Arquivo do autor:Keila Grinberg

Sobre Keila Grinberg

Keila Grinberg é Professora Titular de História do Brasil e Ensino de História na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). É autora, entre outros livros, de Liberata (1994), O Fiador dos Brasileiros (2002) e Free Soil in the Atlantic World (com Sue Peabody, 2014).

Isto não é uma estátua  

Algo está muito errado em uma sociedade cuja polícia protege suas estátuas e ataca seus cidadãos. Ainda mais quando a polícia ataca os descendentes daqueles a quem a pessoa representada pela estátua escravizava.

Desde que a derrubada de estátuas de traficantes e escravocratas passou a integrar os protestos anti-racistas contra a violência policial na Inglaterra e nos Estados Unidos, a polícia de São Paulo vem protegendo a estátua de Manuel de Borba Gato (1649-1718), símbolo do bando que escravizava, estuprava e assassinava indígenas e negros.

O mais interessante é que, no contexto dos atuais protestos, nem a estátua de Borba Gato nem qualquer outra foi de fato ameaçada no Brasil. O que houve aqui foi um civilizado abaixo-assinado, demandando das autoridades a remoção da escultura. Mas só a possibilidade de que algo pudesse acontecer ao monumento gerou uma reação de tal monta que só pode ter sido causada pelo medo branco à simples ideia de uma onda negra entre nós.

Onda negra, medo branco é o título do livro de Celia Azevedo (Paz e Terra, 1987), cujo tema é o medo dos escravocratas brasileiros de que houvesse no Brasil uma rebelião de escravizados como a que houve na colônia francesa de Saint Domingue em 1791 e levou à independência do Haiti. Ao longo do século XIX, o pavor sentido pela elite brasileira foi usado como justificativa para a repressão desmedida contra qualquer ação de resistência da população escravizada. No pós-abolição, ele foi traduzido em políticas públicas excludentes e em violência racial.

Em geral, há dois argumentos usados por aqueles que defendem a  manutenção das estátuas nos espaços públicos. Uma é o seu valor como obra de arte. Convém lembrar, nesses casos, que  a prática de intervir em objetos, mesmo aqueles de indiscutível valor artístico, faz parte da própria dinâmica de constituição dos espaços públicos. Um exemplo: quem visita o Jardim Botânico do Rio de Janeiro tem a oportunidade de apreciar o portal da Real Academia de Belas Artes, projetado pelo arquiteto francês Grandjean de Montigny. Até 1908, o portal ficava no edifício da escola, próximo à praça Tiradentes, no centro da cidade. Com a demolição do prédio, ele foi removido e integrado à belíssima Aléia das Palmeiras, projetada no século anterior. Ficou lindo — mas totalmente descontextualizado de sua função original.

Screen Shot 2020-06-21 at 18.24.32

O outro argumento contra a intervenção nas estátuas diz respeito ao seu suposto valor histórico. Remover uma estátua seria como apagar a História, argumentam alguns. Aqui é hora de lembrar que as estátuas são monumentos erigidos com a intenção explícita de homenagear pessoas ou acontecimentos do passado. Elas não são o passado.

A estátua que você vê na rua nunca é só uma estátua. No caso de esculturas que homenageiam pessoas, elas sempre remetem pelo menos a três tempos: ao tempo em que o homenageado viveu; ao tempo que o objeto foi elaborado; ao tempo presente, quando ele é cotidianamente ressignificado por aqueles que o vêem.

Quando uma estátua deixa de ser uma estátua e passa a ser objeto de disputas? Talvez todas sejam. Outro exemplo: bem no centro do calçadão da praia Vermelha, que eu frequentava quase diariamente antes do início da pandemia, jaz a escultura em bronze que representa o compositor polonês Frederic Chopin (1810-1849), de Augusto Zamoysky.  O monumento, inaugurado em 1944, foi transferido seis anos depois para a praça Floriano, de onde retornou em 1959. Pois outro dia descobri que o monumento foi um presente da Associação dos Poloneses do Rio de Janeiro em desagravo à destruição de uma estátua de Chopin em Varsóvia, quando a cidade foi invadida pelos nazistas. Símbolo do nacionalismo romântico polonês, a imagem do compositor já havia sido atacada pelos russos no século XIX, que proibiram suas músicas e até destruíram seu piano. O presente da comunidade polonesa à cidade do Rio de Janeiro não deixa de ser um protesto e uma afirmação da independência polonesa. Hoje em dia nós, frequentadores do local, sequer notamos a escultura.

Por que ninguém ataca a escultura de Chopin aqui no Rio? Por que tanto pavor é  suscitado pela mera discussão sobre o destino dos monumentos que representam assassinos, escravizadores, traficantes? Porque é este o passado que nós precisamos, aqui no Brasil, confrontar. Porque este é o passado do nosso desconforto, aquele que ainda não passou.

Ao invés de lidar com os nossos traumas, nós reforçamos os mitos da ausência de conflito em nossa história: fomos os únicos a proclamar a independência sem guerra; nossa escravidão foi abolida sem sangue, no Parlamento; nossa ditadura militar começou a ser finda com uma lei que anistiava resistentes e torturadores. Enquanto negamos os conflitos, convivemos com o racismo, com a violência, com a sombra do autoritarismo.

Confrontar o passado exige que reconheçamos seus horrores. Para começar, podemos deixar de homenagear ditadores e escravistas em nomes de ruas, praças, escolas. Talvez assim consigamos ver o dia em que a polícia vai deixar de proteger as estátuas e se dedicar a seus cidadãos.

