Sob Nova Direção (Registro da Posse de Ana Flávia Magalhães Pinto como Diretora Geral do Arquivo Nacional)

As historiadoras do Projeto Passados Presentes, bem como parte expressiva da comunidade que faz pesquisa em história no Rio de Janeiro, marcaram presença na posse da nossa companheira de Blog, Ana Flávia Magalhães Pinto, como Diretora Geral do Arquivo Nacional, na sexta-feira, 17 de março, no Centro do Rio de Janeiro, sob o olhar orgulhoso da grande Sueli Carneiro.

KEILA GRINBERG, MÔNICA LIMA, HEBE MATTOS E MARTHA ABREU, COORDENADORAS DO PROJETO PASSADOS PRESENTES.

HISTORIADORES, PRESENTES! Na foto acima, Fernanda Crespo, Amilcar Pereira, Alvaro Nascimento, Alessandra Tavares, Martha Abreu, Janete Ribeiro, Ivana Stolze Lima, Alexandre Fortes, Fabiane Popinigis, Hebe Mattos, Fernanda Bicalho, Maria Regina Celestino, Angela de Castro Gomes, Marcus Vinícius de Oliveira, Elson de Assis Rabelo, (agachados da esquerda para a diteita) João Paulo Lopes, Vinicius Natal e Gabriel Gabu. Na foto abaixo e no cabeçalho do artigo, Janete Ribeiro, Monica Lima, Amilcar Pereira, Leandro Bulhões, Alvaro Nascimento, Dom Filó, Ana Flavia Magalhaes Pinto, João Paulo Lopes, Diana Souza, Marcus Vinícius Oliveira, Elson de Assis Rabelo e Alessandra Tavares

Foi uma cerimônia histórica, encaminhada pela voz potente e emocionante de Hilton Cobra e pela prosa de Lima Barreto. Com a participação de duas ministras de estado e outros representantes do Ministério da Gestão e Inovação, com discursos de Sueli Carneiro, do historiador indígena Edson Kaiapó e da ativista feminista trans Sarah Wagner York. Com direito a cantar o hino nacional à capela e a encontrar Conceição Evaristo e muita gente bacana na plateia. As fotos abaixo, em sua maioria pelo celular de Hebe Mattos, não são profissionais, mas dão boa ideia da emoção do evento.

Conceição Evaristo com Equede Sinha.

Lúcia Grimberg e Keila Grinberg, Maria Fernanda Bicalho e Ângela de Castro Gomes, Hebe, Martha, Eric Brasil e Yaci Maia, Hildete Pereira. Nas demais fotos: Maria Regina Celestino, Mônica Lima, Alvaro Nascimento, Hebe Mattos, Martha Abreu e Amilcar Pereira.

Ana Flávia Magalhães Pinto com Hebe Mattos, Alvaro Nascimento, Alexandre Fortes e Fabiane Popiginis. Na foto embaixo, Edson Kaiapó e parentes.

Os Arquivos Nacionais são instituições centrais para a gestão da memória nacional. Como a cerimônia de posse bem sinalizou, uma historiadora brilhante, corajosa e inovadora está a frente do AN!!!!! Parabéns e boa sorte, Ana Flávia!!!!!!

Ana Flávia Magalhães Pinto e a equipe que assume com ela a direção do Arquivo Nacional, Eric Brasil, Leandro Bulhões, Gecilda Esteves, Diana Souza, Monica Lima, Jader Moraes e Fabio Costa de Souza.

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De Moçambique ao Moçambique!

Há muito tempo não fazia um texto solo neste Conversa de Historiadoras, que nasceu a quatro mãos e depois virou obra ainda mais coletiva.

Neste domingo, porém, ele é necessário, porque quero saudar algumas das companheiras de blog, que estão fazendo a diferença neste início de ano e contar de um novo projeto de pesquisa, coletivo, é claro, que estou coordenando na UFJF.  

Pensar a história como ciência social que propõe questões sobre os seres humanos no tempo e, por conta disso, impacta e condiciona a produção de narrativas sobre o passado, é premissa que tem orientado meu trabalho de historiadora neste século XXI. Formular novas questões de pesquisa, a partir de novos lugares sociais de observação, que possam levar a novas narrativas e abordagens da história do Brasil, é também fio condutor deste blog e de suas conversas e norteou nossa última iniciativa coletiva, o curso Emancipações e Pós-abolição: por uma outra história do Brasil.

Uma outra história do Brasil em relação a qual história? Tentei responder esta questão na primeira aula daquele curso. Não vou repetir por aqui tudo que falei por lá, mas entre as instituições de memória que surgiram com a emergência dos estados nacionais no contexto das independências americanas, os Arquivos Nacionais ocupavam lugar de destaque. Entre eles, o Arquivo Nacional Brasileiro, criado pelo estado imperial, “pelo regulamento n. 2, de 2 de janeiro de 1838, com o nome de Arquivo Público do Império, visando a guarda dos documentos relativos à memória nacional e à administração do Estado”. Desde então, a política do que deve ser guardado para a história e o que deve ser esquecido na experiência de gestão política do país passa por essa instituição.

Neste contexto, o anúncio para a direção do AN da nossa colega de blog Ana Flávia Magalhães Pinto, autora de uma vigorosa reflexão historiográfica com novas e iluminadoras questões sobre a experiência negra no Brasil, para além do trauma escravista, é notícia para ser celebrada. Depois de quatro anos de obscurantismo, ela é garantia não apenas de uma gestão acadêmica e profissional, mas também de um olhar inovador e corajoso a frente de uma instituição chave na produção da memória nacional e do racismo institucional que ainda a condiciona.

Ana Flávia Magalhães Pinto nomeada nova diretora do Arquivo Nacional. Foto de Divulgação.

O Blog está com tudo e está prosa. Novas histórias do Brasil, abraçando todos os brasileiros, parecem ainda mais possíveis e mais próximas.

Enquanto isso, na virada do ano, Martha Abreu associava nossa experiência de pesquisa sobre a história e memória do tráfico ilegal de escravizados no atual quilombo do Bracuí, às lideranças do próprio quilombo, ao Laboratório de Arqueologia de Ambientes Aquáticos da UFSE e à equipe de cineastas da Aventura Produções e Edições Educativas, em parceria com o Slave Wrecks Project do Smithsonian Institution National Museum of African American History and Culture, para criar o projeto Afrorigens: dos naufrágios ao quilombos, que já ganhou teaser e página na internet.

O projeto de história e arqueologia públicas revisita o naufrágio criminoso do brigue escravagista Camargo, por seu comandante, o estadunidense Capitão Gordon, após o desembarque ilegal de 503 africanos vindos de Moçambique nas praias da antiga fazenda do Bracuí. Em colaboração com a comunidade quilombola e sua tradição oral, Afrorigens busca registros do passado para alcançar um futuro mais inclusivo. Vale a pena conferir:

Martha Abreu, Marilda de Souza, liderança quilombola e a equipe de arqueólogos e mergulhadores do projeto Afrorigens.

Por fim, como coordenadora do grupo de pesquisa emancipações e pós-abolição em Minas Gerais (GETP-MG), em parceria com a Rede de Patrimônios Imateriais Afroameríndios e Políticas Públicas na América Latina (IRD-FR) e mais cerca de 40 pesquisadores de diferentes universidades, também atuantes no chão da escola, terminei 2022 com a alegria de ver aprovado, no edital Humanidades de CNPq, o projeto Passados Presentes: patrimônios e memórias negras e afro-indígenas em Minas Gerais.

