porque sentimos na pele que nossas conquistas enquanto mulheres estão cotidianamente ameaçadas por políticas conservadoras, elaboradas por um patriarcado do século XXI, no qual o lar, os filhos e o orçamento doméstico definem, sem parcimônia, o “ser mulher”. Se não por acaso o conclame ao #8M, é assinado majoritariamente por mulheres “de cor” (women of color) no Brasil é preciso sempre lembrar que esse violento processo de biologização e hierarquização dos gêneros repercute de forma incisiva na vida das mulheres negras  em todos os campos.

Esse impacto confirma a importância de identificar os eixos de opressão que se articulam, como defendeu Kimberlé Crenshaw, ao criar nos anos 1990, o conceito de interseccionalidade. Trata-se de categoria central para compreender que classe é definida pelas experiências de raça, raça pelas experiências de gênero, gênero pelas experiências de sexualidade e assim sucessivamente. Nessa lógica, percebemos que a ausência de Mulheres Negras nos centros e notas de rodapé é prática corriqueira na academia, como narrado em “De mãos dadas com minha irmã: solidariedade feminista”, texto de bell hooks que nos ajuda a compreender a falta de nexo no modo de pautar o Racismo Estrutural, para dar um exemplo “à brasileira”.

Como as histórias não são únicas este 08 de março foi palco de uma conquista significativa. Na batalha por representatividade na mídia, tivemos Taís Araújo estreando no programa Saia Justa e narrando na primeira pessoa o Brasil brasileiro da falsa democracia racial que mata 23 jovens negros por minuto.

Tais Araújo - Saia Justa

A atriz e apresentadora Taís Araújo.

A fala da atriz, sintonizada com as agendas dos movimentos negros e feministas, no Canal GloboSat GNT, representa uma vitória para Mulheres Negras como a designer gráfica Maria Julia Ferreira, autora da campanha GNT Se Você Não Me Vê Eu Não Vejo Você!!!, de 2013.

Maria Julia Ferreira - GNT

A auto narrativa de Taís assim como as intervenções altamente qualificadas de Djamila Ribeiro em sua participação no Programa Estúdio I dedicado ao Dia Internacional da Mulher confirmam também a importância da luta por estarmos em todos os lugares. A inteligência que nos faz caminhar das margens para o centro, apropriando-nos das contradições e produzindo saberes em nome do fortalecimento da comunidade negra e de nossas pautas.

#8M - Dja Ribeiro

A filósofa e intelectual pública Djamila Ribeiro.

Nessa caminhada destaca-se o direito ao bem viver, reivindicado pela Marcha das Mulheres Negras e por ativistas como Dona Debora Silva, do Movimento das Mães de Maio. Direito este diariamente aniquilado como demonstra a triste história de João Victor de Souza de Carvalho, mais um de nossos meninos brutalmente impedido de ser humano aos 13 anos.João Victor de Souza

Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

Para seguirmos todos os dias pensando e praticando o #8M de forma interseccional e condizente com a realidade brasileira, também destacamos a criatividade e a força da psicóloga da UFRJ Luciene Lacerda, feminista negra idealizadora da Campanha 21 dias de Ativismo contra o Racismo. Abraçado por ativistas negros (e brancos) de diferentes áreas, o movimento realiza durante o mês de março centenas de atividades relacionadas à luta contra o racismo no Rio de Janeiro, na Baixada Fluminense e em Macaé.

#8M-21dias

A luta por existir e reexistir como insistimos atinge de forma específica mulheres negras, conforme comprovam os dados do IPEA no estudo Retrato das desigualdades. Lançada no último 06 de março, a pesquisa reúne dados sobre trabalho, família e escolaridade entre mulheres no país entre 1995 e 2015 e também foi lembrada no instigante texto da jornalista Luciana Barreto, que conecta rostos e vozes de intelectuais negras como Mônica Lima e Nathália Braga em celebração à nossa ancestralidade.

#8M - Luciana Barreto

Luciana Barreto, jornalista da TV Brasil

#8M - Luciene Lacerda

Na boa companhia de Luciene Lacerda, idealizadora da Campanha 21 Dias de Ativismo  Contra o Racismo. Foto: Daniele Grazinoli.

No meu mural do “Dia sem Mulher”, tem lugar cativo o texto “Calar é preciso” da jornalista Flávia Oliveira, propositalmente publicado no after day. Flavia, nossa intelectual negra que  em breve estreia como apresentadora do TED – Compartilhando Ideias, no Canal Futura, tacou fogo na dor narrando em números e reflexões densas a vulnerabilidade a que estão sujeitas às mulheres brasileiras dentro da combinação reforma política e restrição orçamentária. Tem assento permanente também mulheres como Dona Débora Silva, que carregam a sabedoria de transformar morte em vida frente ao genocídio da população negra.#8M - Flavia Oliveira

Flávia Oliveira, colunista do jornal O Globo

#8M - Mães de Maio

Dona Débora Silva, ativista do Movimento Mães de Maio.

Se na luta por sermos visíveis e respeitadas, Chimamanda Adichie ensinou-nos que muitas histórias importam, é hora dela própria repensar que as muitas mulheridades também importam. Nesse sentido, é o momento de todas Nós lutarmos em busca de um sol amarelo no qual o direito às identidades de gênero brilhe para além do pênis e da vagina. Essa travessia é oposta à trilhada por feminismos dito “radicais” que naturalizam a história única, biologizando experiências de gênero e distorcendo o sentido político de  radicalidade, originário da insurgência política negra nas lutas pela liberdade.

E por falar nas muitas histórias que verdadeiramente nos importam, encerramos o texto com o registro da banca de defesa de monografia da estudante Isadora dos Santos Nascimento. Após cumprir os ritos acadêmicos com toda a competência e sensibilidade herdada de nossas ancestrais, a jovem publicou malandramente em seu Instagram: #vaiterpretapedagoga.

#8M - Isadora Nascimento

A pedagoga Isadora dos Santos Nascimento comigo, a Profa. Dra. Núbia Oliveira e o Prof. Dr. Sergio Luiz Baptista na cerimônia defesa da monografia intitulada Relações étnico-raciais nos manuais didáticos de História do 4 e do 5 ano dos anos iniciais do Ensino Fundamental: análise das imagens da população negra na Faculdade de Educação da UFRJ.

No 08 de Março e sempre UM SALVE a Isadora, à Dona Débora e a todas as Mulheres Negras do Brasil e do mundo por lutarmos de múltiplas formas pelo direito de existir e reexistir.

Axé!

#8M - Mulheres Negras

Feministas Negras na Greve Internacional das Mulheres, 08 de março no Rio de Janeiro.

 

 

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