Screen Shot 2020-06-21 at 18.21.58

crédito da foto.

9 Comentários

Arquivado em antiracismo, história e memória

Afinal… o que de fato fez a princesa Isabel no 13 de maio? 

Num dia como hoje, em que informações sem qualquer base científica são espalhadas como se fossem verdades históricas pela Fundação Palmares, é importante deixar claro o papel da princesa Isabel na abolição da escravidão. Afinal, o que de fato ela fez pela abolição da escravidão?

Segue um trecho do posfácio do livro “O 15 de Novembro e a Queda da Monarquia” ( Chão Editora, 2019), escrito por Mariana Muaze e por mim:

“Ao voltar de viagem, em junho de 1887, Isabel se viu dividida entre as preocupações para garantir a continuidade do Império, as rivalidades com o sobrinho — que, animado com a desconfiança pública com os nomes de Isabel e do conde d’Eu, disputava uma possível vaga de imperador — e as idas à igreja. Parecia não ter a mínima ideia do que se passava nas ruas: ‘Na ausência do imperador, a política naturalmente cochila’, escreveu ela à condessa de Barral, sintomaticamente, em 14 de julho de 1887, enquanto republicanos celebravam em praça publica o aniversário da Revolução Francesa. Ao mesmo tempo, nas fazendas da região cafeeira, continuavam as revoltas e as fugas de escravos, bem como a repressão contra eles. A pressão sobre a princesa era grande. Seu pai, no exterior, havia recebido a extrema-unção (ele ainda viveria por pouco mais de três anos). Sem grande popularidade nem tino político, ela hesitava em colocar a abolição na agenda do Governo, decepcionando os abolicionistas monarquistas, principalmente André Rebouças, amigo de longa data, que tentava persuadi-la a abraçar a causa.

IMG_3778

Fotografia de Marc Ferrez/Coleção Dom João de Orléans e Bragança, sob guarda do Acervo do Instituto Moreira Salles (in “O 15 de Novembro e a Queda da Monarquia, p. 96)

 

Demorou a fazer isso. Só no início de 1888, quando a abolição já era dada como certa e inevitável, e até escravistas empedernidos começavam a libertar seus escravos incondicionalmente, na esperança de que continuassem trabalhando em suas fazendas, a princesa deu ouvidos a Rebouças e promoveu sua famosa Batalha das Flores, inspirada no Carnaval francês, percorrendo as ruas de Petrópolis com o marido e os filhos, pedindo donativos em prol dos escravos. Poucos dias depois, em nova carta à condessa de Barral, declarou ser a abolição “uma caridade grande”, “que parecia estar no ânimo de todos”. (…)

Em maio de 1888, a abolição da escravidão foi votada em regime de urgência. O Parlamento aprovou, por 83 votos a favor e 9 contra, o projeto de lei que extinguia, sem indenização, a escravidão no Brasil. Já em clima de festa, Isabel ofereceu banquete a catorze escravos. No dia 13, desceu de Petrópolis para assinar a lei. Estava extinta a escravidão no Brasil.” (p. 104/5).

Foi isso. Depois de décadas e décadas de lutas da população escravizada, só em fevereiro de 1888 a princesa Isabel foi, a duras penas, convencida pelo engenheiro abolicionista negro André Rebouças a apoiar a causa. Sua atuação não chegou a quatro meses, e só teve início quando a abolição já “parecia estar no ânimo de todos”. O resto é lenda.

71oz96k7yrL

Deixe um comentário

Arquivado em história pública, historiografia

O dia em que o imperador do Brasil perdeu a chance de conhecer o abolicionista Frederick Douglass

Este artigo é a versão em português de “The Emperor and the Abolitionist: A Brazilian Royal Visits the U.S.”, publicado na seção The Long View da Americas Quarterly em janeiro de 2020.

Dom Pedro II e Frederick Douglass. PHOTO12/UNIVERSAL IMAGES GROUP; CORBIS/GETTY

O dia era o 10 de maio de 1876, mais conhecido como aquele em que Ulysses Grant, então presidente dos Estados Unidos, e Dom Pedro II, o imperador do Brasil, inauguraram a exposição universal da Philadelphia, a propósito do centenário da independência norte-americana – e, ironicamente, da república que o monarca não queria ver em seu país.

A abertura da exposição foi o momento alto da visita do imperador aos Estados Unidos, que ficou conhecida no Brasil como a ocasião em que D. Pedro teria testado o telefone, última invenção de Graham Bell. Entusiasmado ao ver que a geringonça “de fato falava”, teria se comprometido a comprar o aparelho assim que a invenção fosse posta no mercado. A promessa foi cumprida.

A viagem de D. Pedro II foi extensamente documentada pelo jornal New York Herald, cujo correspondente, o repórter James J.O’Kelly, acompanhou o imperador desde a sua saída do Brasil. As matérias de O’Kelly foram em grande parte responsáveis pela imagem simpática e ilustrada do “monarca-cidadão”, que, no exterior, preferia assinar Pedro de Alcântara e se identificar como “apenas um cidadão brasileiro”.

Mas é evidente que o imperador brasileiro pretendia muito mais do que figurar como um simples cidadão interessado nas últimas novidades científicas. Naquela época, as Exposições Universais, verdadeiros espetáculos da modernidade, eram grandes feiras de negócios, organizadas para que os países participantes exibissem o que consideravam ser suas melhores contribuições nos campos da ciência, da indústria, das artes, da arquitetura, da tecnologia.