Dos egressos de Moçambique que deram origem ao Quilombo do Bracuí ao vigor do Moçambique, signo maior de africanidade do patrimônio negro de Minas Gerais, delineia-se uma nova etapa do projeto transnacional Passados Presentes (LABHOI/ UFJF/UFF e CLAS/PITT). Propomos dessa vez, como problema de pesquisa, estudar as interações afro-indígenas na história e na memória de quilombolas e de detentores de patrimônios negros como reizados, congadas, moçambiques, jongos e folias de reis, nas Minas Gerais a leste da Mantiqueira, bem como as relações dessas manifestações e de seus sujeitos com a história da África, do associativismo negro e das religiões de matriz africana na região.

A partir de dezenas de pesquisas já em andamento, a ideia é explorar a memória das relações afro-indígena como elemento constituinte da negritude mineira contemporânea em diferentes espaços e temporalidade, com destaque para: 1) a região histórica da mineração, alvo do impacto da imigração maciça de colonizadores portugueses e escravizados africanos sobre áreas indígenas no século XVIII, em torno de Ouro Preto e Mariana, 2) as regiões que se conectaram mais diretamente com a imigração forçada da última geração de africanos e com o processo de etnocídio e desterritorializacão das populações originárias que ainda ocupavam as áreas de ligação entre a região do ouro e os portos do Rio de Janeiro e de Salvador, no século XIX, como o Sul de Minas, o Campo das Vertentes, a Zona da Mata e os Vales do Mucuri e do Jequitinhonha e 3) as cidades que receberam migrações negras no pós-abolição, com destaque para a capital, Belo Horizonte e a cidade de Juiz de Fora.

Os resultados da pesquisa de base vão alimentar o arquivo oral colaborativo Memórias do Cativeiro (LABHOI/UFF/UFJF)/ Afro-Brazilian Heritage (CLAS/PITT) e o banco de dados Passados Presentes: memória da escravidão no Brasil, alargando possibilidades de análises comparadas em novas pesquisas. Serão também divulgados na Plataforma Digital do projeto, tornando-se acessíveis aos detentores dos patrimônios culturais estudados, alguns deles pesquisadores do grupo, permitindo sua utilização na produção de material paradidático, em museus de território, em exposições e aplicativos de memória. O diálogo epistemológico entre saberes se coloca como ferramenta metodológica e desafio teórico do trabalho.

Divulgo, com alegria, a equipe completa do projeto. Enquanto não colocamos no ar nossa plataforma digital, vamos dar notícias do projeto e de sua equipe por aqui.

Para todos nós!

Bom trabalho!

PROJETO: PASSADOS PRESENTES – PATRIMÔNIOS E MEMÓRIAS AFRO-INDÍGENAS EM MINAS GERAIS.

Coordenação Geral: Hebe Mattos (Grupo de Pesquisa Emancipações e Pós-Abolição e LABHOi/Afrikas, UFJF) – hebe.mattos@gmail.com

Coordenação Associada: (PROJETO E BANCO DE DADOS Passados Presentes)

Martha Campos Abreu (LABHOI-UFF) – marthacabreu@gmail.com

Keila Grinberg (CLAS-PITT – UNIVERSITY OF PITTSBURGH) keila.grinberg@gmail.com

Coordenação Executiva (Pesquisa – MG):

Ana Luzia Morais – analuziadasilvamorais@gmail.com (Detentora)

João Paulo Lopes – jopalop@gmail.com (IFSULDEMINAS)

Lívia Nascimento Monteiro – livia.monteiro@unifal-mg.edu.br (UNIFAL-MG)

Jonatas Roque – jonatasroque4@gmail.com, jonatashistoria2010@hotmail.com

Josemeire Alves Pereira – josemeire.hist@gmail.com (FLACSO)

Mariana Bracks Fonseca – marianabracks@academico.ufs.br (UFS)

Pesquisa de arquivo/campo – produção de conteúdo:

Ana Luzia Morais – analuziadasilvamorais@gmail.com

Aline Guerra da Costa – agcosta@id.uff.br

Amanda Lira – amandalira2166@gmail.com

André Luiz Ribeiro de Araújo – andreclassrock@hotmail.com

Carolina dos Santos Bezerra-Perez – carolinaacoesafirmativas@gmail.com

Cleo Souza – cleosouzalh@gmail.com

Daniele Neves – danieleneves1793@gmail.com

Dayana Oliveira – dayanaoliveira01ufjf@gmail.com

Giovana Castro – racinacastro@gmail.com

Isaac Cassemiro Ribeiro – – isaac.ribeiro7@gmail.com

João Paulo Lopes – jopalop@gmail.com

Janete Flor de Maio Fonseca – flormaio@ufop.edu.br

Jéssica Mendes – JESSICAMENDESHIST@gmail.com

Jonatas Roque – jonatasroque4@gmail.com, jonatashistoria2010@hotmail.com

Josemeire Alves Pereira – josemeire.hist@gmail.com

Lívia Nascimento Monteiro – livia.monteiro@unifal-mg.edu.br

Luciano Magela Roza – luciano.roza@ufop.edu.br

Luis Roberto Cruz – luis.cruz@engenharia.ufjf.br

Luiz Gustavo Cota – luiz.g.cota@ufv.br

Luan Pedretti (UFJF) – luanpredetti@gmail.com

Mariana Bracks Fonseca – marianabracks@academico.ufs.br

Maria do Rosário – maria.mrgs@gmail.com

Marlon Marcelo – marlonmarcelo.s@gmail.com

Marileide Lázara – marileidelazara@gmail.com

Roseli dos Santos – selix07@hotmail.com

Rhonnel Américo – rhonnelcoach@gmail.com

Samuel Avelar – savelarjr@gmail.com

Sidnéa Francisca dos Santos – sidnea.ouropreto@gmail.com

Silvia Maria Jardim Brügger – sbrugger1970@gmail.com

Simone Assis – sissamones@hotmail.com

Tayane – tayanearo@gmail.com

Tailane de Oliveira Dias – tailane.o.dias@gmail.com

Vanessa (UFJF) – vanessaloopes13@gmail.com

Consultoria de produção de conteúdo relacionando Minas Gerais, História Pública e História da África:

Fernanda do Nascimento Thomaz (LABHOI/AFRIKAS-UFJF) – fefathomaz@yahoo.com.br

Mônica Lima e Souza (LE AFRICA, UFRJ) – monicalimaesouza@gmail.com

Vanicléia Silva Santos (University of Pensilvania) – vsantos@upenn.edu

Produção de conteúdo didático:

Lívia Nascimento Monteiro – livia.monteiro@unifal-mg.edu.br

Luciano Magela Roza – luciano.roza@ufop.edu.br

Luiz Gustavo Cota – luiz.g.cota@ufv.br

Consultores de conteúdo / Rede Patrimônios Afro-ameríndios na América Latina

Christine Douxami (IRD-Brésil) – chrisluabela@yahoo.fr

Carolina Christiane de Souza Martins (UFPA) – caroldesouzamartins@gmail.com

Matthias Assunção (UNIVERSTY OF ESSEX) – matthias_capoeira@yahoo.com.br

Consultores de conteúdo/ Parceiros na UFJF

Mateus Andrade – mateus.rezende@gmail.com (LAHES)

Robert Daibert Jr – robertdaibert@uol.com.br (LABHOI)

Marcos Olender – marolender@yahoo.com.br (LAPA)

Congado e Moçambique de Pidedade – MG

https://www.facebook.com/CongadaeMocambique/

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Arquivado em democracia, história e memória, história pública, Patrimônio Cultural, Pos-abolição

O Conversas de Historiadoras pede passagem em 2023

Muito ocupadas (como de hábito) desde as eleições, voltamos agora para saudar o novo ano e a vitória da democracia. Não prometemos periodicidade, mas o blog continua ativo.

