Arquivo do autor:Giovana Xavier

Sobre Giovana Xavier

Historiadora, professora UFRJ, teórica feminista negra.

Estátuas, inadequações e o poder das alternativas

Uma garotinha passava com a mãe diante da estátua de um europeu que havia dominado um leão feroz com as próprias mãos. A garotinha parou, olhou-a intrigada e perguntou: “Mamãe tem uma coisa errada com essa estátua. Todo mundo sabe que um homem não consegue ser mais forte que um leão”. “Mas querida”, respondeu a mãe, “não se esqueça de que quem fez a estátua foi o homem”.

(Karl Mannheim, Ideologia e Utopia Apud Patricia Hill Collins, Pensamento Feminista Negro, 2019, p. 402).

Ando em uma fase de muitas mudanças internas, que também têm repercutido nas minhas identidades e projetos profissionais. Dei-me conta disso em março de 2020, quando profundamente angustiada, com mais perguntas do que respostas, decidi pausar o ativismo intelectual nas redes sociais. Esse período coincidiu com a chegada da pandemia racial global COVID 19 ao Rio de Janeiro, culminando em políticas emergenciais de isolamento social. Ressignificado como recolhimento, o estar em casa, focada inteiramente na família, no trabalho doméstico e na produção acadêmica individual tem me suscitado reflexões densas sobre rupturas e conquistas oriundas de concepções sobre ativismo, ciência e política.

Dentro desse contexto de revolução pessoal, acontecimentos do último mês e suas repercussões em meios acadêmicos, ativistas e midiáticos levaram-me a pensar sobre a “inadequação” entre a formação recebida como historiadora social e os projetos acadêmicos de ativismo científico que conduzo na UFRJ. Resumidos aqui em dois: O Grupo Intelectuais Negras e o Programa de Educação Tutorial Conexões de Saberes Diversidade. Assim, a ideia do texto é comentar algumas das referidas reflexões dentro do contexto de ebulição política nacional e internacional em que se inserem. Para isso, fundamento-me nos debates de Patricia Hill Collins (2019) sobre a importância de intelectuais negras construírem “epistemologias alternativas” no meio científico:

Percebi que minha formação como cientista social era inadequada para a tarefa de estudar o conhecimento subjugado do ponto de vista das mulheres negras. Isso porque os grupos subordinados perceberam há muito tempo que é necessário recorrer a formas alternativa para criar autodefinições e autoavaliações independentes, rearticulando-as por meio de nossos próprios especialistas. Como outros grupos subordinados, as afro-americanas não apenas desenvolveram um ponto de vista específico das mulheres negras, mas usaram formas alternativas de produzir e validar o conhecimento para isso.

O assassinato de George Floyd, as manifestações e os atos políticos de derrubada de estátuas de um traficante de escravizados na Inglaterra e de um general confederado nos EUA tiveram grande repercussão no Brasil. Com uma série de autoavaliações sobre o valor e o lugar do trabalho intelectual de mulheres negras, recusei a chuva de convites da mídia e de organizações sociais para debater a temática. Estes nãos foram importantes para observar à distância as situações, pensando – na pausa – sobre meus incômodos diante da divisão entre contrários e favoráveis a ir às ruas protestar, a derrubar ou não estátuas. Penso que a construção do debate público focado na polarização dificulta, especialmente, que os “grupos subalternizados” dialoguem sobre “formas alternativas de produzir e validar conhecimentos” para avançarmos em nossas pautas.

Como professora, uma das coisas mais potentes que observo em sala de aula é quando estudantes tomam posse da autoria, da criação. Um processo que demanda o estudo, a observação e a criatividade que ser contrário ou favorável não suscita. Lembro-me, por exemplo, das dificuldades nas orientações de pós-graduação quando chega o momento da escrita de monografias e dissertações. Em geral, estudantes sentem-se “paralisadas”, “perdidas”, “desesperadas”, para usar alguns dos adjetivos que me chegam em relatos de dor e sofrimento característicos dos processos de se tornar autora. Estes sentimentos relacionam-se ao pressuposto de objetificação feminina negra e também à naturalização das divisões e polaridades como única possibilidade de definir posições e lugares de fala. Considerando tanto o meio universitário como outros espaços, já repararam que raríssimas vezes pessoas com poder – cultural, político, econômico – perguntam sobre ou colaboram para viabilizar as alternativas de “grupos subalternizados” ?

Aqui entramos em um segundo nível do raciocínio. Uma vez que as “propostas alternativas” são reduzidas quem as apresenta passa a ser tratado como problema, o que no espaço acadêmico significa desqualificação da produção, preterimento de recursos de financiamento e da participação em espaços decisórios, entre outras situações que também foram enfrentadas por Azoilda Loretto da Trindade (10/12/1957-13/09/2015), Beatriz Nascimento (17/07/1942-28/01/1995), Lélia Gonzalez (01/02/1935-10/07/1994), entre muitas outras. Considero que é tempo de mudar a direção de nossos holofotes, diaogando mais sobre alternativas ao racismo, que está bastante longe de ser superado, do que confinando-nos à posição de rebate-lo. Por experiência própria, a energia gasta em debates entre contrários e favoráveis é tão intensa que, dificilmente, depois conseguem-se criar “alternativas”. Assim, ciente do impacto de meu trabalho intelectual entre universitárixs negrxs, chamo a atenção para o investimento pessoal necessário à formação individual. Isso demanda autoconhecimento e coragem para girar a chave interna do denunciante ao criador de projetos políticos “alternativos”, verdadeiramente centrados nos conhecimentos das classes trabalhadoras.

No Brasil, o Feminismo Negro Radical é nossa principal “alternativa” hoje. Ele é teorizado e praticado por intelectuais negras como Lúcia Xavier, Mônica Cunha e as sessenta e cinco ativistas assim como eu apoiadas como “líderes” pelo Programa de Aceleração e Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras Marielle Franco do Fundo Baobá para Equidade Racial . Ativistas que ao definirem de formas plurais o sujeito político mulher negra oferecem projetos inovadores para construção de “alternativas” em áreas como comunicação, educação, direitos humanos, finanças, política institucional, saúde. Dito tudo isso, entro na terceira e última parte do texto, relacionada a contextualizações históricas que considero importantes para as lutas do tempo presente.

A primeira relaciona-se à absurda revogação da portaria normativa nº 13 de 2016 que dispõe sobre a indução de ações afirmativas na pós-graduação das universidades federais. Assim como a Lei 10.639/03, que tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana nas instituições de ensino foi uma conquista sobremaneira ligada ao trabalho de professores da educação básica e ativistas dos movimentos sociais negros (majoritariamente mulheres negras), a implantação das ações afirmativas em programas de pós só deve-se muito ao intenso ativismo intelectual da comunidade estudantil. Em diferentes universidades brasileiras, de forma independente e através da Associação Nacional de Pós-Graduandos, mestrandos e doutorandos participaram de comissões e colegiados universitários, integraram grupos de trabalho, realizaram pesquisas, produziram documentos, mapeamentos, Importantíssimos para a criação do Grupo de Trabalho Inclusão Social na Pós-Graduação da Capes, muitos desses estudantes dos “grupos subalternizados” sofreram retaliações de setores acadêmicos conservadores. Retaliações estas que culminaram em evasão, problemas de saúde mental, perda das já escassas oportunidades de auxílios e bolsas de fomento à pesquisa.

Fiquei pensando muito nessas histórias não contadas, quando no decorrer da semana, acompanhei colegas que, em diversas ocasiões, mostraram-se reticentes e contrários às cotas raciais (“no Brasil o problema é social”) e às políticas de identificação por raça de pesquisadores na plataforma Lattes do CNPq, compartilhando notas de repúdio. Arrematadas por discursos inflamados sobre a inadmissibilidade do racismo estrutural no Brasil. Como mostra Nilma Lino Gomes, o acesso à educação é uma luta histórica da população negra. E para assegurarmos a manutenção das conquistas assim como ampliá-las também é necessário refletir sobre o sistema de poder e privilégios que fundamenta a ciência brasileira e o que verdadeiramente precisa ser derrubado. Nesse sentido, indispensável conferir a pesquisa As negras e os negros nas bolsas de formação e de pesquisa do CNPq. Para 2015, de acordo com os dados levantados pelo CNPq, observa-se que a distribuição das bolsas de produtividade científica (PQ- voltadas a professores) deu-se da seguinte forma no grupo feminino: 75,5% para mulheres brancas; 6,2% para mulheres pardas e 0,8% para mulheres pretas. Este panorama relaciona-se ao início do texto sobre “inadequação” entre formação recebida e projetos acadêmicos realizados.