Com participação mais tímida nas exposições de Paris (1867) e de Viena (1873), na de Philadelphia o Império do Brasil, para potencializar a venda do café, sua principal commodity, queria ficar conhecido “as an agricultural region, possessing an extremely fertile soil, and to its inhabitants the occasion of appearing as peaceful, inteligent, and laborious people”. (The Empire of Brazil at the Universal Exhibition of 1876 in Philadelphia, 1876). D. Pedro ficou satisfeito com o que viu. Como escreveu em carta à filha Isabel, “Já corri quase toda a exposição. É imensa. Nós fazemos figura decente. (…) A nossa exposição agrícola faz lindíssima vista.” (11 de maio de 1876).

Vender café podia até ser fácil. Já apresentar um quadro positivo do maior regime escravista das Américas era mais difícil. As autoridades se esforçaram para descrever slavery as “imposed in Brazil by the force of circumnstances (…)”, that “will disappear in a few years more”, mas seria preciso muita imaginação para acreditar que “slaves are humanely treated”, working “moderately, and, usually during the day, resting at night, when they receive religious instruction or amuse themselves” (The Empire of Brazil… 1876).

Será que o simpático imperador teria conseguido convencer alguém na Philadelphia, pouco mais de dez anos após a abolição da escravidão nos Estados Unidos, que o Brasil era um país moderno, a escravidão não seria um empecilho para os negócios e que, “so unprepared to receive their freedom”, alguns dos recém-libertos “were employed as laborers on the estates of the nation”, where their “children are educated”? (The Empire of Brazil… 1876).

Abertura da Exposição da Philadelphia. 1876. Barberis from L’Illustrazione Italiana, No. 36/Getty

Difícil afirmar que sim. Afinal, como a propósito comentaria o jornal O Novo Mundo, então publicado em New York pelo brasileiro José Carlos Rodrigues, “É preciso ter bem na lembrança que essa nefanda escravidão não só impede a emigração para o Brasil como a importação de capitais para as indústrias agrícolas. Coloca o país em um estado fatal de suspeição tanto para o emigrante quanto para o capital. O emigrante pergunta: — Não me quererão tratar como escravo? O capital murmura: — Jamais irei para um país em que a terra só tem valor quando nela está amarrado um escravo”. (O Novo Mundo, agosto de 1876, edição 08071, p. 231).    

Mas, se a escravidão era, no linguajar da época, uma “nefanda instituição”, havia quem considerasse o Brasil à frente dos Estados Unidos quando o assunto eram as relações raciais.

Um dos convidados de honra à cerimônia de inauguração era Frederick Douglass, um dos maiores ícones do abolicionismo norte-americano. Após a abolição da escravidão, a questão de Douglass, ele próprio ex-escravo, era a luta contra o racismo nos Estados Unidos. No dia da cerimônia, ele quase teve sua entrada barrada na tribuna reservada aos convidados de honra, que incluía diplomatas e autoridades diversas, entre elas o imperador do Brasil. Um senador o reconheceu e o chamou para ocupar seu assento. Consta que a multidão, ao vê-lo, aplaudiu com veemência. Douglass mal havia se sentado quando se escutaram os primeiros acordes do hino brasileiro e mais aplausos. Era o imperador que subia ao mesmo palanque, de braços dados com a imperatriz Teresa Cristina.   

Teria o “monarca-cidadão” Pedro de Alcântara notado a presença de Douglass? Aos cinqüenta e oito anos, o homem alto de vasta cabeleira grisalha era facilmente reconhecido por onde passava. Mas o abolicionista não parece ter causado impressão especial no imperador. Ao menos não há qualquer referência a ele em seu diário, nos artigos de O’Kelly, nas cartas que enviou ao Brasil.

Uma pena. Embora tenha afirmado que “nenhum homem de cor é realmente livre num estado escravista”, Douglass, mais de uma vez, havia expressado admiração pelo Brasil, que lhe parecia um lugar onde, comparado aos Estados Unidos, não haveria “antipatia dos brancos de se misturar ou se associar aos negros”.

D. Pedro II parece não ter notado Douglass, mas não deixou de visitar Elizabeth Agassiz, viúva do naturalista suíço Louis Agassiz, zoólogo e professor de Harvard, falecido há pouco mais de dois anos. D. Pedro e Agassiz eram amigos de longa data.  Consta que ele teria sido o responsável por convencer D. Pedro a visitar aos Estados Unidos, cuja viagem seria “uma marcha triunfal de um extremo a outro do país”.

Agassiz também era um entusiasta do racismo científico, que via na miscigenação o principal fator da degeneração das raças humanas.  Assim como Douglass, o naturalista também tinha interesse todo especial pelo Brasil. Mas se, para o primeiro, no Brasil, “país que nós, com nosso orgulho, estigmatizamos como semibárbaro — não se trata as pessoas de cor, sejam livres ou escravos, da forma injusta, bárbara e escandalosa como tratamos”, para o segundo o Brasil seria o melhor exemplo da degeneração provocada pela miscigenação.

Para Agassiz, o Brasil era o perfeito contraponto dos Estados Unidos, aquilo que seu país de adoção jamais deveria se tornar. Para Douglass, o Brasil era um modelo a ser seguido.   