Aproveitamos para convidar todos que estiverem no Rio para uma conversa com Hebe Mattos e Mônica Lima na livraria da Travessa, em Botafogo, para o lançamento do livro Cartas de África, de André Rebouças, organizado por Hebe Mattos. Martha Abreu garantiu presença e Keila Grinberg fez uma linda resenha sobre a obra para o site da editora, que reproduzimos logo depois do convite. Vale a leitura.

O SOL AFRICANO DE ANDRÉ REBOUÇAS

Keila Grinberg

“Necessito de floresta virgem e de sol africano.” É assim que André Rebouças se despede de Antônio Júlio Machado, responsável pelo projeto de construção da estrada de ferro de Luanda a Ambaca, em Angola. André escrevia de Marselha, de onde tentava conseguir emprego para ir trabalhar na África. Era fevereiro de 1892, e d. Pedro ii falecera alguns meses antes, em Paris. Rebouças tinha saído do Brasil com a deposição da Monarquia, em novembro de 1889, e acompanhara a família imperial em seu exílio em Portugal e na França. A morte do imperador, por quem Rebouças devotava verdadeira veneração, havia sido um golpe duro, e ele nem cogitava retornar ao Brasil.

Na carta seguinte, endereçada ao seu grande amigo Taunay, explica seus planos: “Nada posso fazer de melhor do que ir à Africa: escrever um livro tolstoico — Em torno d’África — e esperar por lá que termine a expiação aguda dos seculares pecados do Brasil escravocrata e monopolizador de terras em latifúndios indefinidos”. Em fins de março, André embarca no navio Malange, de onde segue para Moçambique. Não retornaria ao Brasil. Desgostoso com o país, estava decidido a dar o resto de sua vida “ao continente de seus pré-avós africanos”.

Com organização de Hebe Mattos, Cartas da África: registro de correspondência, 1891-1893, de André Rebouças, é uma seleção de cartas, quase todas inéditas, escritas entre outubro de 1891 e julho de 1893. Conhecido por seus diários, André também guardava em cadernos cópias das cartas que enviava — de onde saiu o material publicado agora. Nem bem lançado, o livro, primeiro volume de uma série de cinco devotada aos escritos de André Rebouças, já estava entre os melhores lançamentos de 2022. Cartas da África não só é um dos lançamentos mais importantes de 2022, mas é livro para se tornar referência imediata para especialistas e interessados no tema.

Em primeiro lugar, por trazer novidades fundamentais para o estudo da vida e do pensamento de André Rebouças, um dos maiores intelectuais de seu tempo. Resultado de décadas de pesquisa, as cartas do exílio eram praticamente desconhecidas até mesmo dos estudiosos. Foram organizadas de forma a demonstrar o cotidiano, os percalços e, principalmente, as visões de André Rebouças. Ao lê-las, conhecemos um homem com saudade dos amigos, preocupadíssimo com os rumos do Brasil, atento ao que se passava nas repúblicas vizinhas da Argentina e do Chile e, principalmente, à sua volta. Não escaparam de seus olhos episódios de violência em Lourenço Marques, atual Maputo, em Moçambique, e principalmente em Barberton, na África do Sul, que Rebouças relaciona à violência racial e às práticas da escravização.

A escolha de iniciar o mergulho na correspondência de André antes de sua viagem à África foi particularmente feliz. As cartas do período da morte de d. Pedro ii mostram que a decisão de deixar a França e não retornar ao Brasil está relacionada à ausência de perspectivas que o falecimento do monarca significava para ele. Afinal, como escreve em agosto de 1892 a seu amigo Rangel da Costa, “o Brasil sem d. Pedro ii […] parece-me o vácuo, a venialidade”. Rebouças abominava o regime republicano como havia sido implantado no Brasil. Na mesma carta, continua: “E essa pobre gente? Ainda não compreendendo em que foram conquistados por militares ambiciosos e por politicantes e agiotas sem o mínimo exemplo? Se o Brasil pudesse ser república, desde muito o presidente seria Pedro ii e o secretário André Rebouças. Sair da senzala da escravidão e embarafundar pelo quartel da soldadesca sanguinária e bárbara, sem remorsos de fuzilar e bombardear, não é fazer república, é baixar ao último degrau da barbárie”. Cartas da África se encerra com a chegada de Rebouças a Funchal, onde viveria até sua morte, em 1898. As cartas desse período serão publicadas no último livro da série.

Tão importante quanto a organização e a divulgação das cartas de exílio é a belíssima leitura que Hebe Mattos faz no posfácio. O André Rebouças que ela apresenta não é o patrono da engenharia brasileira, título pelo qual ele e seu irmão Antônio Pereira Rebouças Filho são mais conhecidos, mas o abolicionista monarquista e sua aguda percepção racial. Mesmo desiludido com o Brasil, Rebouças não deixava de combater os interesses escravocratas onde os percebia, e via a si próprio cada vez mais como africano.

Hebe reflete sobre a trajetória dos Rebouças no contexto da institucionalização do racismo brasileiro e dos “dolorosos processos de branqueamento” que tanto ainda marcam a sociedade brasileira. Se, como Hebe argumenta, o próprio André não foi embranquecido pela memória coletiva posterior, a história de sua família foi comumente celebrada como prova da possibilidade de ascensão social dos negros livres no Império e, depois, como evidência da inexistência de racismo no Brasil. Mas a análise de Hebe mostra justamente o contrário.

Na década de 1890, o que André queria era encontrar a paz no sol africano e na floresta virgem — cuja obrigação de civilizar, aliás, cabia aos europeus, que tanto haviam lucrado com séculos de escravização. Vencido pela melancolia, viveu plenamente sua “dupla consciência”, expressão usada por Paul Gilroy em O Atlântico negro para definir o profundo dilema da modernidade, que, em larga medida, foi enfrentado por Rebouças em toda a sua existência: o do homem universal, crente na ciência e no potencial redentor da civilização ocidental e ao mesmo tempo profundamente consciente de sua negritude e de seu próprio passado africano. Impossível continuar a ver André Rebouças da mesma maneira depois de ler o posfácio de Hebe Mattos.

Devo concluir advertindo que sou mais do que suspeita para escrever sobre Cartas da África. Sou fã de carteirinha das edições da Chão, uma das iniciativas mais instigantes do meio editorial brasileiro e um presente para nós, historiadores. Além disso, estudo a família Rebouças há mais de vinte anos, e embora Hebe generosamente afirme que nós duas dividimos achados e reflexões sobre o tema, a verdade é que sou eu que sigo seus passos. Por isso, se fosse a leitora deste texto, eu desconfiaria e correria à livraria mais próxima para ler Cartas da África por conta própria.

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É Dia de Voto!

Vale a pena conferir o lindo painel da ANPUH nacional, no site HISTÓRIA ABERTA, com dezenas de depoimentos de “Como Vota a Comunidade Historiadora?

As historiadoras do blog atuaram ativamente no período eleitoral, com artigos de opinião em diversos veículos. Reproduzimos aqui o depoimento das coordenadoras do projeto Passados Presentes, que participaram da chamada da ANPUH NACIONAL, para registro aos que nos acompanham e na esperança de que a democracia vencerá a eleição mais decisiva da nossa história.