A segunda contextualização diz respeito à importância de aprender com as memórias traumáticas de dor, sofrimento e desigualdades nas quais a história do Brasil alicerça-se. Um dos antídotos está em “alternativas” que temos condições de fazer de imediato. Entre elas, visibilizar histórias silenciadas, tão presentes em nosso dia a dia. Aqui em terras cariocas, temos Tim Maia (28/09/1942-15/03/1998), um dos maiores músicos brasileiros, ocupando o centro da Praça Afonso Pena na Tijuca. Mercedes Baptista (20/05/1921-19/08/2014), primeira bailarina negra na história do Theatro Municipal (salvo engano única), recebendo-nos majestosamente no Largo da Prainha, zona portuária. No Complexo de Favelas da Maré, temos a Escola de Desenvolvimento Infantil nomeada Azoilda Loretto da Trindade, após incessantes lutas e articulações de professoras negras como Angela Ramos, Janete Santos Ribeiro e Marta Muniz Bento. Eu que tive a honra de conhecer e ter Zó (Azoilda) como uma grande mentora fico esperançosa e feliz de saber que sua história e legado fazem-se presentes na vida de crianças negras da favela, que são o presente-futuro do Brasil.

Despeço-me inspirada por estas pessoas monumentais, ligadas à nossa ancestralidade e a projetos de vida alternativos, que são os que verdadeiramente importam.

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Carolina Maria de Jesus: intérprete do Brasil

 

Começou ontem o ciclo de debates da FLUP, Festa Literária das Periferias Urbanas, que, sob a impecável curadoria de Julio Ludenir, este ano homenageia Carolina Maria de Jesus e o aniversário de sessenta anos de seu brilhante livro Quarto de despejo: diário de uma favelada. Com uma programação virtual inovadora, além das discussões abertas ao público, o evento conta com o curso de formação “Uma revolução chamada Carolina”, ministrado por quarenta ilustres professoras. Entre elas: Ana Maria Gonçalves, Ana Paula Lisboa, Eliana Alves Cruz, Mirian Santos, que compartilharão seus conhecimentos com 210 jovens escritoras, selecionadas através de cartas de próprio punho remetidas a Carolina. Tal ideia, por sinal belíssima, foi eternizada pela mestra em Educação  Hildália Fernandes em 2014, quando na obra Onde estaes felicidade? , lançando mão da escrita criativa, enviou sua missiva à autora.  

Sobre ontem, que momento! Na atual vibe a vida é uma live, durante duas horas milhares de pessoas acompanharam animadas o painel digital “Uma revolução em instantes”, onde se deu o diálogo entre a escritora Conceição Evaristo e a professora Vera Eunice de Jesus, filha de Carolina. A “noite de gala”, expressão escolhida pela jornalista e mediadora Flavia Oliveira para definir o acontecimento, foi marcada por antídotos aos “perigos da história única”. Aplicados através das narrativas das duas educadoras que, emocionadas, conversaram com o público sobre as muitas versões de Carolina. Mulher. Mãe. Escritora. Migrante. Favelada.

Mantendo a tradição, as mineiras refletiram sobre temas centrais no pensamento feminista negro – cuidado, educação, maternagem, sororidade – sob seus pontos de vista específicos. Oportunidade ainda raríssima, se lembrarmos que apesar de muitos avanços, o pensamento de Carolina Maria de Jesus e da maioria das intelectuais negras brasileiras permanece desconhecido para a maioria do público. Hoje, 13 de maio, quando completam-se 132 anos da assinatura da Lei Áurea, em uma pandemia global que afeta drasticamente a população negra mundial, é oportuno perguntar: por que a história e a obra de Carolina Maria de Jesus permanecem desconhecidas fora dos circuitos acadêmicos e ativistas? O que nos ensina o fato de que um dos últimos registros fotográficos da escritora é como catadora de papel na rodoviária de São Paulo nos anos 1970?

Há muitos anos dedicando-me às dores e delícias da escrita acadêmica da história de intelectuais negras, para responder  essas questões, em vez de silêncio ou apagamento, penso em desvalorização. Palavra chave que nos instrumentaliza para analisar a inadequação e falta de tato das elites e ciências hegemônicas para lidar com a autenticidade, o talento e a criatividade das classes trabalhadoras. Ou, na expressão de Conceição Evaristo, para compreender a “linguagem culta-oculta” de Carolina. A mesma gramática reinventada por milhões de mulheres que nutrem a tradição intelectual negra chefiando sozinhas lares. Educando crianças, cultuando diários, preenchendo cadernos de receitas e, claro, pagando boletos. Quando a fome de comida é saciada no papel de pão recheado com palavras, uma tarefa se coloca para as novas gerações: aprender a diferenciar – cientificamente – jeitinho de inventividade:

“Escrevo a miséria e a vida infausta dos favelados. Eu era revoltada, não acreditava em ninguém. Odiava os políticos e os patrões, porque o meu sonho era escrever e o pobre não pode ter ideal nobre. Eu sabia que ia angariar inimigos, porque ninguém está habituado a esse tipo de literatura. Seja o que Deus quiser. Eu escrevi a realidade”.

Carolina Maria de Jesus – Intérprete do Brasil.

Por que não?

Carolina Maria de Jesus - 13 maio 2020 escritora

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20 de Novembro: com Ciência Negra

A boca é um órgão muito especial, ela simboliza a fala e a enunciação. No âmbito do racismo a boca torna-se o órgão da opressão por excelência, ela representa o órgão que os (as) brancos (as) querem – e precisam – controlar e, con-sequentemente o órgão que, historicamente, tem sido severamente repreendido.

(Grada Kilomba – Plantation Memories: Episodes Everyday Racism, 2010.)

Em pesquisa recente organizada pela Associação de Docentes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, constata-se que apenas 3% dos professores da UFRJ declaram-se como pretos e pardos. Dados similares foram apontados pelo censo racial de docentes promovido pelo Coletivo Estudantil Nuvem Negra na PUC-Rio, dentro da campanha Quantos Professores Negros Você tem? Em seu trabalho, a socióloga Joselina da Silva identificou, com base em pesquisa quantitativa no SINAES e no INEP, que, em 2005, dos 63.234 professores universitários do Brasil, somente 251 eram mulheres negras. Frente a esses dados pouco discutidos pela comunidade científica e diante da necessidade de não retroceder, no mês da Consciência Negra, dedico meu texto a uma “escrita de Nós”. Isso para dimensionar a importância que a formação acadêmica deve ocupar na vida das pessoas negras como parte de um projeto coletivo de autonomia e liberdade que passa pela educação como um direito humano.

 

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Quando o assunto é a representatividade negra, a comunidade acadêmica, hegemonicamente branca, é marcada por um enorme abismo entre a teoria e a prática. No caso da História, por exemplo, por mais que as pesquisas historiográficas avancem nas conclusões e conceitos, como no advento das categorias de “agência”, “experiência”, “precariedade da liberdade” e do seu impacto para reinterpretar os processos de escravidão e pós-abolição à luz do protagonismo de pessoas escravizadas, em termos de equidade racial, os movimentos para democratização dos comitês científicos de eventos e agências de fomento às pesquisas, do mercado editorial assim como dos concursos públicos são inócuos. Segue-se o baile com uma maioria de acadêmicos brancos produzindo pesquisas sobre o negro, numa espécie de destino natural. Essa configuração branco realizador – negro executor impede que estudantes dos dois grupos raciais tenham acesso às diversas formas de narrativas e produção de conhecimento científico, reforçando a história única.

Ter contato com professores universitários negros é importante porque transgride o lugar de subalternidade reservado a pretas e pretos na história oficial do país, oferecendo uma linguagem de possibilidade mais democrática na qual a intelectualidade negra também seja reconhecida. Para transgredir essa fixação de sentidos precisamos prover universitários negros dos subsídios para assumir e fortalecer o lugar de acadêmicos. Isso se associa às perspectivas postas por Eduardo de Oliveira e Oliveira em “De uma ciência para e não tanto sobre o negro”, texto no qual o sociólogo defende a importância de que acadêmicos negros interpretem e produzam conhecimentos sobre nossas experiências com nossas próprias ferramentas teórico-metodológicas. É a partir desse mote que o intelectual, não por acaso silenciado nos currículos universitários, cunha o conceito de “ciência para o negro”. Tal conceito mobiliza parte das ações que conduzo na UFRJ assim como a categoria de “escrevivência”, de Conceição Evaristo. Embora este último seja originalmente um conceito da Literatura, tenho me dedicado à sua reconfiguração para dar vida a uma agenda acadêmica com metodologias de trabalho focadas na juventude negra e na crítica à ideia de objetividade como sinônimo de neutralidade científica.