Talvez o 10 de maio de 1876 tenha sido mais propriamente o dia em que D. Pedro II perdeu a oportunidade de conhecer Frederick Douglass, e com ela a chance de fazer figura realmente decente na inauguração da Exposição Universal. Quanto a este, quase barrado na entrada da cerimônia, ignorado pelo imperador, quem sabe tenha percebido que, no fundo, o racismo brasileiro não era assim tão diferente do norte-americano.   

Deixe um comentário

Arquivado em antiracismo

O nazismo é de extrema direita (por Keila Grinberg e Monica Grin)

Em visita ao Yad Vashem, museu e memorial em homenagem às vítimas do Holocausto em Jerusalém, nossos governantes insistiram na tese delirante e absurda de que o nazismo foi um movimento de esquerda. Ela é falsa. O nazismo foi um movimento de extrema-direita surgido na Alemanha após a Primeira Guerra Mundial. Seu líder, Adolf Hitler, chegou ao poder em 1933 com um discurso eugenista de oposição ao liberalismo e às esquerdas. Uma de suas peças de propaganda era justamente o combate ao comunismo.  “Converter o comunista é a tarefa do movimento nacional-socialista (nazista)”, escreveu em Minha Luta, em 1925. Mais adiante, no mesmo livro, ele reafirma: “o problema futuro da nação alemã devia ser o aniquilamento do marxismo”.

O ditador não estava brincando. Iniciou seu governo cassando os mandatos dos deputados do Partido Comunista da Alemanha. Em março de 1933, o partido foi proibido. Seus líderes foram presos, torturados e confinados em campos de concentração. E isto foi apenas o começo: acreditando serem racialmente superiores, os nazistas empreenderam extermínio sistemático dos judeus, a quem consideravam racialmente inferiores. Tratamento especialmente cruel era dirigido aos judeus de esquerda, “opositores do regime”. A estrela amarela, marca de distinção e humilhação que todos os judeus deviam portar bordada às suas roupas era, no caso destes, amarela e vermelha.

Que o Partido Nazista é de extrema direita é consenso entre historiadores e especialistas no mundo inteiro. Quem duvida pode consultar os sites do Museu do Holocausto dos Estados Unidos, do Memorial do Holocausto em Berlim ou do próprio Yad Vashem. Ou, como fez esta semana o presidente do Brasil, caminhar por suas galerias. Ao que parece, ele perdeu a oportunidade de aprender quem foram as vítimas do nazismo: além dos judeus, os nazistas encarceraram, torturaram, escravizaram e mataram ciganos, eslavos, homossexuais, socialistas e comunistas, entre tantos outros. A negação deste fato é um desrespeito flagrante à memória daqueles que sofreram e morreram no Holocausto. É triste que o governo israelense, quem sabe esquecido da importância do sionismo de esquerda para a criação do Estado de Israel, nada tenha declarado a respeito. E é vergonhoso que as instituições judaicas brasileiras não tenham reagido a tamanho impropério.

Ou o governo brasileiro duvida das informações veiculadas por órgãos israelenses, norte-americanos e alemães, ou perversamente deturpa o passado. Ao final de sua visita, o presidente sintomaticamente declarou que “aquele que esquece o passado está condenado a não ter futuro”. A frase se aplica a ele mesmo – e nisso não podia ter mais razão. Bolsonaro quis mostrar erudição, mas a citação está errada. A referência correta é “aqueles que não conseguem lembrar o passado estão condenados a repetí-lo”. A frase vale para todos. Está na hora de lembrar o passado. E de respeitar a História. 

Screen Shot 2019-04-05 at 08.07.30.png
Triângulos do Holocausto, 1936 (wikipedia)

4 Comentários

Arquivado em antiracismo, democracia, história pública, negacionismo

Saia da Mesa

Existe um ditado alemão que diz: ‘Se há dez pessoas numa mesa, um nazista chega e se senta, e nenhuma pessoa se levanta, então existem onze nazistas numa mesa”. Não se pode tolerar o intolerável. Saia da Mesa. (Ynaê Lopes dos Santos)

Durante vários anos, fui professora de História Judaica em uma escola judaica do Rio, a mesma onde estudei minha vida toda. Dei aulas para todas as séries. Todo ano eu ensinava sobre o nazismo; todo ano recebíamos visitas de sobreviventes, acendíamos velas no Yom Hashoá (Dia do Holocausto), repetíamos que atrocidades como aquelas nunca mais poderiam ser repetidas, nunca mais.

Estas aulas eram difíceis. Durante todo este tempo, meu maior desafio não era exatamente explicar o antissemitismo de alguns, mas a indiferença da maioria. Meus alunos não entendiam por que, ao presenciar a escalada da violência que se seguiu à eleição de Hitler, a sociedade alemã não se organizou para conter a disseminação do ódio e da violência. Eu tentava explicar mas no fundo, no fundo, também não entendia.

Agora entendi.

O candidato do PSL não é Hitler. Mas seu discurso de ódio às minorias é perigosamente semelhante ao do ditador eleito pelo voto na Alemanha dos anos 1930. Também naquela época, o seu discurso tinha como alvo a corrupção. E, também naquela época, muitos caíram na falácia de que, para lutar contra a corrupção, é preciso apoiar o extremismo.

Vejo horrorizada as manifestações de apoio — ou de isenção, o que neste caso dá no mesmo — de alguns judeus ao candidato da extrema direita. Não acredito que todos sejam racistas e homofóbicos como o discurso daquele que, fosse a eleição hoje, seria o novo presidente do Brasil. Mas são indiferentes à violência que acham que não os atinge. Indiferentes como aqueles que testemunharam a escalada de ódio aos judeus na Europa e não fizeram nada. Os violentos só atacam se os indiferentes permitirem. Estaremos permitindo?