Sou Hebe Mattos. Historiadora. Professora da UFJF e da UFF. Meu voto é público e todos que me acompanham o conhecem. Voto Lula13, sobretudo e antes de tudo pelo futuro do planeta e da democracia no Brasil.

Como profissional de história que pesquisa sociedades escravistas e pós-escravistas no mundo atlântico, tornei-me ativista antirracista. Como avó de três netos de uma família homoafetiva, sou parceira em tempo integral da luta por direitos da comunidade LGBTQIA+. Como intelectual, os limites colocados pelo modelo de desenvolvimento capitalista em vigor à construção de uma sociedade menos desigual e ao futuro da vida no planeta são questões que considero centrais em qualquer eleição. Neste cenário, Lula sempre foi o meu candidato.

Não porque tenha respostas a todas as minhas demandas, mas porque ele e seu partido, o PT, quando governaram o Brasil, souberam canalizar, democraticamente, as divergências e potencialidades do país para implementar reformas possíveis e há muito demandadas pelos movimentos negro, ambientalista, de trabalhadores e pela igualdade de gênero.

A espiral reacionária que enfrentamos é resposta ao muito que avançamos. Sua força é a força do passado, avisamos nós, que participamos do movimento historiadores pela democracia em 2016.

Naquele momento, o Brasil dava o passo decisivo para quebrar o frágil equilíbrio da república de 1988. O atual presidente e todo o seu show de horrores são consequências lógicas do teatro macabro daquele 17 de abril, em que um então deputado votou em homenagem a um torturador e à ditadura militar e foi aplaudido no congresso nacional. A prisão ilegal de Lula e a eleição de um presidente de extrema direita foram desdobramentos da caixa de pandora então e ainda aberta.

Como historiadora, não subestimo a força do passado. Como democrata, procuro saídas para construir diálogo político com todos os eleitos no primeiro turno dessa eleição. Incluindo os representantes do movimento reacionário ora no poder. Lula é a pessoa certa no lugar certo. Precisamos de sua capacidade de diálogo e escuta.

Esta eleição tem a força de um plebiscito entre democracia e autocracia, entre cidadania para todos e a institucionalização do ethos colonial que informa a história profunda do país. Um país que gere a maior reserva verde do planeta. Estou preocupada e, ao mesmo tempo, esperançosa. Não temos plano B, mas temos Lula.

Faço parte de uma geração que não lutou diretamente contra ditadura. Éramos muito jovens. Minha geração lutou mesmo pela redemocratização, pelas Diretas já e por uma Constituição que garantisse direitos a todos. Ditadura nunca mais!!! A partir do final dos anos 1970 e ao longo dos anos 1980, participamos do renascimento do movimento estudantil, do movimento de bairros, de mulheres, de professores, do movimento dos meninos de rua e das lutas pelas Diretas Já! Para quem era professor nos anos 1980, foi com muita esperança que vivemos a política dos CIEPS no Rio de Janeiro, que conseguimos acabar com o famigerado Estudos Sociais implantados na ditadura, que ajudamos a construir o Estatuto da Criança e do Adolescente e que aprendemos a importância da memória para as lutas políticas. Acompanhamos o nascimento do PT, do MST e do movimento LGBT, assim como o crescimento dos movimentos negro e indígena. Nos anos 1980, sentíamos que era possível mudar, transformar, construir e sonhar.

Estamos de novo num momento de ter esperança de um tempo melhor e de reconstruir o que foi violentamente interrompido e despedaçado. Voltar a sonhar para mim é também não esquecer! Não esquecer tudo o que vivi e vivemos como professores, como professores de história, entre 2003 e 2016: as políticas educacionais, tão visíveis no investimento em pesquisa, distribuição de livros didáticos, Leis como 11635, ampliação do número de universidades, institutos federais e ações afirmativas; e as políticas culturais inclusivas, que ampliaram a cidadania e a distribuição de renda, ao reconhecerem os patrimônios das culturas negras, indígenas e populares.

Nós não vamos esquecer! O voto em Lula é para mantermos e ampliarmos os direitos conquistados, para continuarmos a ter esperança em um Brasil diverso, antirracista e inclusivo, onde tenhamos direito à história, uma história justa para todxs.

Voltar a sonhar é votar em Lula 2022!

Martha Abreu é professora do programa de pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense.

Nesse domingo eu não vou votar. Morando nos Estados Unidos, tive que fazer a escolha – esta sim, muito difícil — entre o primeiro e o segundo turnos. Apostei no primeiro, ajudei a eleger duas deputadas, perdi no senado e no governo do Estado do Rio de Janeiro, e como faço desde 1989, votei no PT para presidente.

Como historiadora da escravidão e do direito, não concebo que seja possível votar em outro candidato que não o Lula. Quando se trata da luta por direitos, a prioridade máxima é a da luta antirracista. É claro que há ainda um longuíssimo caminho a percorrer para romper de vez com o privilégio branco; mas não podemos admitir nenhum retrocesso, nem compactuar com falas e práticas racistas pregadas pelo atual governo.

Voto em defesa das famílias brasileiras. Famílias com mães e avós solteiras, dois pais, duas mães, um pai e uma mãe, e qualquer outra configuração gerada pelo amor. A minha é composta por duas mulheres, duas filhas, três enteados e um ex-marido. Não há lugar para ela no Brasil do atual presidente.

Voto também em defesa das religiões. A batalha pelo reconhecimento da diversidade religiosa será longa, e não avançaremos se não reconhecermos a legitimidade de todas as crenças e descrenças da nossa sociedade. Eu, judia descrente, defendo até mais não poder o direito de cada um poder ir à sua igreja, ao seu terreiro, à sua sinagoga. É como judia também que voto no Lula, assim como votaria em qualquer candidato que se contrapusesse ao fascismo; e hoje nenhum de nós pode dizer que não sabia que o atual governo tem o fascismo como princípio. Os judeus que se aliam à extrema direita dão as costas para a História. Zombam dos seus antepassados.

Por fim, voto como cidadã deste planeta. Voto pela Amazônia. Com o Lula lá, talvez, quem sabe, ainda haja uma possibilidade de revertermos o fim da maior floresta do mundo. É a nossa única chance de deixar algum legado para nossos filhos e netos.

No domingo, estarei com o coração no Brasil, acompanhando a apuração com ansiedade e esperança. Será difícil. Mas desde quando foi fácil?

Keila Grinberg é professora titular licenciada do Departamento de História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e professora titular do Departamento de História e Diretora do Center for Latin American Studies da Universidade de Pittsburgh.

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200 anos de um país chamado Brasil: é preciso contar outra história.

No ano do bicentenário da independência, o Conversa de Historiadoras entra no debate com o que fazemos de melhor: ensinar.

Originalmente ministrado pelo Canal da Escola de História da UNIRIO no youtube, em 2020, o curso “Emancipações e Pós-Abolição: Por Uma Outra História do Brasil (1808-2020)” ganha agora site próprio.

Emancipações e Pós-abolição: por uma outra história do Brasil – http://numemunirio.org/pos-abolicao

Nele, os duzentos anos de História do Brasil independente são explicados e debatidos a partir de seus principais pilares: o tráfico de africanos escravizados e a escravidão.

Somos oito professoras de universidades publicas brasileiras, discutindo temas como a resistência à escravização, a luta pela liberdade, a cultura negra, as lutas por direitos e o racismo.