Essa tomada de posição materializa-se em iniciativas que conduzo como a disciplina Intelectuais Negras, na qual durante todo o semestre lemos e discutimos autoras negras brasileiras, a coordenação do Programa de Educação Tutorial Conexões de Saberes Diversidade, que conta com a participação de 12 bolsistas de graduação negros e cotistas e funciona internamente como o Programa de Formação Ciência para o Negro e no Grupo Intelectuais Negras, um espaço que promove ações de ensino, pesquisa e extensão a partir dos conhecimentos orais e escritos de mulheres negras, sistematizados em iniciativas como o catalogo Intelectuais Negras Visíveis, publicação que reúne 181 profissionais de diferentes áreas de atuação e regiões brasileiras.

Logo PET - oficial

A tarefa de construir uma agenda acadêmica negra na universidade pública é complexa e se relaciona à afirmação de Conceição Evaristo de que “nossa fala estilhaça a máscara do silêncio”. Se hoje as novas gerações conseguem chegar à academia, ainda que em condições de permanência absolutamente precárias e questionáveis, os desafios postos para colocar em prática o “nenhum passo a menos” são gigantescos. Mas nesse 20 de novembro encoraja perceber pelas palavras de uma estudante da UFRJ, que temos conseguido aprimorar a arte de falar pelos estilhaços da máscara:

Qual a importância da formação acadêmica em sua vida?

Como a primeira pessoa da minha família a entrar numa universidade pública, a formação acadêmica na minha vida representa a possibilidade de poder ser. Independente daquilo que faço ou estudo, para os meus pais, desde que eu esteja feliz, o meu entrar na UFRJ foi um marco de que podemos ser o que quisermos ser. Embora, todo o sistema social funcione para impedir pessoas negras e faveladas de alcançarem altos cargos e tenha conseguido atrapalhar o sonho da minha mãe, por exemplo, de terminar o ensino médio e ingressar numa faculdade, meus pais me apoiaram durante toda a minha vida e se transformaram no mais forte alicerce que eu podia ter para buscar ir além. Ir além do esperado para pessoas como eu, ir além das estatísticas e das expectativas. A formação acadêmica desempenha na minha vida o afago que a minha família ansiava. O suspiro por ter construído novos passos. A esperança de alcançar lugares inimagináveis pelos meus antepassados, não tão distantes. É um romper de silêncios e uma fabricação de chaves que abram portas de oportunidades para os que não se veem capazes de simplesmente ser o que quiserem ser.

 

GIN - capa FB

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Fogo na Dor: o #8M e os temerários perigos da história única

Foi em fevereiro que pipocou na minha timelaje o chamado para uma Greve Internacional de Mulheres no dia 08 de março de 2017. As autoras, dentre as quais se incluem Angela Davis, Nancy Fraser e Tithi Bhattacharya, provocavam-nos a manter acesa a onda de protestos observada nas marchas de mulheres contra Trump, em 21 de janeiro nos EUA.

Autoras Greve Internacional #8M

Intelectuais Feministas autoras do Manifesto à Greve Internacional das Mulheres.

No documento, as ativistas conclamavam mulheres a lutarem por um feminismo que represente 99% das pessoas, revisando erros e acertos e focando na importância de uma agenda expandida – anti-racista, anti-imperialista, anti-heterossexista e anti-neoliberal – para os movimentos com este recorte. Por aqui, feministas negras do naipe de Deise Benedito e Lúcia Xavier aderiram à mobilização, compartilhando reflexões e propondo ações ligadas ao cenário brasileiro nas redes sociais. A rápida adesão por milhões de mulheres confirmou a impossibilidade crescente de separar o mundo e o ativismo em “real” e “virtual”. Afinal, em um país de maioria feminina, campeão em índices de feminicídio, trabalho doméstico e lesbobitransfobia, o que pode ser mais real do que conclamar as mulheres para irem às ruas lutarem por direitos trabalhistas, de saúde e segurança?

O fato é que este cenário de mobilização é alimentado porque sentimos na pele que nossas conquistas enquanto mulheres estão cotidianamente ameaçadas por políticas conservadoras, elaboradas por um patriarcado do século XXI, no qual o lar, os filhos e o orçamento doméstico definem, sem parcimônia, o “ser mulher”. Se não por acaso o conclame ao #8M, é assinado majoritariamente por mulheres “de cor” (women of color) no Brasil é preciso sempre lembrar que esse violento processo de biologização e hierarquização dos gêneros repercute de forma incisiva na vida das mulheres negras  em todos os campos.

Esse impacto confirma a importância de identificar os eixos de opressão que se articulam, como defendeu Kimberlé Crenshaw, ao criar nos anos 1990, o conceito de interseccionalidade. Trata-se de categoria central para compreender que classe é definida pelas experiências de raça, raça pelas experiências de gênero, gênero pelas experiências de sexualidade e assim sucessivamente. Nessa lógica, percebemos que a ausência de Mulheres Negras nos centros e notas de rodapé é prática corriqueira na academia, como narrado em “De mãos dadas com minha irmã: solidariedade feminista”, texto de bell hooks que nos ajuda a compreender a falta de nexo no modo de pautar o Racismo Estrutural, para dar um exemplo “à brasileira”.

Como as histórias não são únicas este 08 de março foi palco de uma conquista significativa. Na batalha por representatividade na mídia, tivemos Taís Araújo estreando no programa Saia Justa e narrando na primeira pessoa o Brasil brasileiro da falsa democracia racial que mata 23 jovens negros por minuto.

Tais Araújo - Saia Justa

A atriz e apresentadora Taís Araújo.

A fala da atriz, sintonizada com as agendas dos movimentos negros e feministas, no Canal GloboSat GNT, representa uma vitória para Mulheres Negras como a designer gráfica Maria Julia Ferreira, autora da campanha GNT Se Você Não Me Vê Eu Não Vejo Você!!!, de 2013.

Maria Julia Ferreira - GNT

A auto narrativa de Taís assim como as intervenções altamente qualificadas de Djamila Ribeiro em sua participação no Programa Estúdio I dedicado ao Dia Internacional da Mulher confirmam também a importância da luta por estarmos em todos os lugares. A inteligência que nos faz caminhar das margens para o centro, apropriando-nos das contradições e produzindo saberes em nome do fortalecimento da comunidade negra e de nossas pautas.

#8M - Dja Ribeiro

A filósofa e intelectual pública Djamila Ribeiro.

Nessa caminhada destaca-se o direito ao bem viver, reivindicado pela Marcha das Mulheres Negras e por ativistas como Dona Debora Silva, do Movimento das Mães de Maio. Direito este diariamente aniquilado como demonstra a triste história de João Victor de Souza de Carvalho, mais um de nossos meninos brutalmente impedido de ser humano aos 13 anos.João Victor de Souza

Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

Para seguirmos todos os dias pensando e praticando o #8M de forma interseccional e condizente com a realidade brasileira, também destacamos a criatividade e a força da psicóloga da UFRJ Luciene Lacerda, feminista negra idealizadora da Campanha 21 dias de Ativismo contra o Racismo. Abraçado por ativistas negros (e brancos) de diferentes áreas, o movimento realiza durante o mês de março centenas de atividades relacionadas à luta contra o racismo no Rio de Janeiro, na Baixada Fluminense e em Macaé.

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A luta por existir e reexistir como insistimos atinge de forma específica mulheres negras, conforme comprovam os dados do IPEA no estudo Retrato das desigualdades. Lançada no último 06 de março, a pesquisa reúne dados sobre trabalho, família e escolaridade entre mulheres no país entre 1995 e 2015 e também foi lembrada no instigante texto da jornalista Luciana Barreto, que conecta rostos e vozes de intelectuais negras como Mônica Lima e Nathália Braga em celebração à nossa ancestralidade.

#8M - Luciana Barreto

Luciana Barreto, jornalista da TV Brasil

#8M - Luciene Lacerda

Na boa companhia de Luciene Lacerda, idealizadora da Campanha 21 Dias de Ativismo  Contra o Racismo. Foto: Daniele Grazinoli.

No meu mural do “Dia sem Mulher”, tem lugar cativo o texto “Calar é preciso” da jornalista Flávia Oliveira, propositalmente publicado no after day. Flavia, nossa intelectual negra que  em breve estreia como apresentadora do TED – Compartilhando Ideias, no Canal Futura, tacou fogo na dor narrando em números e reflexões densas a vulnerabilidade a que estão sujeitas às mulheres brasileiras dentro da combinação reforma política e restrição orçamentária. Tem assento permanente também mulheres como Dona Débora Silva, que carregam a sabedoria de transformar morte em vida frente ao genocídio da população negra.#8M - Flavia Oliveira

Flávia Oliveira, colunista do jornal O Globo

#8M - Mães de Maio

Dona Débora Silva, ativista do Movimento Mães de Maio.