Os judeus não são alvo preferencial da atual campanha de ódio disseminada pelos seguidores do candidato da extrema direita. Mas seria interessante perguntar a eles o que sabem sobre o Holocausto. Não será surpresa se muitos forem negacionistas. Basta ver a onda de suásticas que proliferam por aí após o primeiro turno das eleições presidenciais. Um dia na UERJ. Outro na igreja de São Pedro da Serra. Na porta do apartamento de uma amiga. Na carne de uma moça. A História mostra que onde há extremismo, há antissemitismo. Queremos mesmo estas companhias?

Às vésperas do dia do professor, só consigo pensar que falhamos. Serviram para alguma coisa as aulas de História Judaica? Transmitimos valores judaicos? Onde deveria haver empatia, há indiferença. No lugar da memória, esquecimento. Para uma tradição fundada no estudo e na memória dos nossos antepassados, estamos mal, bem mal.

Keila Grinberg.

 

6 Comentários

Arquivado em #Democracia

Escravidão é estrutura (ainda sobre Vazante)

Todo bom filme que ousa abordar temas sensíveis causa polêmica. Vazante é um bom filme. Não fosse, ninguém perderia tempo com ele. É justamente por ser um bom filme sobre o patriarcalismo escravista brasileiro, nossa tragédia de origem, que ele incomoda. E provoca a também boa polêmica, aquela que é boa justamente por alimentar visões diferentes, contrastantes, divergentes. (Temos que defender as divergências com unhas e dentes; é terrível o tempo das certezas que nos espreita).

Assisti a Vazante como se o encosto da poltrona tivesse espinhos. A cada tentativa de me ajeitar, um incômodo, uma mudada de posição. É assim também que leio as críticas e reações a respeito. A cada incômodo, uma tentativa de me ajeitar, uma mudada de posição. Acontece que, cá entre nós, é impossível se ajeitar com um tema espinhoso como é o da escravidão, e esta talvez seja a melhor novidade da recepção de Vazante: nos dias de hoje, ninguém tem como virar as costas para o passado escravista e dizer que ele não nos diz respeito. Cresci num mundo de descendentes de imigrantes que, por terem aqui chegado no século XX, achavam que a escravidão era coisa do passado dos outros, não tinha nada a ver com a gente. Mas como bem disse a escritora Ana Maria Gonçalves em recente debate sobre o filme, não podemos ignorar como a história da escravidão afeta hoje a vida dos negros no Brasil (estou citando de cabeça; quem quiser checar a fala e acompanhar o debate, que também contou com o cineasta Joel Zito de Araújo e com a própria diretora Daniela Thomas, clique aqui).  E todos nós que vivemos nesta sociedade racista lidamos, embora muito desigualmente, com as marcas da escravidão.

images

Daí que, em Vazante, a escravidão não é moldura, é estrutura (para quem não leu, estou aqui dialogando com Flavia Oliveira, “Escravidão é moldura”, O Globo, 07 de novembro de 2017). A escravidão e o racismo são tão centrais para a narrativa do filme como o são para a compreensão da história brasileira.  É a existência da escravidão que fundamenta as relações violentas, opressoras e traumáticas tratadas no filme. E que nos confronta com situações difíceis de digerir, como aquela que também a mim marcou, na qual um dos personagens, africano, líder dos demais, fala, angustiado, em uma língua que quase ninguém entende, nem mesmo o negro – possivelmente liberto, ali desempenhando a função de capataz – que, a mando do senhor, apontava uma arma para o rebelde. É com ele que o homem branco desabafa: “eu não sei o que esse negro está dizendo”. Seu interlocutor também não sabia. É a escravidão que torna compreensível esta cena terrível. Da mesma forma, é só à luz do nazismo que conseguimos encarar a situação dos kapos judeus, forçados a colaborar para sobreviver durante o Holocausto. Quando uma vítima aponta uma arma para outra, nenhuma das duas sobrevive.

É também a escravidão a chave de leitura da perversidade de uma sociedade que naturaliza o estupro das mulheres escravizadas por seus senhores, que convive com a relação entre uma moça ainda meio criança com o homem que antes havia casado com sua tia e que não tolera o amor entre um menino negro escravizado e uma menina branca, criada para ser sua futura sinhá.

Em Vazante, Daniela Thomas constrói uma narrativa sobre o passado fincada no presente. Têm razão os que dizem que a recepção do filme seria outra há dez, quinze anos atrás, e é maravilhoso que seja assim. Há tempos atrás o filme seria outro também. Precisamos tanto de filmes corajosos quanto de plateias barulhentas, indignadas, apaixonadas. Plateias de todas as cores, participadoras e provocadoras, não espectadoras. Que o bom barulho provocado por este filme ecoe no futuro: precisamos de filmes, discos e livros que, como bem escreveu neste blog Hebe Mattos, encarem de frente o “trauma da escravidão na sociedade brasileira e das identidades diferentemente racializadas que produziu”. 