O curso agora fica acessível ao grande público em dois formatos: a aula ao vivo, seguida do debate, e o video com a palestra inicial, editado para fins educacionais. Financiado pela FAPERJ, este curso evidencia o compromisso das universidades públicas brasileiras com a ciência, a produção do conhecimento de excelência e a divulgação científica de qualidade.

Vejam o trailer, assistam as aulas, divulguem!

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O CAPANEMA É NOSSO … por Márcia Chuva

No dia 13 de agosto, foi publicada, no jornal Valor Econômico, a notícia da intenção do governo federal incluir o Palácio Capanema no feirão de imóveis da União. A reação a tal notícia foi tamanha, vinda de todos os lados que no dia seguinte o governo pareceu ter recuado dessa intenção. Verificamos, contudo, que o Capanema não somente permaneceu na lista como nela estão incluídos talvez todos os imóveis da União na cidade do Rio de Janeiro, sem qualquer critério seletivo evidente. A intenção, ao que parece, é saber quais deles receberão alguma intenção de compra.

Desse grande escárnio e imbróglio, saltou-me aos olhos a imensa repercussão que teve a notícia da venda do Palácio Capanema, não pelo seu valor, é claro, mas por ser indício do contexto distópico em que vivemos, no qual tamanho descalabro pode tornar-se crível, e ser vivido como uma ameaça real e não simplesmente uma brincadeira de mau gosto. Por isso mesmo, nesses tempos tão sombrios, torna-se urgente e ainda mais necessário lutar pela preservação desse edifício, pelo que representa e pela história nele incorporada.  

O Palácio Capanema – antigo Ministério da Educação e Saúde Pública – não se trata apenas de um “edifício público desocupado e obsoleto” como o governo federal e inúmeras notícias desencontradas que saíram na imprensa tentaram qualificar naquela sexta feira 13. A luta, de fato, é contra uma prática política destrutiva, mórbida e perversa. Contra o despejo da Cultura, pois o Capanema não está vazio.

A construção desse edifício teve início em 1937, tendo sido inaugurado em 1945. Sua construção coincidiu com todo o período do Estado Novo, regime autoritário instalado por Getúlio Vargas no Brasil e sua inauguração se deu poucos dias antes da destituição de Vargas e do fim do regime. Foi durante a gestão de Gustavo Capanema a frente do Ministério da Educação e Saúde Pública (1934-1945) – os famosos Tempos de Capanema – que esse projeto foi desenvolvido, graças ao empenho do ministro, conhecido pelo prestígio que tinha junto ao Vargas e pelo poder e força do seu ministério. A denominação de Palácio Gustavo Capanema (ou somente Palácio Capanema) veio muitas décadas depois, após a morte do ex-ministro em 1985, ano também da criação do Ministério da Cultura. Embora extinto pelo atual governo, as instituições a ele vinculadas persistem e ocupam majoritariamente o edifício.

Aos tempos de Capanema se superpõe o período da 2ª Guerra Mundial também e dois aspectos podem ser ainda destacados desse contexto. O primeiro deles, é que, se por um lado o foco da tecnologia e da ciência estava voltado para a guerra, a destruição e seus efeitos, aqui no Brasil a tecnologia voltava-se também para a construção do novo sem com isso destruir os traços do passado – ambos, passado e presente, postos lado a lado para simbolizar a nação brasileira moderna projetada, na forma de utopia. A nação era projetada também de forma objetiva e planejada, o que remete ao segundo aspecto: a industrialização em curso naquele contexto, como parte de um projeto de construção de um país auto-suficiente, não dependente. Medidas no plano econômico e no plano diplomático tiveram que ser adotadas para que o moderno ministério fosse construído, pois era preciso ter cálculo político e jogo de cintura para lidar com as grandes potências em guerra.

Mas esse contexto ainda não bastaria para justificar a importância e a singularidade desse edifício, que se tornou um ícone da arquitetura moderna no Brasil e no mundo. Os aspectos formais do projeto arquitetônico também expressam essa utopia moderna, a vontade de construção de uma nação soberana, ancorada na institucionalização de políticas de cultura, educação e saúde pública e gratuita, planejadas pela primeira vez em âmbito nacional, a fim de um dia alcançar todos os cidadãos brasileiros.

O edifício foi projetado por um grupo de arquitetos ligados ao movimento moderno da arquitetura brasileira, Afonso Reidy, Carlos Leão, Ernani Vasconcellos, Jorge Moreira, o recém-formado Oscar Niemeyer, liderados por Lucio Costa. O grupo trabalhou em cima das ideias lançadas por Le Corbusier, o renomado arquiteto modernista de origem suíça, que na ocasião esteve com Lucio Costa, no Rio de Janeiro.

Trata-se do primeiro edifício construído no âmbito desse movimento, naquelas dimensões. Obedecendo aos princípios do modernismo, seus autores deixaram aparentes os materiais utilizados, que deveriam adotar tecnologia e materiais contemporâneos ao seu próprio tempo. Ao mesmo tempo, introduzem elementos que consideravam lições do modo de construir dos tempos coloniais, relativos à insolação, luminosidade e circulação de ar.

Pano de vidro da fachada sul. Autor: Oscar Liberal – IPHAN.

As janelas amplas fazendo um pano extenso de vidro na fachada capaz de captar luminosidade e ventilação naturais postos de um lado da edificação, em conexão com o brise-soleil na outra vertente do edifício garantem uma ventilação cruzada.

Brise-soleil da fachada norte. Autor: Oscar Liberal – IPHAN

São inúmeras as obras de arte de artistas brasileiros integradas ao edifício desde o projeto, com grande destaque para os afrescos de Cândido Portinari no Auditório da sobreloja e no Salão do andar ministerial.

Afrescos de Cândido Portinari, no andar ministerial. Autor: Oscar Liberal -IPHAN

Desde sua construção, muitos são os especialistas que se aprofundaram no projeto arquitetônico do Ministério da Educação e Saúde (MES) e que poderiam falar sobre sua importância na História da Arquitetura Brasileira. Mas tendo trabalhado no Capanema diariamente ao longo de 27 anos, vivenciando o espaço e a linguagem desse projeto arquitetônico que sempre me encanta e nunca canso de admirar, quero destacar um elemento que me parece muito valioso e revolucionário na origem e ainda hoje: a simplicidade com que se adentra no edifício. A não monumentalidade do seu hall de entrada e expressão de uma educação, saúde e cultura acessíveis a todos

Entrada principal do edifício. Autor: Oscar Liberal – IPHAN

Talvez por isso também o edifício do Ministério da Educação e Saúde Pública tenha sido definitivamente incorporado como um dos símbolos de um projeto de nação utópico, de um sonho inconcluso, sempre em processo. Portanto, não se trata de ficarmos presos aos tempos iniciais da sua construção, pois nada tem de nostálgica a atual defesa do Palácio Capanema, que ganhou as ruas e as redes. Sua materialidade condensa esse projeto e talvez justamente por isso esteja sendo desprezado e colocado à venda, para esvaziar seus sentidos e valores agregados, pelo tanto que já se fez ali. A cultura e a educação pública sobrevivem no país como resistência e o Capanema é a sua casa! É lugar de muitas manifestações contra o autoritarismo e contra a aniquilação da cultura no sentido amplo.

A mais recente manifestação foi o movimento OcupaMinc, em que artistas, estudantes e funcionários ocuparam por cerca de 3 meses o Palácio Capanema contra o desmonte da cultura que tinha se iniciado com o golpe contra a presidenta Dilma e a extinção do Ministério da Cultura, retrocedida então em função da pressão dos movimentos e da sociedade.