Se na luta por sermos visíveis e respeitadas, Chimamanda Adichie ensinou-nos que muitas histórias importam, é hora dela própria repensar que as muitas mulheridades também importam. Nesse sentido, é o momento de todas Nós lutarmos em busca de um sol amarelo no qual o direito às identidades de gênero brilhe para além do pênis e da vagina. Essa travessia é oposta à trilhada por feminismos dito “radicais” que naturalizam a história única, biologizando experiências de gênero e distorcendo o sentido político de  radicalidade, originário da insurgência política negra nas lutas pela liberdade.

E por falar nas muitas histórias que verdadeiramente nos importam, encerramos o texto com o registro da banca de defesa de monografia da estudante Isadora dos Santos Nascimento. Após cumprir os ritos acadêmicos com toda a competência e sensibilidade herdada de nossas ancestrais, a jovem publicou malandramente em seu Instagram: #vaiterpretapedagoga.

#8M - Isadora Nascimento

A pedagoga Isadora dos Santos Nascimento comigo, a Profa. Dra. Núbia Oliveira e o Prof. Dr. Sergio Luiz Baptista na cerimônia defesa da monografia intitulada Relações étnico-raciais nos manuais didáticos de História do 4 e do 5 ano dos anos iniciais do Ensino Fundamental: análise das imagens da população negra na Faculdade de Educação da UFRJ.

No 08 de Março e sempre UM SALVE a Isadora, à Dona Débora e a todas as Mulheres Negras do Brasil e do mundo por lutarmos de múltiplas formas pelo direito de existir e reexistir.

Axé!

#8M - Mulheres Negras

Feministas Negras na Greve Internacional das Mulheres, 08 de março no Rio de Janeiro.

 

 

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Espelho, espelho meu: Raissa Santana e uma coroa para chamar de nossa


Eu estava sentada no colo de minha avó Leonor, uma das ancestrais na qual ergo minhas costas, quando assisti Deise Nunes receber a coroa de Miss Brasil, na narração de Silvio Santos. Aquela noite de domingo de 1986 foi diferente de todas as outras. As adultas permitiram que as crianças da casa assistissem televisão até mais tarde. Lembro de minha mãe, Sonia (em memória), mudando de tempos em tempos a TV de canal em busca de mais notícias. A cada pio mirim recebíamos um psiu coletivo das Pretas do clã. Na segunda-feira, que aprendi desde cedo, tratar-se de “dia de branco” (eita contradição!), a história foi outra. Na hora do recreio, eu, menina de sete anos, educada em uma escola branca do subúrbio, fui a Deise. A brincadeira era outra. A Macaca autopromoveu-se Miss Brasil da escola.

Passaram-se três décadas, ou nas palavras da vitoriosa Raissa Santana, um “jejum de trinta anos”, até que uma segunda Mulher Negra conquistasse o título de soberana da beleza. E neste tempo não tivemos domingo, nem dia santo. Tornei-me professora universitária (diga-se de passagem doutora em história das mulheres e da beleza negra) e assim como eu milhões seguimos lutando cotidianamente em espaços variados, forjando caminhos possíveis para o reconhecimento das belezas de quem somos e das histórias que carregamos.

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Fotografia: Divulgação

Em um país em que nós (52% da população) ocupamos a base de todas as estatísticas, ser Miss Brasil importa, como muito bem narrado por Flavia Oliveira. Conquistar a coroa, símbolo político por meio do qual costumamos narrar nossos cabelos, representa uma forma de combate às mortes simbólicas que vivenciamos desde a gestação. Mortes em vida que envolvem “torcida” para que nasçamos com pele mais “clara” e cabelo “melhor”, ofensas a cabelos crespos e feições grossas, hipersexualização de corpos, subestimação da capacidade intelectual, perseguição às religiões que praticamos. Agora mesmo estou a auxiliar uma estudante de Pedagogia a encontrar uma instituição de educação formal para realizar seu estágio porque devido ao turbante e aos fios de conta, que representam a sua fé, a jovem já perdeu a conta de quantas vezes ouviu: “Não há mais vagas”.

Evidentemente que por ser quem sou e pelo tipo de trabalho que desenvolvo, concordo com a ideia de que os concursos de miss reproduzem o machismo, o patriarcado e os padrões de beleza hegemônicos, que são alcançados à custa de uma série de violências contra as mulheres desde o século XIX. Ao mesmo tempo, por ter a academia – um mundo branco, masculino e eurocêntrico, como lugar de inserção, não desisto de me perguntar: quais os caminhos possíveis para conquista do protagonismo negro em estruturas indiscutivelmente opressoras?

A primeira coisa que me vem à cabeça e pela qual sou absolutamente compromissada é a necessidade de construirmos nossos próprios espaços de formação e representação. O trabalho que realizamos no Grupo de Estudos e Pesquisas Intelectuais Negras UFRJ é apenas um exemplo.

Para que nossos espaços se fortaleçam, se não todas, algumas de Nós, precisamos também conquistar visibilidade e reconhecimento nos lugares hegemônicos. Não há como fugir, mas há como transgredir. Um exemplo recente encontra-se na minha (in) tensa participação como uma das autoras do livro Mulheres: um século de transformações, publicação em homenagem ao Caderno Ela, o qual já sabemos não nos representa.

Nas últimas três semanas, minhas noites de quinta-feira foram dedicadas a discutir com a equipe do suplemento e as organizadoras da obra, os efeitos catastróficos que a nossa invisibilização em um veículo de comunicação de grande porte gera para a comunidade negra: um crime semanal. Há quem acredite tratar-se de perda de tempo, desgaste desnecessário… Por meu turno, penso que têm coisas que só nós podemos fazer por nós. A quem cabe denunciar nossa invisibilização na exposição em homenagem à “mulher brasileira”, realizada no Espaço Ipanema? Quem deve proteger a história de Carolina Maria de Jesus, narrando o quão desrespeitoso é escolher retratá-la retirando água de um poço? Em um país racista, em que aprendemos a valorizar a branquidade e rejeitar a negritude, quem, se não Nós, para se organizar e reivindicar que as redações de jornais contratem profissionais negros?

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Fotografia: Carolina Maria de Jesus, capa do Níger, Coleção Oswaldo de Camargo. Em 1960,  a equipe editorial do jornal negro cuidou de eternizar a imagem da mineira de Sacramento, como autora, preterindo as cenas de subalternidade. Agradeço a Ana Flávia Magalhães Pinto por compartilhar a imagem.

Após muitos confrontos, na semana seguinte, pudemos ver também Thais Araújo representadas na exposição. E, é óbvio que este tipo de retratação é insuficiente, mas é um caminho que também precisa ser trilhado. Após a escuta sensível da editora Renata Izaal, saímos de lá comprometidas com a manutenção dos diálogos com o Caderno Ela. Por que? Somos protagonistas do mercado consumidor brasileiro (em 2014 movimentamos 32 bilhões de reais). Além disso e não menos importante: como educadora, lembro sempre que é o jornal O Globo que chega a todas as bancas. Que é dele que as crianças pretas recortam as imagens para confeccionar os murais das escolas. Que é este o impresso disponível para leitura nos lugares em que trabalhamos, inclusive na casa das patroas…

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Exposição Mulheres: um século de transformações, Espaço Ipanema,  06/10/16.

Transgredir passa por colocar a margem no centro com nossas próprias mãos. Passa por questionar noções universais de mulher, raça, beleza. Articular marcadores sociais, reconhecendo que as experiências de gênero são distintas a depender do grupo racial a que pertencemos, torna possível compreender que para Mulheres Negras, historicamente narradas como puro corpo, sem alma e humanidade, ser eleita símbolo nacional de beleza é algo que, se devidamente trabalhado, pode se tornar uma lança para as novas gerações, que encontrarão na imagem de Raissa, a baiana de 21 anos (e que representou o estado do Paraná), um espelho possível para o amanhã.

Não sabemos (nem precisamos) mensurar em número o impacto do primeiro lugar no pódio assim como da presença de seis candidatas negras participando no Miss Brasil 2016, mas devemos estar sensíveis ao fato de que milhões de meninas negras no Brasil tiveram no sábado, dia 01/10/16, validado o seu direito de sonhar. Isso porque por conta do racismo, estrutura que não criamos, mas a qual estamos sujeitas, esta possibilidade inexiste. Nossas meninas permanecem violentadas, sendo ensinadas a projetarem o trabalho doméstico como destino. Seguimos em vigílias noturnas, sem saber ao certo se nossos meninos pretos voltarão para casa.