001887002019

“A Redenção de Cam”, de Modesto Brocos, 1894. Acervo Museu Nacional de Belas Artes

É em nome dessa provocação que saí do cinema pensando que, se a narrativa de Vazante nos instiga a lidar imperiosamente com este passado, é na cena final que o filme, ao se distanciar da História, propõe outros olhares sobre sua superação. Ao subverter a clássica imagem da ama de leite negra amamentando a criança branca, Daniela Thomas inverte a cena principal do famoso quadro A Redenção de Cam (1894), no qual o pintor Modesto Brocos sugere que o embranquecimento, fruto da mestiçagem, seria a redenção da nação. Sem omitir a tragédia que a originou, não seria a imagem de uma mulher branca amamentando uma criança negra uma alegoria do empretecimento como possibilidade de redenção?

2 Comentários

Arquivado em história pública

Bolsonaro não é bom para os judeus

Era começarmos a discutir uma questão política polêmica que meu avô, com ar matreiro e indiscutível sotaque ídiche, vinha com a clássica pergunta: isso é bom para os judeus? Só depois de ponderar a respeito ele dava sua opinião. Lembrei do meu avô a propósito do convite da Hebraica-Rio ao deputado de extrema-direita do PSC para palestrar no clube em evento exclusivo para convidados no próximo dia 03 de abril.

A Hebraica já conheceu dias melhores. Criado na década de 1950, o clube abrigou gerações de judeus cariocas que frequentavam a piscina, jogavam bola e biriba, iam à boate e às aulinhas de artesanato aos sábados. Hoje o clube aluga seus espaços para empresas de esportes, aloca uma pequena escola religiosa e um ou outro evento comunitário. A comunidade judaica mudou e, ao que parece, vem deixando a Hebraica para trás.

fayga-em-frente-ao-mural-da-hebraica-rio-de-janeiro-inaugurado-em-19--de-maio-de-1962

Fayga Ostrower e o mural de sua autoria na Hebraica-Rio. Rio de Janeiro, 1962. Acervo Instituto Fayga Ostrower

A questão é que mesmo pouco frequentada, a Hebraica ainda é, e sempre será, uma casa judaica. E casas judaicas não abrigam fascistas.

Todos os anos lembramos da tragédia do Holocausto. Muitos sobreviventes relatam a revolta que sentiram ante a indiferença de seus vizinhos e amigos que nada fizeram para impedir a ascensão do nazismo. Não ajudaram os judeus porque o nazismo não era com eles. Para aqueles que acham que as ideias propagadas por Bolsonaro não lhes dizem respeito, esta é a hora de mostrarmos que não esquecemos do Holocausto. Que não somos indiferentes.

tmp718774567169949698

Acervo International Day Against Fascism, http://dayagainstfascism.eu

Que ninguém se engane: quem diz “sem essa de Estado laico, somos um Estado cristão” não está do lado dos judeus. Quem é a favor da tortura e do estupro não pode estar do lado dos judeus. Homofóbicos não estão do lado dos judeus. Racistas são contra os judeus. Bolsonaro não é bom para os judeus.

Essa pergunta meu avô imigrante que fugiu do anti-semitismo na Russia jamais faria, mas é bom repetir a resposta porque parece que muita gente bem-intencionada ainda não entendeu: não, Bolsonaro não é bom para os judeus. E a indiferença não é uma opção.  

Carta aberta à Hebraica

Protesto contra a palestra marcado para 18:15h na calçada oposta à Hebraica. #Nãoemnossonome

2 Comentários

Arquivado em Uncategorized

O ProfHistoria e o bom combate

Afirmo sem medo de errar que o ProfHistoria é a maior novidade da pós-graduação em História no Brasil. Como a Monica Lima já escreveu por aqui, o mestrado profissional em Ensino de História, nome completo do ProfHistoria, ocorre hoje em 27 universidades de todo o Brasil, congregando professores da Educação Básica e do ensino superior em torno de um objetivo comum: contribuir para a melhoria do ensino de História no Brasil. Queremos contribuir com reflexões, mas também com ações práticas, de preferência umas atreladas às outras.

Um bom exemplo do impacto que programa já provoca ficou evidente no Seminário de Ensino de História da Africa, da Cultura Afro-Brasileira e Indígena nas Escolas, ocorrido sábado passado na UNIRIO. A partir dos trabalhos finais de mestrandos do Programa, realizamos um dia inteiro de discussão em torno de quatro temas: religiosidade afro-brasileira; arte, histórias e biografias; patrimônio e ensino de História indígena; e currículo e relações étnico-raciais.

IMG_0589.JPG

Quem esteve lá ouviu professores entusiasmados com as suas práticas e ansiosos por compartilhar suas pesquisas.  Ninguém há de discordar que o momento é de resistência e luta pela defesa das conquistas obtidas nos últimos anos no campo da Educação. Mas o que vimos no sábado foi um grupo de professores animados em transformar os grandes desafios da sala de aula em experiências positivas. Mais do que nunca, é disto que precisamos. Como sempre, o tempo foi curto para o tanto que havia a conversar. Faremos outros. Enquanto isso, divulgaremos em breve aqui os trabalhos apresentados. Afinal, os mestres do ProfHistoria têm pressa, que há muito o que fazer e nenhum tempo a perder.