Todos devem se lembrar como os policiais federais cumpriram mandado de reintegração de posse do Palácio Gustavo Capanema, publicado na ocasião na imprensa e nas redes sociais. O que não saiu na imprensa, contudo, foi o modo como foi feita a desocupação do Capanema por todos os órgãos que funcionavam no edifício, pouco tempo depois. Não questiono a justificativa dada à época para a evacuação do edifício, em função das obras de restauração que poderiam colocar em risco a segurança dos trabalhadores da cultura no prédio. Mas, considerando o modo como se deu, sem o devido respeito às normas básicas de preservação do patrimônio publico, às pressas como um despejo, fica evidente que todo esse movimento também integrava o projeto de desmonte da cultura no país.

Outros momentos de resistência do qual o Capanema foi palco podem ser ainda lembrados. Um deles nos remete ao último ano do governo Sarney, em 1989, quando houve uma ocupação do Capanema por estudantes, que reclamavam os cortes e falta de verbas para a universidade pública.

Nos anos de chumbo da ditadura militar no Brasil, a polícia montada espantava estudantes no centro do Rio de Janeiro, no entorno dos pilotis do Capanema.

Nos anos 1980, práticas da ultra direita inconformada com a redemocratização em curso no país também chegaram ao Capanema. No mesmo contexto do atentado a bomba que matou a Dona Lyda, na OAB, em 1980, o Capanema sofreu ameaças. Já trabalhava no IPHAN quando fomos levados a evacuar o edifício às pressas, descendo suas extensas escadas de vãos duplos, fugindo do terror da morte, por conta de um telefonema anônimo dizendo que havia uma bomba instalada no edifício.

O Capanema sempre foi palco e cenário de diversas formas de resistência à barbárie. E vale destacar: em nenhum desses episódios, qualquer obra de arte que integra o edifício foi danificada!

Foi já bastante destacado o seu valor como obra de arte – bem aos moldes da perspectiva fundadora das políticas de patrimônio no Brasil. Mas o Capanema não se esgota aí. Ele avança no tempo, como palco de resistência (que pode ser pensada de diversas formas – desde as manifestações da sociedade civil, de estudantes, artistas até a perseverança dos funcionários trabalhadores da Cultura cuja vida cotidiana de trabalho é marcada pelo conhecimento e respeito à diversidade cultural brasileira) e, portanto, lugar de patrimônio – patrimônio como resistência. Se o tombamento do Capanema, datado de 1948, fosse feito hoje muitos novos valores teríamos a agregar a ele. E mais, eu daria a sugestão de que fosse feito o seu Registro como patrimônio cultural de natureza imaterial na categoria de lugar, lugar da cultura, lugar da resistência.

Considerando a ideia estapafúrdia do governo federal de realização de um feirão de imóveis públicos vazios, desrespeitando a legislação vigente que garante que o patrimônio público – cultural ou imobiliário – está atrelado a uma função social, de interesse público, quero lembrar que o Capanema NÃO ESTÁ desocupado. Vendê-lo seria despejar todas as instituições da cultura que nele estão instaladas para prestar serviços públicos, oferecendo atividades relacionadas ao campo de estudos e produção da cultura, a exemplo das suas três bibliotecas especializadas (a Biblioteca Euclides da Cunha, a Biblioteca de Música e também a Biblioteca Noronha Santos), assim como arquivos públicos com acervos de grande valor histórico, como o Arquivo Central do IPHAN, secção Rio de Janeiro. Seria também jogar fora o investimento feito para uma restauração condizente com o planejamento do seu uso público.

Segundo matéria publicada no O Globo, a assessoria de imprensa do IPHAN, ao ser interrogada sobre a venda do Palácio Capanema, informou que não via problema na sua venda, pois o edifício continuaria tendo essas características, só que na mão da iniciativa privada. Essa fala irresponsável com o patrimônio cultural brasileiro, só evidencia o desconhecimento do papel e da história da instituição que deveria estar representando. Por isso, não posso deixar de somar ao rol de ações destruidoras promovidas pelo governo federal, o loteamento dos cargos do IPHAN por pessoas despreparadas para a missão institucional de preservação do patrimônio em todas as suas vertentes, frentes e desafios. 

A indignação foi e ainda é tão grande que, oxalá, esse tiro saiu pela culatra. Já se noticia que o governo não tem mais intenção de colocar à venda o Capanema, contudo, buscam outras estratégias para destruir o edifício que, simbolicamente, representa a luta contra a barbárie. Que ele não seja esquartejado nem, tampouco, usado como cortina de fumaça do avanço do feirão de imóveis da União, feirão de dilapidação do patrimônio público cultural e imobiliário da nação e de todos os brasileiros!

* Márcia Chuva é Professora Associada de História e Patrimônio na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Autora do livro Os Arquitetos da Memória (2009), e de artigos e capítulos refletindo sobre políticas de patrimônio, memória e museus. Ex-funcionária do IPHAN no Palácio Capanema.

Contato: marciachuva@gmail.com / https://unirio.academia.edu/MárciaChuva

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Seminário Cultna no 13 de Maio discute o livro “O massacre dos libertos”, de Matheus Gato

Que este Treze de maio, dia de luta contra o racismo, seja jornada de luta e protesto contra o massacre do Jacarezinho.

O Seminário CULTNA: Cultura Negra no Atlântico marca presença discutindo um outro massacre de corpos negros, no alvorecer da república brasileira.

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Arquivado em antiracismo, cultura negra, história e memória, história pública, historiografia

SEMINÁRIOS CULTNA – CULTURA NEGRA NO ATLÂNTICO

Um ano de pandemia deixou o Blog em ritmo lento. Neste 2021, após o carnaval que não aconteceu, estamos conversando para redefinir diretrizes e pautas. Por ora, divulgamos uma iniciativa que envolve três de nós e que repercutiremos por aqui, regularmente. Os encontros CULTNA – Cultura Negra no Atlântico, iniciados por Martha Abreu quase junto com o Blog, na Universidade Federal Fluminense, transformam-se a partir deste mês nos Seminários CULTNA, encontros virtuais hospedados na rede do Center for Latin American Studies da University of Pittsburgh, que passou a ser coordenado, neste 2021, por nossa companheira Keila Grinberg.

Os Seminários CULTNA acontecerão em português, com curadoria conjunta da linha de pesquisa Memória, Áfricas e Escravidão do LABHOI-UFF, em que atuam Hebe Mattos e Martha Abreu, do LABHOI-AFRIKAS-UFJF, coordenado por Hebe Mattos e Fernanda Thomas e de Keila Grinberg, pelo CLAS/Pittsburgh.

No primeiro encontro, na próxima quinta feira, 11 de março, contaremos com a presença de Kim Butler e Petrônio Domingues para discutir o livro Diásporas Imaginadas (Perspectiva, 2020). Já está definida a programação do semestre que divulgamos aqui, reproduzindo o texto da newsletter do CLAS/Pittsburgh, com os links para inscrição.

Cultura Negra no Atlantico (CULTNA) is an initiative that brings together the Laboratório de História Oral e Imagem (LABHOI), at Universidade Federal Fluminense and Universidade Federal de Juiz de Fora, and the Center for Latin American Studies at the University of Pittsburgh. Once a month we will discuss recent work with scholars and students interested in the topic. Discussions will be held in Portuguese.