Eu realmente acredito que fazermos-nos visíveis a partir de nossos corpos e pontos de vista em concursos de beleza, na mídia, no mundo acadêmico e demais espaços de prestígio é de suma importância para combatermos o extermínio de nossa juventude, a esterilização à revelia de nossos corpos, o encarceramento de nossa comunidade.

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Fotografia: divulgação. Da esq./dir. Deise D’Anne (Miss Maranhão); Raissa Santana (Miss Brasil); Beatriz Nalli (Miss Espírito Santo); Sabrina Paiva (Miss São Paulo); Vitoria Esteves (Miss Bahia); Mariana Theol (Miss Rondônia).

Apropriar-nos do potencial político que a categoria de beleza negra evoca significa materializar o ato de lutar para sermos quem quisermos ser, um direito relacionado à nossa história de pertencimento a uma comunidade negra, plural em seus modos de ser, sentir e existir. Não somos todas Raíssa, mas a coroa de Raissa é de Todas Nós.

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Debate”Empoderamento feminino: um debate sobre a trajetória da mulher na moda”, ao fundo a jornalista Melissa Jannuzzi, consultora de moda. (Fotografia: Amana Mattos, 06/10/16).

E para terminar, a Miss Brasil Raissa por Raissa, já que suas falas andam sendo recortadas para atender a ideais de democracia racial que não nos pertencem:

“Eu estou muito emocionada. Isso aqui é uma mistura de emoções muito grande. Eu não esperava ganhar esse título, mas estou muito feliz por ter conquistado esse título e por poder representar a beleza negra e incentivar meninas que têm o sonho de ter alguma coisa, de conquistar, de ser uma modelo, de ser uma miss… Agora, quero incentivar essas meninas e mostrar para elas que elas podem”.

 

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Seminário Ventres Livres? Mulheres Negras e Maternidades 28/09, 30/09, 01/10 no Museu da Maré

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20 de novembro: Consciência Negra. 13 de maio: Abolição da Escravatura. 25 de julho: Mulher Negra Afro-Latina Caribenha. Mais do que feriados ou simples celebrações, estas datas têm sido apropriadas pelos movimentos sociais negros como dias para visibilizar demandas e pautas relacionadas às lutas contra o racismo no Brasil.

A construção de calendários de mobilização é marcada pela participação de diferentes organizações e sujeitos, com intepretações também diversas acerca da história e do legado da escravidão e do pós-abolição. Um dos principais exemplos de valorização do protagonismo negro está na tessitura do 20 de novembro como contraponto ao 13 de maio e à princesa Isabel como “Redentora”. E por que não pensar o 25 de julho, sancionado pela então Presidenta Dilma Roussef Dia Nacional Tereza de Benguela, como contraponto ao 8 de março, quando é celebrado, dentro de uma perspectiva universalista, o Dia Internacional da Mulher?

Nesse contexto de disputas em torno de datas e símbolos negros, qual seria o lugar da Lei Rio Branco? Popularmente conhecida como “Ventre Livre”, a lei de 28 de setembro de 1871 determinava em seu primeiro artigo que “os filhos de mulher escrava que nascerem no Império desde a data desta lei, serão considerados de condição livre”. Parte da violenta história da escravidão, tal legislação relaciona-se diretamente aos limites e possibilidades impostos para o exercício da maternidade de mulheres negras escravizadas e libertas.

Se por um lado os direitos senhoriais de tutelar filhas e filhos de escravas com menos de oito anos, de utilizar os serviços do “menor até os 21 annos de idade” e de “criar e tratar” as crianças representaram políticas senhoriais de precarização da liberdade e manutenção do poder patriarcal, por outro, a existência de famílias negras durante todo o período escravista e o empenho de mães em proteger e permanecer ao lado das crianças e jovens gerados em seus ventres evidenciam a resistência de mulheres negras. Dentro de situações limítrofes, elas criaram sentidos específicos de maternidade, informados por suas identidades desiguais de gênero e raça.

Em um esforço de articulação passado presente e identificadas com os feminismos negros interseccionais, apostamos em uma ideia de “Ventre Livre” que transcenda a temporalidade da escravidão, conferindo espaço para a problematização do termo, propositalmente grafado no plural e na forma interrogativa – Ventres Livres? 

O Grupo de Estudos e Pesquisas Intelectuais Negras convida-nos a pensar quais são os Territórios dos Ventres Livres diante:
– Das experiências de cuidado e maternidade entre mulheres negras de classes e territórios diversos.
– Da patologização das identidades de gênero de pessoas trans.
– Da perpetuação do trabalho doméstico.
– Do extermínio das juventudes negras.
– Do alarmante crescimento do sistema carcerário.

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Ancoradas na principal marca do grupo – a valorização das “Escritas de Si”, durante três dias, 50 Intelectuais Negrxs de diferentes territórios do Rio de Janeiro pautarão questões organizadas em três eixos: Educação Infantil, Masculinidades e Sexualidades. A programação conta também com a Companhia de Teatro Paralelas, que encenará a Peça Umdoum e com o Espaço Erê – Rede de Cuidados Infantis Cooperativos, que oferecerá brincadeiras, contações de histórias e jogos inspirados nas culturas iorubás para acolher as crianças enquanto os adultos participam das rodas e demais atividades.

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Encerramos ressaltando que este Seminário, idealizado em conjunto com  Janete Santos Ribeiro, inaugura a parceria com o Museu da Maré, coordenado Profa. Claudia Rose. Isso porque enquanto Historiadoras Negras entendermos que a favela é o nosso grande quilombo, um espaço de construção de identidades, produção de saberes,empreendedorismos e resistências que dizem respeito às histórias das populações negras, como tão bem nos ensinou a historiadora Beatriz Nascimento, que não por acaso teve sua produção silenciada em nossa historiografia.

“Você pode substituir Mulheres Negras como objetos de estudo por Mulheres Negras contando a sua própria História”. #ficaadica #intelectuaisnegrasufrj

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Programação completa disponível em: https://www.facebook.com/intelectuaisnegrasufrj/posts/1778917429052830

Inscreva-se: https://docs.google.com/forms/d/e/1FAIpQLSeJL4FS6wp3TYPMoO2mc3iBJMeJsv95D_loBIgdb_RrU3oQcA/viewform?c=0&w=1

INFORMAÇÕES: intelectuaisnegras@gmail.com

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Carta aberta à Festa Literária Internacional de Parati – Cadê as Nossas Escritoras Negras na FLIP 2016?

No dia 23 de junho de 2016, participei de um momento mágico, daqueles que precisaremos de muito tempo para conseguir elaborar seu significado, sua importância. Refiro-me a uma fantástica roda de conversa com diversas Autoras Negras (maiúsculo proposital). Realizada no Terreiro Contemporâneo, no Centro do Rio de Janeiro, a atividade contou com Conceição Evaristo, Cristiane Sobral, Débora Almeida, Elaine Marcelina, Esmeralda Ribeiro, Lia Vieira, Mel Adún, Mirian Alves e muitas outras mulheres negras que com sua vasta produção afirmam, em termos próprios, que o texto escrito pode ser o que quisermos que ele seja.

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Roda de conversa com Escritoras Negras, Terreiro Contemporâneo (RJ), 23/06/16. Sentadas da esq. p/dir. Conceição Evaristo, Mel Adún, Esmeralda Ribeiro, Débora Almeida, Cristiane Sobral, Mirian Alves, Lia Vieira. Em pé (esq. p\dir.) Irís Amâncio, Dawn Duke e Elaine Marcelino.

Em círculo, aprendi com Esmeralda Ribeiro que para Mulheres Negras, a palavra representa nossa “navalha”. E é de posse desta “palavra-navalha” que registro minha indignação frente à ausência de Autoras Negras na programação oficial da FestaLiterária Internacional de Parati 2016.

Em um país de maioria negra e de mulheres, portanto de maioria de Mulheres Negras, é um absurdo que o principal evento literário do país ignore solenemente a produção literária de mulheres negras como Carmen Faustino, Cidinha da Silva, Elizandra Souza, Jarid Arraes, Jennifer Nascimento, Livia Natalia e muitas outras. Que naturalizando o racismo, a curadoria considere que fez sua parte convidando autoras da raça Negra que infelizmente não puderam aceitar o convite. A não procura de palnos a, b, c diante destas supostas recusas relaciona-se à falta de compromisso político da FLIP com múltiplas vozes literárias nacionais e internacionais, conforme destacou a literata negra Cidinha da Silva, autora de Sobre-viventes, lançado este ano pela Editora Pallas.