IMG_0524.JPG

 

O seminário foi uma iniciativa conjunta do ProfHistória/Rede Rio e do projeto de pesquisa “Passados Presentes: memórias da escravidão e políticas de reparação nas políticas públicas na área de educação no Brasil”, realizado pelo LABHOI/UFF, NUMEM/UNIRIO e pela Universidade de Columbia (NY, EUA), no âmbito do edital FAPERJ/Columbia. Abaixo, a programação completa.

img_0562

PROGRAMAÇÃO:

09:00 às 10:30
Mesa 1: Religiosidade Afro-Brasileira e o Ensino de História
Debatedora: Ivana Stolze Lima (FCRB e PUC-Rio)

Isabelle de Lacerda Nascentes Coelho – mestranda no ProfHistória (UFRRJ) / professora da rede estadual do Rio de Janeiro
O Axé na Sala de Aula: abordando as religiões afro-brasileiras no Ensino de História.

Carolina Barcellos Ferreira – mestre pelo ProfHistória (UERJ) / professora das redes municipais de Nova Iguaçu e Rio de Janeiro
“Isso é coisa da macumba?” Elaboração de um material pedagógico de História sobre as religiosidades afro-brasileiras em museus do Rio de Janeiro.

Jessika Rezende Souza – mestre pelo ProfHistória (UFRJ) / professora da rede estadual do Rio de Janeiro
Entre a cruz e o terreiro: uma análise em torno da integração entre a religiosidade afro-brasileira e o Ensino de História no Museu do Negro.

10:30 às 12:30
Mesa 2: Arte, Histórias e Biografias no Ensino de História da Africa e da Cultura Afro-Brasileira
Debatedora: Giovana Xavier (UFRJ)

Rafael Bastos Alves Privatti – mestre pelo ProfHistória (PUC-Rio) / professor da rede municipal do Rio de Janeiro e da rede estadual do Rio de Janeiro
Desenhos animados e ensino de História: uma aposta para o letramento nas séries iniciais da escolarização.

Lucas Moreira Calvo – mestre pelo ProfHistória (UFRJ) / professor da rede municipal do Rio de Janeiro e da rede estadual do Rio de Janeiro
Histórias conectadas no ensino de História: tecendo conexões entre o Norte da África e a Península Ibérica no período da expansão islâmica (séculos VII-IX).

Joana D’arc Araújo da Silva – mestre pelo ProfHistória (UFRJ) / professora da rede municipal do Rio de Janeiro e da rede estadual do Rio de Janeiro
Enegrecendo as Belas Artes: ensinando história por meio das trajetórias de dois pintores negros do Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX.

Carolina Viana Machado – mestre pelo ProfHistoria (UFRJ)
O pós-abolição nas aulas de História: uma análise do papel social atribuído aos negros na História ensinada.

14:00 às 15:30
Mesa 3: Patrimônio e Ensino de História Indígena
Debatedora: Regina Celestino (UFF)

Marcia de Souza da Silva Maia – mestranda no ProfHistória (Puc-Rio) / professora da rede particular de São João de Meriti
Parque Indígena do Xingu: um jogo para a lei 11.645/2008.

Carla Cristina Bernardino Ramos – mestre pelo ProfHistória (UFRJ) / professora da rede municipal de Araruama e da rede estadual do Rio de Janeiro
Presença Indígena em Araruama: Patrimônio e Ensino de História.

Thais Elisa Silva da Silveira – mestre pelo ProfHistória (UERJ) / professora da rede municipal de Duque de Caxias
Identidades Invisíveis: indígenas em contexto urbano e ensino de história na região metropolitana do Rio de Janeiro.

15:30 às 17:30
Mesa 4: Currículo e relações étnico-raciais no ensino de História
Debatedora: Cecília Silva Guimarães (UNIRIO)

Ana Carolina Mota da Costa Batista – mestre pelo ProfHistória (UFF) / professora da rede municipal de Araruama e da rede estadual do Rio de Janeiro
Relações étnico-raciais na voz do professor: currículo em debate no contexto quilombola.

Cristiane Lemos – mestre pelo ProfHistória (UNIRIO) / professora da rede estadual do Rio de Janeiro
Tecendo caminhos para aplicação da lei 10639/2003: um relato de experiência em turmas de 3º ano do Ensino Médio da rede pública.

Camila Abreu – mestre pelo ProfHistória (UNIRIO) / pós-graduada em Arte e Cultura (IUPERJ)
Quilombo de Maria Conga em Magé: memória, identidade e ensino de História.

Fernanda Nascimento Crespo – mestre pelo ProfHistória (UERJ) / professora da rede municipal do Rio de Janeiro e da rede estadual do Rio de Janeiro
O Brasil de Laudelina: usos do biográfico no ensino de história.

1 comentário

Arquivado em história pública, politicas de reparação

Professor não doutrina, professor ensina

Quisera eu ter o poder que o pessoal da Escola Sem Partido me atribui. Professores doutrinadores? Fazemos a cabeça dos nossos alunos? Sinceramente, nem se a gente quisesse. Só quem não tem ideia de o que se passa em uma sala de aula pode acreditar em uma tolice dessas.

Quando eu dava aula no Ensino Básico, até conseguir abrir a boca e começar a falar era um deus-nos-acuda. E não venham me dizer que eu era péssima professora. Estudo da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) mostra que o professor no Brasil gasta em media 20% da sua aula pedindo silêncio ou lutando contra a bagunça. O mesmo estudo mostra que o bendito professor gasta outros 12% do seu tempo com burocracias como o controle de presença. Sobra pouco. Considerando que cada tempo de aula tem entre 40 e 50 minutos, na realidade cada aula só dura uns 30 minutos.