Cultura Negra no Atlantico (CULTNA) é uma iniciativa que congrega o Laboratório de História Oral e Imagem (LABHOI) da Universidade Federal Fluminense e da Universidade Federal de Juiz de Fora, e o Center for Latin American Studies da University of Pittsburgh. Uma vez por mês, trabalhos recentes serão debatidos com especialistas e estudantes interessados no tema. As discussões serão realizadas em português. 

Spring 2021 Program

Thursday, March 11th, 4 pm EST // 6 pm Brazil time: “Diásporas imaginadas,” with Kim Butler (Rutgers University) and Petronio Domingues (Universidade Federal do Sergipe)

Thursday, April 1st, 4 pm EST // 6 pm Brazil time: “Descolonizando imaginários e saberes,” with Clement A. Akassi (Howard University)

Thursday, May 13th, 4 pm EST // 6 pm Brazil time: “O massacre dos libertos,” with Matheus Gato (Universidade Estadual de Campinas)

Thursday, June 10th, 4 pm EST // 6 pm Brazil time: “A revolução dos ganhadores,” with João José Reis (Universidade Federal da Bahia)

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O ano em que não teve carnaval

Este blog nasceu no carnaval de 2014. Desde então, como criadoras do blog, nunca deixamos de postar algo logo após a festa de Momo, ressaltando seu caráter político e de produção pública de leituras do passado. O que fazer neste 2021 em que não teve carnaval?

De repente nos demos conta que estávamos sem um novo texto desde novembro. Muitos compromissos de cada uma de nós separadamente, um certo cansaço das duas veteranas que assinam esta nota… queríamos corrigir isso. Decidimos fazer um texto sobre o não carnaval de 2021.

Mas ele não saiu. Não, como imaginamos.

Não saiu, como a maioria absoluta das instituições carnavalescas – escolas de samba, blocos, trios elétricos, afoxés, maracatus – que ficaram em casa este ano.

Pelo menos, desde o final do século XIX, o carnaval tem um lado oficial, ligado, sobretudo, às autoridades municipais. O carnaval foi adiado ou suspenso no Rio de Janeiro em alguns anos de conflito político da década de 1890. Ainda assim, a supressão do carnaval oficial não tem o poder de eliminar a festa popular. Em 1912, foi adiado para abril, em luto pela morte do Barão de Rio Branco e, ao final, aconteceu duas vezes.

O nível de adesão dos grupos carnavalescos à não folia é o que mais se destacou nas ruas das cidades brasileiras neste 2021. Apesar da tradição e dos prejuízos e perdas de um dos mais ativos circuitos econômicos da indústria cultural do país, respeitaram a vida e o luto, em um claro ato político de interpretação histórica do passado recente.  

O carnaval e os foliões fazem parte das lutas e desafios de seu próprio tempo. Este ano não teve carnaval. O discurso político mais eloquente foi o silêncio.

Sem purpurina, máscaras de pano aguardam a festa de 2022!

Recife, carnaval 2021: O Homem da Meia Noite, foto de Ivanildo Machado, do twitter de Kleber Mendonça Filho.

Foto de abertura: Ettore Chiereguini/Estadão Conteúdo. Sambódromo do Anhambi, 13 de fevereiro 2021

VALE A PENA LER DE NOVO:

https://conversadehistoriadoras.com/2014/03/15/o-novo-caso-do-bracui-2/

https://conversadehistoriadoras.com/2016/02/14/a-cegueira-da-tv-globo/

https://conversadehistoriadoras.com/2017/03/05/o-carnaval-do-foratemer/

https://conversadehistoriadoras.com/2017/03/26/samba-na-universidade/

https://conversadehistoriadoras.com/2018/05/13/domingo-13-de-maio-130-anos-depois/

https://conversadehistoriadoras.com/2019/03/07/viva-o-carnaval/

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Que Exército é esse?

Hoje é 15 de novembro. É dia de eleições municipais — e dia do aniversário do golpe militar que deu origem à República brasileira. 

Para refletir sobre a ocasião, Adriana Barreto de Souza, uma das principais especialistas em história dos militares em atuação no país, escreve nesta edição especial do Conversa de Historiadoras. Além de professora do Departamento de História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, ela é autora dos livros Duque de Caxias: o homem por trás do monumento (Civilização Brasileira, 2008), O Exército na consolidação do Império: um estudo sobre a política militar conservadora. (Arquivo Nacional, 1999). Recentemente, organizou, em conjunto com outros colegas, a coletânea Pacificar o Brasil: das guerras justas às UPPs (Alameda, 2017). É deste lugar que ela analisa a origem do Exército no Império e o papel que os militares vêm desempenhando na política brasileira.   

E já que o dia de hoje também é o da “festa da democracia”, é importante lembrar, como ela o faz: “Nas democracias, o Exército cuida exclusivamente das fronteiras, dos inimigos estrangeiros. Nunca se envolve na política.”  

Bom voto! 

Que Exército é esse? Ou: o que é um Exército pacificador.

Adriana Barreto de Souza 

Hoje é 15 de novembro. Como todos nós sabemos – ainda que a narrativa oficial tenha por muito tempo tentado disfarçar – a República brasileira nasceu de um golpe militar. O primeiro golpe militar da história do Brasil. Militar mais por força da generalização. O golpe foi mesmo do Exército, a Marinha esteve ausente do episódio. Os dois primeiros presidentes foram generais e, de lá para cá, muitos outros assumiriam a direção do país. Sob regime democrático ou ditatorial, direta ou indiretamente, usaram em várias ocasiões a força das armas para ameaçar a sociedade civil e sustentar governos. Essa marca de origem é tão forte que a Constituição de 1988 previu um plebiscito para que a população escolhesse entre os regimes republicano ou monarquista e entre o sistema parlamentarista ou presidencialista, o que ocorreu no dia 21 de abril de 1993, ratificando por voto popular a escolha por uma República presidencialista no Brasil. 

Em 1889, a narrativa que legitimou o golpe não foi tão diferente da que ouvimos ainda hoje: a elite política era mesquinha, corrupta e só defendia seus interesses os mais particulares. Vítima da pequenez de seus algozes togados, o militar emergia como figura ilibada, desinteressada, de caráter reto, um defensor sincero dos interesses nacionais e que deveria, portanto, de forma mais que justa assumir a direção dos negócios públicos.

Quando os especialistas recuperam hoje – impulsionados pela conjuntura nacional – essa narrativa, apontam a Guerra do Paraguai como divisor de águas, momento no qual o Exército teria se dado conta dessa sua “vocação nacional”. Após uma longa e duríssima campanha militar de quase seis anos de duração, defendendo a pátria, os militares (em especial o Exército) não viam seus esforços devidamente reconhecidos.

De fato, essa mágoa existiu. Mas, gostaria de chamar atenção aqui para um outro elemento dessa história do Exército brasileiro, que tem passado despercebido: a Guerra do Paraguai foi praticamente a única grande guerra combatida pelos militares brasileiros.