Este silenciamento do nosso existir em uma feira que se reivindica cosmopolita, mas está mais para Arraiá da Branquidade, insere-se no passado-presente de escravidão, no qual a Mulher Negra é representada, vista e tratada como um corpo a ser dissecado. Um pedaço de carne que está no mundo para servir. Um objeto a ser estudado e narrado pelo outro branco. Foi assim com Maria Firmina dos Reis, Mulher Negra do Maranhão, autora de Úrsula, o primeiro romance abolicionista da história do Brasil, datado de 1859 e que, embora reeditado pela Editora Mulheres em 2004, mantém-se desconhecido da maioria das pessoas.

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Capa da reedição de Úrsula. Florianópolis: Editora Mulheres, 2004.

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Imagem de Maria Firmina dos Reis, s/d.

Repetiu-se com Carolina Maria de Jesus, uma Mulher Negra. Mineira de Sacramento, a autora de Quarto de despejo: diário de uma favelada, de 1960, migrou para São Paulo onde trabalhou como empregada doméstica e catadora de papel. Carolina, que considerava “a favela o quarto de despejo da cidade”, priorizou em sua pena a humanidade e o cotidiano das pessoas negras. Uma leitura indispensável para se compreender a história das desigualdades de gênero, raça e classe no Brasil. O sucesso de Carolina e a visibilidade de sua obra, traduzida para dezenas de línguas como o japonês, não possibilitou que a intelectual tivesse sua condição de escritora respeitada, haja vista ter morrido pobre e esquecida pela opinião pública. A narrativa do biógrafo de  Clarice Lispector acerca de Carolina como uma “empregada doméstica” “tensa e fora do lugar” representa de forma violenta e emblemática o confinamento das Mulheres Negras às representações racistas.

Numa foto, ela [Clarice] aparece em pé, ao lado de Carolina Maria de Jesus, negra que escreveu um angustiante livro de memórias da pobreza brasileira, Quarto de despejo, uma das revelações literárias de 1960. Ao lado da proverbialmente linda Clarice, com a roupa sob medida e os grandes óculos escuros que a faziam parecer uma estrela de cinema, Carolina parece tensa e fora do lugar, como se alguém tivesse arrastado a empregada doméstica de Clarice para dentro do quadro. Ninguém imaginaria que as origens de Clarice fossem ainda mais miseráveis que as de Carolina. (Benjamin Moser. Clarice. Rio de Janeiro: Cosac Naify, 2011.)

Carolina e Clarice

Clarice Lispector e Carolina Maria de Jesus em sessão de autógrafos em livraria. Rio de Janeiro, anos 1960.

Em nome deste passado-presente, que também é acionado nas lamúrias da casa-grande frente à tortuosa regulamentação do trabalho doméstico, somos rechaçadas toda vez que assumimos papeis que para nós não foram pensados. No mercado editorial, que segue definindo a autoria como um lugar masculino e branco. Na academia, onde nossas pesquisas são desqualificadas como militantes (como se isso fosse um problema!). Nos editoriais de moda, que insistem em nos violentar com modelos brancas blackfaces. No confinamento à favela, à escravidão e ao trabalho doméstico nas telenovelas, salvo exceções que mais confirmam regras do que apontam para transformações. No desrespeito à nossa arte, como temos acompanhado na tentativa racista de boicote ao trabalho de Elza Soares.

O fato da organização da FLIP não assumir como prioridade indispensável a participação de escritoras negras nos cinco dias de evento faz parte do pacote de falas, movimentos e ações conservadoras que têm marcado a macro política nacional. O fato das 17 mulheres convidadas para o palco principal da feira serem brancas é parte de uma mesma obra. Um livro da supremacia branca, que se divide em muitos capítulos estruturados a partir das articulações entre racismo, machismo e transfobia. A composição ministerial do governo de Michel Temer, onde paira a exclusividade de homens brancos, cisgêneros, heterossexuais. As perdas irreparáveis como os cortes no Programa Bolsa Família. A criminalização do aborto. A extinção da Secretaria de Políticas para as Mulheres, da Secretaria de Políticas para a Promoção da Igualdade Racial assim como da dos Direitos Humanos. Se antes tínhamos pastas autônomas, hoje nossas pautas ficam sob a chancela do Ministério da Justiça e Cidadania, que historicamente tem tratado as Mulheres Negras como objeto da lei através de categorias desumanizadoras como, por exemplo, “mãe de menor”. Em meio a todo este cenário de retrocessos que atingem de forma drástica as Mulheres Negras do Brasil, a FLIP, ao nos invisibilizar como autoras e produtoras de conhecimentos significativos constitui-se como o epílogo deste livro que bem poderia se chamar Lições do Brasil Antidemocrático.

Em uma Feira Literária Internacional que em 2016 traz como tema a “mulher”, sem no entanto considerar a pauta prioritária dos movimentos transfeministas e feministas negros acerca das diversas experiências que definem o que é ser mulher, vemos-nos obrigadas a retomar a pergunta de 1851 da abolicionista afro-americana Soujourner Truth: “e não sou eu uma mulher?” Em um país em que 93,9% dos autores são brancos e 72,7% homens, a feira que podia representar um contraponto, posiciona-se na linha “mais do mesmo”, comunicando para seu público que o ato de ler e escrever não é para o nosso bico. Como uma Mulher Negra, pesquisadora da escrita e da história das Mulheres Negras, eu encerro com Esmeralda Ribeiro: “ser invisível quando não se quer ser” (…) mas “a brincadeira agora é outra”. Somos humanas. Somos diversas. Somos visíveis.  E como autoras e donas de nossas próprias histórias faremos valer a luta ancestral para que nossa palavra seja impressa, ouvida e respeitada.

Esmeralda Ribeiro

Esmeralda Ribeiro no lançamento do Cadernos Negros 27 do Quilombhoje, dez. 2004.

Giovana Xavier – feminista negra, professora da Faculdade de Educação, coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Intelectuais Negras/UFRJ e co-idealizadora da Campanha #vistanossapalavraflip2016 com Janete Santos Ribeiro.

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O meu lugar: Feliz Dia das Mães!

“Parabéns por sua trajetória brilhante!” Foi ao som destas palavras que meu domingo de Dia das Mães iniciou-se. A fala de tia Lena guarda relação com meu passado-presente. A despeito das significativas conquistas das populações negras nos últimos anos, continuamos sendo exceção nos lugares de reconhecimento e prestígio. Isso gera a nossa convivência forçada com a ambígua imagem do “brilhantismo”. Se por um lado ser “brilhante” aponta para transgressões à realidade de pobreza e marginalização das famílias negras, quem reluz vê-se diariamente confrontada com o violento lugar da excepcionalidade.

Dependendo das lentes com as quais escolhemos encarar, os raios refletem a regra a qual, duramente, nos constituímos como exceção. O regramento da violência, da pobreza, da criminalização e da patologização da população negra no Brasil, que ainda é gritante como demonstram o Movimento das Mães de Maio (SP), protagonizado por mulheres como Debora Silva Maria, que ao lado de suas companheiras “escreve de dentro da guerra” e o  Movimento Reaja ou Será Morto, Reaja ou Será Morta, organizado por representantes de comunidades e movimentos sociais negros da capital e do interior da Bahia e que manifestam seu “compromisso com a vida” lutando contra o genocídio da população negra.

Mães de Maio

Foto: Carta das Mães de Maio da Democracia Brasileira a Presidente Dilma Vana Roussef (à esq. a Presidenta Dilma Rousseff, à dir. Debora Silva Maria)

Reaja ou será morta

Foto: Quilombo-Xis Ação Cultural Comunitária da Campanha Reaja ou Será Morta! Reaja ou Será Morto! 

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Como acadêmica negra, aprendo diariamente com meus estudantes, que é às custas do racismo institucional com suas violências naturalizadas (muitas das quais acompanhamos de perto com amigos e familiares), que nossas próprias trajetórias meritocráticas ganham forma. Articulando as datas comemorativas e apostando que as celebrações, para nós historiadoras, devem ser apropriadas como momentos para problematizações das desigualdades sociais, acho oportuno relacionar o Dia das Mães aos passados-presentes da escravidão e da liberdade e que constituem a história do Brasil.

Mãe preta

O Dia das Mães foi uma data que sempre me incomodou. Quando era criança, as festas na escola aconteciam sem a presença de minha mãe. Cresci ouvindo que ela não podia ir porque estava trabalhando. Penso que reside aí num desses becos de minha memória, uma das explicações do porquê ter me tornado uma historiadora das relações de gênero. Uma filha que em determinado momento da vida aprendeu a pensar que menos do que “não poder ir”, o dia e o horário das festas eram pensados para que minha mãe e outras trabalhadoras não estivessem lá, celebrando suas crias. Esse violento aprendizado da separação entre estudo e trabalho relaciona-se com desigualdades estruturadas de tal forma que nos fazem naturalizar – desde cedo – que existe o direito de estudar e o dever de trabalhar. Ainda hoje milhões de crianças são educadas assim. Ou seja, a partir da ideia de que devido ao fato de sermos negras e pobres, estudar significa aprender a ler, escrever e fazer contas. É por causa dos ecos desta visão racista relacionada ao passado da escravidão, à precariedade do trabalho no pós-abolição e ao ódio de classes (crescente nos últimos tempos) que na universidade ouvimos recorrentemente nossos estudantes de origem popular afirmarem “este lugar não é para mim”.

Em sociedades pós-escravistas, a ideia de que cada pessoa tem seu lugar permanece recriada de diversas formas. Basta observarmos os números do trabalho doméstico, de jovens negros assassinados por agentes do Estado e das 200.000 crianças e adultos (especialmente mulheres) que vivem em situação de escravidão. A convicção de que há lugares – de classe, raça, gênero, sexualidade – prontos e imexíveis, compartilhada descaradamente em debates parlamentares como o da redução da maioridade penal, do Escola sem Partido, da criminalização do aborto, dos estudos de gênero e do ensino de história da África e cultura afro-brasileira, para ficarmos apenas com alguns exemplos, fazem parte deste legado. Um legado que por seu turno confere sentido histórico à admissão do processo de impeachment contra a Presidenta Dilma Roussef (processo este até o presente momento anulado pelo presidente interino da Câmara, o deputado Waldir Maranhão).

A despeito das críticas ao governo, que não nos faltam, o que ocorre é que há um ódio generalizado frente às conquistas das classes pobres, que pela primeira vez em nossa história, ocupam (não sem barreiras e contradições) lugares antes exclusivos das classes altas. Se nos meus tempos senti saudade de muitas coleguinhas que foram embora da escola para trabalhar como empregadas domésticas, essa prática hoje, embora ainda aconteça, também diminuiu bastante graças a programas sociais como o Bolsa Família.

Tal política tem garantido o acesso a direitos essenciais como alimentação, educação e saúde. Infelizmente e não por acaso, pessoas (ditas) “de bem” não consideram em seus discursos de ódio contra pobres, negros, nordestinos, que a bolsa do governo, dividida em várias modalidades, que variam de R$35 e R$336 por mês (a depender da renda e do tamanho da família), contribui para combater a extrema pobreza no país. Isso relaciona-se com discussões sobre mulheres, maternidade e direitos. Relaciona-se com o compromisso de manter as crianças, onde eu creio que elas devem estar, na escola. Que bom que vivemos (ainda) em uma sociedade democrática, na qual temos os direitos de discutir a organização dos direitos e de escrever a história a partir de diferentes pontos de vista.

E por falar em combate à história única, o documentário Severinasde Eliza Capai, destaca-se como uma poderosa leitura ligada aos sentidos empoderadores que a maternidade pode assumir. Através da produção, conhecemos trajetórias de mulheres como Elenilde Ribeiro, Luzia Alves Rocha e Norma Alves Duarte, sertanejas de Guaribas, no Piauí. Por meio do Bolsa Família, elas e suas famílias experimentam o direito à maternidade e à família libertando-se (processualmente) da miséria, da fome e do domínio masculino. Cada história é uma, mas as trajetórias também discutidas na pesquisa de Walquiria Leão Rego e Alessandro Pinzani, convidam-nos a pensar em maternidades, regiões e experiências compartilhadas na diversidade uma vez que mais de 90% dos cartões BF estão em nome de mulheres-mães. Para quem se preocupa com o “bem de todos e a felicidade geral da nação”, vale olhar as recentes pesquisas que apontam que mais de 96% de estudantes de famílias beneficiadas pelo referido Programa Federal permanecem na escola.

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Foto: Elenilde Ribeiro, 39 anos, beneficiária do Bolsa Família em Guaibas (Piauí).

Para muitas pessoas da tradicional família brasileira, que durante toda a vida estudaram e tornaram-se naturalmente “intelectuais”, tais dados podem ser considerados irrelevantes, vitimistas ou, no senso comum mais estapafúrdio, um estímulo à pobreza e à natalidade “descontrolada”. Por meu turno, acredito que a narrativa de indignação das elites contra o Bolsa Família liga-se também a disputas desiguais em torno dos sentidos e direitos circunscritos a ser mãe no Brasil. A libertação da miséria proporcionada pelo BF faz-nos pensar que conquistar tem a ver com lutas diárias – individuais e coletivas – de organizações, famílias e sujeitos comprometidos com transformações que somente um governo democrático, que dialoga com os movimentos sociais pode assegurar.

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Ao comentar sobre transformações, precisamos também falar mais da necessidade de seguirmos lutando pelo respeito às diferentes concepções e formas de construir e experimentar a “família”. É necessário que façamos isso a partir de pontos de vista nos quais gêneros e sexualidades plurais e dissidentes sejam reconhecidos e respeitados.

A assinatura, em 28/04/2016, pela Presidenta Dilma do decreto que reconhece o direito ao uso do nome social e da identidade de gênero por pessoas trans em órgãos públicos federais, assim como o reconhecimento da família homoafetiva pelo Supremo Tribunal Federal, em 2013, fazem parte deste movimento democrático. Mas nem tudo são flores… Não dá para esquecer que vivemos num dos países que mais mata mulheres e homens que transgridem identidades de gêneros e sexualidades normativas. Ontem, ao entrar em um táxi lembrei das pessoas dissidentes com quem convivo e diariamente aprendo. Mulheres e homens trans que têm o direito à maternidade negado. Mulheres lésbicas que pagam altos preços ao desafiarem as associações entre maternidade e heterossexualidade. Pensando nos sentidos em disputa, vale ressaltar o movimento crescente em escolas, que substituem o Dia das Mães (e dos Pais) pelo Dia da Família. Trata-se de mobilização importante, no entanto, há ainda muito o que ser feito para que a maternidade não seja resumida a um acontecimento biológico e para que a representatividade homoparental não seja pensada como uma ficção, ilustrada por personagens que aparecem de tempos em tempos em telenovelas.

Frente a tantas urgências, como não se chocar com a propaganda de rádio do Democratas, veiculada no último dia 07 de maio? Uma doutrinação para que as pessoas de bem lutem contra a “ideia que o gênero se constrói durante a vida e não quando os bebês nascem”. Afinal, segundo a locutora, o DEM defende a certeza de que “a família é um projeto de Deus”. Em um país que lidera as estatísticas de crimes de transfobia, continuaremos lutando para que falas como essa sejam punidas e contestadas nas escolas e universidades. Manteremos nosso trabalho intelectual a serviço da diversidade de famílias e deuses que nos constituem como sujeitos. Como defendeu Mônica Lima, estaremos juntas “Pela desobediência” às histórias únicas. Um desobedecer praticado de forma instigante pelo movimento de ocupação das escolas estaduais do Rio de Janeiro, protagonizado por jovens negros e pobres, estudantes do Ensino Médio, que têm construído em seus próprios termos a escola em que acreditam.

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Foto: Cartaz confeccionado pelxs estudantes do Colégio Estadual Visconde de Cairu no bairro do Méier. #ocupacairu, abr. 2016

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Neste mês de maio, como mãe, desejo um Feliz Dia das Mães especial para as 13,9 milhões de beneficiárias do Bolsa Família. Mulheres brasileiras responsáveis por cuidar de meninas como Mirele Alves da Rocha Lima. Uma jovem, que do auge de sua sabedoria de 18 anos, nos ensina, no mês de aniversário da abolição da escravatura, sobre as lutas pela liberdade :

“Eu vejo a realidade da minha mãe e não quero seguir pelo mesmo caminho. Eu quero estudar para ter um futuro, para ser independente, para não ficar dependendo de um homem”.

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Com que fantasia eu vou?