Em que outras mais poderíamos pensar? A Guerra do Prata, também conhecida como Guerra contra Oribe e Rosas, ocorrida entre 1851 e 1852 pela hegemonia na região? A Guerra da Cisplatina, que em 1825 opôs o Império do Brasil às Províncias Unidas do Rio do Prata na disputa pelo território do atual Uruguai? Convenhamos: esta última, tendo irrompido apenas três anos após a independência, foi uma guerra dos portugueses, levada à cabo por um Exército mais português que brasileiro. A sequência dos fatos nos ajuda a ver isso claramente. Quando um amplo movimento de base popular forçou a abdicação de d. Pedro I em 7 de abril de 1831, o Exército de então, reconhecido como uma força portuguesa que lhe era fiel, foi inteiramente desmobilizado. Os liberais que assumiram a Regência do Império, assombrados pela ideia de um possível retorno do primeiro imperador, quase extinguiram a instituição: de 28 mil homens em armas, o Exército passou a contar com apenas 9 mil homens. Em contrapartida, os liberais criaram a Guarda Nacional, uma guarda civil, de proprietários armados. Fizeram essa reforma com o apoio de vários generais. Militares de tradição liberal, como a família Lima e Silva (do futuro duque de Caxias), que na luta contra d. Pedro I – então considerado um tirano estrangeiro – assumiu a direção da Regência e os principais cargos militares do Império.

Se o Exército de d. Pedro I foi desmobilizado em 1831, cabe perguntar como e por que forças políticas o Exército – agora, sim, brasileiro – foi (re)organizado.

Quadro: Proclamação da República. Benedito Calixto, 1893. Pinacoteca do Estado de São Paulo.

A necessidade de uma força militar regular e profissional só foi sentida em meio às lutas regenciais. Mais conhecidas como rebeliões regenciais, essas lutas sacudiram o Brasil de norte a sul por mais de dez anos, tendo invadido o Segundo Reinado: Malês, Cabanagem, Sabinada, Balaiada, Farroupilha… isso para ficar entre as mais conhecidas! Movimentos plurais e heterogêneos de contestação à ordem imperial, alguns chegaram a colocar lado a lado – ainda que de forma fugaz – proprietários, quilombolas e caboclos. Esses homens lutavam por ideias de Brasil sonhadas a partir de suas experiências, de seu dia-a-dia. Engajaram suas vidas em diferentes projetos de país. É importante reconhecê-los assim: como projetos políticos em disputa por um Brasil que estava sendo erguido.

 Foi para conter essas revoltas de cidadãos brasileiros (excetuando-se os escravos, essa condição era garantida aos demais pela Constituição de 1824) que um emergente grupo político, autointitulado Regresso Conservador, levantou-se no Parlamento para – em oposição aos Liberais – bradar que o Estado precisava se armar, que precisava de um Exército forte. Os debates duraram meses e foram tensos. Porém, ao assumirem a direção do país em 1837, o grupo trabalhou firme para tirar esse projeto do papel.

Surgia, assim, em meio à guerra civil, o Exército brasileiro. Essa é a tradição que o constitui. Um Exército que, na repressão violenta à oposição liberal, a caboclos, a pretos e pardos livres e a quilombolas – volto a lembrar, na sua maioria cidadãos brasileiros – garantiu a integridade do Império, cuidando com zelo de preservar no Brasil uma herança colonizadora: a de uma monarquia assentada na grande propriedade e na escravidão. 

Não por acaso, foi nessas lutas que os políticos do século XX se inspiraram para criar um patrono para o Exército brasileiro. O duque de Caxias fez sua carreira em meio à guerra civil. Da repressão à Balaiada em 1841, o então coronel Luís Alves de Lima e Silva saiu general e barão de Caxias (cidade centro da resistência balaia). Da Farroupilha, saiu conde e senador do Império. O título de duque, recebido em remuneração ao serviço prestado na Guerra do Paraguai, apenas coroava sua carreira militar e política.

Nesse ponto, há ainda um dado nada desprezível sobre a carreira militar do duque de Caxias. Sua primeira experiência de comando não se deu no Exército, mas à frente da força policial da época, denominada Guarda de Municipais Permanentes. Por nada menos que sete anos consecutivos, o então jovem Luís Alves de Lima e Silva comandou a força policial do Rio de Janeiro. Isso entre os anos de 1832 e 1839, quando a cidade – habitada por uma multidão de escravos e negros livres, como observavam os viajantes que por ali circulavam – estava tomada por conflitos de rua, que opunham vários grupos políticos. Foi nessas ruas que o jovem tenente-coronel aprendeu a preservar as complexas fronteiras sociais de uma sociedade escravocrata. Tarefa tão bem executada, que lhe rendeu a nomeação para comandar as tropas que seguiam para o Maranhão, no combate à Balaiada. O sucesso da repressão o nobilitou, foi seu passaporte para o seleto grupo da nobiliarquia brasileira, mas também o elevou – por meio de uma ode escrita pelo amigo, secretário e poeta Gonçalves de Magalhães – à condição de pacificador do Brasil.

Esse título merece destaque, afinal a palavra é recorrente em nossa história.

Pacificar o país significava (e significa) preservar um determinado tipo de ordem social. Transformado em partido político, o Regresso Conservador, também conhecido como Partido da Ordem ou simplesmente Partido Conservador, reestruturou o Exército para, por meio da força das armas, garantir a “paz social” da “grande família brasileira”. Os termos eram exatamente esses, não estou forçando a analogia. Por isso, fiz questão de usar aspas. Quando em 1840, as notícias do sucesso de um outro golpe, que antecipou a maioridade de d. Pedro II, então um menino, chegou ao Maranhão, o ainda coronel Luiz Alves mandou preparar uma grande festa e, em seu pronunciamento, afirmou que “uma nova época abriu-se aos destinos da grande família brasileira”. À frente da nação, o jovem d. Pedro II foi transformado em “símbolo da paz, da união e da justiça”. E, dada a grandiosidade da Coroa, convertida em pai exemplar, toda oposição política assumiria a feição de intriga e corrupção, devendo ser duramente reprimida e – no limite – eliminada.

A nação brasileira se erguia, assim, a partir de um princípio restritivo e desigual de liberdade. Restritivo porque subordinado à ordem. Desigual porque fundado na escravidão e articulado em torno da retórica da autoridade civilizatória. Como afirmou um general na década de 1850, ao defender um projeto de criação de colônias militares em regiões do Brasil que possuíam um histórico de rebeldia, referência que devo às pesquisas de Maria Luiza de Oliveira: “não se trata de ir bater rebeldes, trata-se somente de não lhes deixar levantar a cabeça”.

Maud, Chirio. Imagem utilizada no cartaz do Colóquio Internacional “Pacificação: o que é e a quem se destina?”, combinação virtual de fotografias, 2014.

Essa é a tradição que constituiu o Exército brasileiro. Defender a pátria contra o inimigo estrangeiro historicamente nunca foi sua missão primordial, nem foi para isso que ele foi reerguido entre os anos 1830 e 1840. Na sua origem, está o projeto político do Regresso Conservador, de construção de um Estado e de instituições comprometidas com a preservação da escravidão, de hierarquias e privilégios sociais. Um Estado desse tipo – tão profundamente desigual – não se mantém sem força militar. Até a Guerra do Paraguai, gerações de militares aprenderam, cotidianamente, no exercício de seu ofício, que seu papel era defender esse modelo de Estado. Mais que isso: aprenderam que esse Estado não subsistia sem eles. Não por acaso, anos depois, já na República, um grupo de jovens oficiais – conhecido como jovens turcos – afirmaria que o Exército é a ossatura da nação brasileira. Resta acrescentar: de um tipo determinado de nação, historicamente erguida por uma elite que optou por permanecer ignorando o princípio de igualdade e sujeitando a liberdade a essa ordem desigual. Uma ideia de nação que nada tem de democrática.

Nas democracias, o Exército cuida exclusivamente das fronteiras, dos inimigos estrangeiros. Nunca se envolve na política. Para resolver conflitos e disputas internas, no limite, há polícias, que não são – vale destacar – militares.

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