07/02/2016 – Domingo de Carnaval. A expectativa da abertura do desfile das escolas do grupo especial coexistia com o transcorrer de aproximadamente cem blocos que flanavam pela cidade desde 9h da matina. Lá em casa, o espírito de equipe falou mais alto. E assim integrei-me ao público do Cordão do Boitatá, com marido e filho. Nos primeiros quinze minutos de andança na Praça XV, avistei um homem fantasiado de “cego” e uma mulher vestida de empregada doméstica, “dando voz” à criatividade das desigualdades, com direito a espanador e avental. Fechando o trio, esbarrei com outro homem que ostentava as vestimentas de preto-velho. Branco como os demais, este último caprichou no black face, no black body e em tudo que tinha direito, incluindo abordagens não consentidas para ofertar consultas a mulheres que passavam. Os três personagens ganharam reforços com a inestimável criatividade da família que escolheu homenagear seu filho, um menino negro, com a fantasia de macaco (tudo bem, era o macaco Abu da Disney!). Uma situação alvo de fortes críticas como a de Mariana Emiliano. Esse hábito de se fantasiar no carnaval reproduzindo representações racistas (sempre de um “outro”) com a intenção de fazer rir “é coisa da antiga”. Já no século XIX, Martha Abreu nos conta sobre diabinhos e Pais Joãos que faziam gargalhar foliões em cordões, ranchos e bailes. Deixei o Cordão do Boitatá perguntando-me: quais as fronteiras entre opressão e brincadeira? Como defini-las?

As perguntas, embora novas, foram formuladas em diálogo com Gabriela Monteiro. Menos do que presidir julgamentos individuais ou, nas palavras da autora, tornar-me “consultora política da folia”, desejo conversar sobre os diferentes sentidos que uma fantasia pode assumir, tanto para quem usa quanto para quem a vê. Esses sentimentos relacionam-se com a história do país e de seus sujeitos. Eles dizem respeito às histórias de afirmação, preterimento ou opressão que carregamos em nossos corpos. A depender dos corpos fantasiados, tais histórias falam de nós. Por nós. Ou sobre nós.

Se o pessoal é político, é pertinente questionar o universalismo presente na ideia do “direito de escolha”. “Para não fazer feio” um caminho é se indagar sobre as motivações para escolha de um traje carnavalesco. Por que se fantasiar de trabalhadora doméstica em um país que apenas em 2013 regulamentou esta profissão? Em que medida, o “direito de escolha” de incorporar a empregada compactua com estereótipos de hipersexualização, particularmente das mulheres negras, nacionalmente mais de 50% dessa categoria? O que pensar na manutenção de blocos como o Domésticas de Luxo, exclusivo para homens brancos, que promovem um espetáculo de racismo e machismo nas ruas de Juiz de Fora?

Domésticas de luxo - Carna 2016Desfile do Bloco Domésticas de Luxo, 2016.

No caso da família Aladin: como enfrentar a realidade, mediada por confetes e serpentinas, de uma criança negra vestida de macaco devido ao “direito de escolha” de seus pais? Que relações esta fantasia “carinhosa” guarda com a cultura da “justiça com as próprias mãos”, ilustrada por recorrentes linchamentos de jovens negros em bairros de classe alta? Com medidas governamentais como a diminuição expressiva dos ônibus que ligam a zona norte à parte sul da cidade? Ou com operações policias proibindo adolescentes, em sua maioria, negros e pobres de seguirem viagem até a orla carioca? Quanto ao traje de preto-velho: como pensá-lo frente às perseguições, agressões físicas e verbais de praticantes das religiões de matrizes afro-brasileiras, incluindo crianças apedrejadas e proibidas de frequentarem escolas? Embora compartilhe da opinião da historiadora Erika Arantes sobre a diminuição do número de “negas malucas” nos blocos cariocas este ano, os exemplos acima permanecem evidenciando racismos, machismos e assédios construídos historicamente e que são naturalizados ou desqualificados como brincadeiras de carnaval.

Sabe-se, no entanto, que, desde as primeiras décadas do século XX, o Carnaval também foi marcado por contestações políticas em clima de sátira e pilhéria. A expressão elefante branco foi criada e encenada nos festejos de momo de 1910 em referência à compra pelo governo brasileiro do navio Minas Gerais, o encouraçado de uma tonelada que nunca foi à guerra pela Marinha de Guerra, como mostrou em suas pesquisas o historiador João Roberto Martins Filho. A criação de cordões carnavalescos como O Macaco é o Outro por homens e mulheres negros revelam o papel de descendentes de escravos na subversão de estigmas e estereótipos que lhes eram atribuídos, de acordo com pesquisas de Eric Brasil. Lembrando-me desses exemplos, senti que em 2016, a conversa sobre usos políticos das fantasias tornou-se mais forte. No lendário ensaio técnico do Salgueiro, Cris Alves e Vivi Araújo causaram atravessando o sambódromo fantasiadas das pombagiras Maria Navalha e Maria Padilha. A repercussão foi enorme, gerando debates sobre gênero, raça e racismo entre feministas negras como Djamila Ribeiro, Stephanie Ribeiro e eu própria. No dia seguinte ao desfile da comunidade salgueirense, a funkeira Ludmilla, musa da escola, sofreu manifestações explícitas de racismo por usar uma peruca black power, comparada à palha de aço Bombril por Val Marchiori na Rede TV. Cidinha da Silva analisou com categoria o incômodo da socialite como parte da peleja estereótipos raciais x empoderamento negro.

Ludimila - Musa do SalgueiroLudimilla, Musa do Salgueiro, no Desfile 2016 (Foto: Isac Luz/EGO).

Existem sentidos em disputa na escolha, criação e uso de uma fantasia. As representações de Fridas Kahlo, Ganeshas, Dandaras, Panteras Negras, Pombagiras como lembrou a psicóloga Amana Mattos, coordenadora do Núcleo de Pesquisa e Desconstrução de Gêneros, merecem atenção. Tais personagens, vistas em quantidades expressivas em blocos, são encarnadas por mulheres que lançam mão do “direito de escolha” para afirmar e conferir visibilidade às lutas pela igualdade de gênero e raça ao longo da história. Nesses casos, os sentidos em disputa trazem instigantes questões sobre feminismo, raça e empoderamento. O que dizer das discussões de Joice Berth acerca das relações entre o arquétipo das pombagiras e as lutas feministas? Quais os sentidos históricos de fantasias como a da Squel? A porta-bandeira da verde e rosa encantou a avenida com o belo bailado e seu inesquecível sorriso. A impecável maquiagem, inspirada nas pinturas das iaôs (filhas de santo iniciadas), divide opiniões sobre o direito de publicizar referências sagradas. Nos dizeres da socióloga Elizabeth Viana, trata-se de “outros tempos”. Tempos nos quais símbolos impensáveis de serem levados para fora do terreiro tornam-se de domínio público. “Outros tempos” que nos fazem pensar nas fronteiras entre sagrado e profano. Direito e respeito. Afirmação e apropriação cultural…

Squel Jorgea               Squel Jorgea, porta-bandeira da Mangueira, escola campeã do Carnaval 2016. (Foto: Michele Iassanori).

No mote dos sentidos em disputa, a fantasia do que não se quer ser garantiu espaço na folia para conferir visibilidade às lutas políticas protagonizadas cotidianamente. No jocoso faz de conta, algumas personagens tornaram-se marcantes:

Lolo Figueroa, de Luana Teofilo. Luana descreveu assim sua socialite-paneleira e usuária do pau de selfie: “Lolo não é racista, mas acha que lugar de moreninho não é na universidade ao seu lado, pois cada um deve ficar no seu devido lugar. As flores no cabelo mostram um certo clima hippie chic, afinal ela quer paz e amor com o apoio do aparelho policial do Estado para defender seu patrimônio e os seus”.

Lolo Figueroa - Carna 2016(Foto: Reprodução/Facebook)

Patricinha Gratidão, concebida por Caroline Cavassa, feminista interseccional Caracterizada com uma indefectível white face, que deixava os foliões em dúvida sobre sua “verdadeira raça”, a patricinha distribuiu bambolês na Praça XV para pessoas brancas, professando o bordão “Namastê, estou fantasiada de você”. No dia seguinte, desdobramentos na versão “Paquita Gratidão” eram ostentadas no Bloco Comuna que Pariu.

Patricinha Gratidão - Carol Cavassa                (Foto: Reprodução/Facebook)

Mulata do Gois #sqn/E por acaso eu sou fantasia?, da Giovana Xavier. Concebida para o Bloco Comuna que Pariu, que trouxe o enredo “Na raça, contra o racismo”, a fantasia representou uma resposta ao devaneio de Ancelmo Gois de escolher Grazi Massafera como a mulata da coluna. No país da “democracia racial”, a eleição de uma mulata branca para chamar de “sua” revela intersecções de gênero, racismo e machismo que nenhum laço cor de rosa poderia dar conta.

A Mulata do Gois - Carna 2016.jpg                  (Foto: Reprodução/Facebook)

P.S. As fantasias escolhidas são de autoria de mulheres negras que botaram o bloco na rua. Para desespero de Lolo Figueroa que não para de pensar “o Brasil está realmente mudando…”

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