Eu não duvidaria se os denunciadores de plantão listassem História, Geografia e Ciências como as disciplinas mais afeitas à “doutrinação”; as duas primeiras pelo crime de pretender “formar cidadãos”, a terceira por discutir a origem da vida e confundir os alunos com os temas da identidade de gênero e orientação sexual. Em geral, tais disciplinas têm entre dois e três tempos de aula por semana. Na melhor das hipóteses, seriam 150 minutos de aula por cada disciplina por semana. Mas não chega nem a isso: com tantas perdas, cada uma destas disciplinas têm, no máximo, 90 minutos de aula por semana. Vale a repetição: com muita sorte, nossos alunos têm 1 hora e meia de aula de História, Ciências e Geografia por semana.

Agora vamos comparar: quanto tempo seu filho passa por semana acessando a internet? E brincando no celular? Estudos mostram que as crianças brasileiras são as que mais acessam a internet no mundo: são cerca de 13 horas online por semana, gastos basicamente com entretenimento e jogos. Isto sem contar as cerca de 5 horas e meia por dia assistindo à televisão. Ou seja: as crianças brasileiras passam pelo menos 50 horas por semana prestando muito atenção nas telas, contra 1 hora e meia nas aulas de História, Geografia ou Ciências. Basta uma rápida análise nestes dados para saber que o problema da educação brasileira é outro. Ainda assim, não deixa de ser surpreendente que, em tão pouco tempo de aula, alguns professores consigam, com dedicação e disponibilidade para compartilhar o que sabem, despertar em seus alunos a genuína paixão pelo estudo e pelo conhecimento – que, afinal de contas, é o que torna possível o aprendizado.

A questão principal é que professor não doutrina, professor ensina. Denominar o conjunto de professores de “um exército organizado de militantes” (e isto só porque muitos definem, entre suas missões, a de formar cidadãos) é uma falácia sem qualquer correspondência com a realidade. Aliás, como mostrou matéria recente da Revista Nova Escola, o site do movimento registra “somente” 33 denúncias de suposto abuso por parte de professores. Seria muito barulho por nada se os objetivos não fossem nefastos e os métodos, desonestos. É desonestidade intelectual querer transformar a exceção, se é que ela existe, em regra. É desonestidade intelectual sair por aí dizendo que a doutrinação grassa nas escolas quando não se tem qualquer evidência de que este é um fenômeno significativo.

Mais ajuda quem não atrapalha. Vamos parar de atrapalhar o árduo trabalho dos professores. As propostas do Escola Sem Partido em absolutamente nada contribuem para melhorar a qualidade da educação deste país. Sejamos francos: a Educação brasileira está em estado calamitoso, e entre seus problemas mais graves está justamente a situação dos professores. Ao invés de ficar perdendo tempo com histórias de assombração, é hora de focar nos problemas reais. O salário dos professores brasileiros está entre os piores do mundo. A carreira docente hoje não atrai quase ninguém. O Brasil já ocupa um lugar muito ruim nos rankings mundiais de educação para corrermos o risco de ainda piorar.

 

9 Comentários

Arquivado em história pública

O mundo não é só dos espertos

(Sobre Pessach e os nossos lugares de fala)

De todas as festas judaicas, Pessach, comemorada na sexta passada, desde criança foi minha favorita. Na escola, a hagadá, o livro que lemos em Pessach, os hebreus apareciam curvados, carregando imensos tijolos usados para construir as pirâmides. Páginas adiante, seguiam em fila deserto afora atrás de Moises, até chegarem na Terra Prometida, terra do leite e do mel, onde todos podiam, dayeinu! (basta!, em hebraico) comer pão à vontade. Muito tempo depois, já na faculdade, aprendi que, entre a construção das pirâmides e a escravização dos hebreus, havia um hiato de uns mil e quinhentos anos. Ao interpelar minha antiga professora, ela respondeu que a verdade pouco importava se as crianças guardassem a mensagem.

FullSizeRender (3).jpg

Hagadá de Pessach, Escola Israelita Brasileira Eliezer Steinbarg, fim da década de 1970.

Na casa dos meus avós maternos, não faltavam mensagens de Pessach para guardar. O seder, nome do jantar que dá início à semana de privações para lembrarmos dos nossos antepassados escravizados no Egito, era animado. Nós, as crianças, sentávamos ao fundo de uma mesa enorme enquanto cochichávamos esperando a hora de cantar as músicas de praxe. Sentado na cabeceira do outro extremo da mesa, meu avô comandava a noite, alternando a reza com séries de tapas na mesa, que, sem sucesso, pediam silêncio. Nessas horas minha avó, ao seu lado, fazia um ar sério e compungido e dava uma piscadela pra gente, antes de voltar à conversa com a tia Lucy. A balbúrdia só era interrompida pelo sininho que avisava às empregadas a hora de servir o jantar. Depois da ceia, faltando ainda uma hora de reza e cantoria, todos disputávamos um lugar em um dos sofás do salão arranjado especialmente para a ocasião. Um deles hoje mora na minha casa. É o menos confortável de todos, mas não escondo um sorriso sempre que me esparramo ali. Ah, se meu irmão e meus primos me vissem, o sofá todo só pra mim!

Eu levei o sofá, mas o afikoman, em compensação, nunca consegui. O afikoman é um pedaço da matzá (pão sem fermento, feito de farinha e água, comido pelos judeus durante o Pessach) escondido pelos donos da casa antes do jantar. Reza a tradição que, depois do jantar, o seder só continua depois que alguém — uma das criança da casa — acha o embrulho e o dá ao responsável pela reza em troca de um presente ou algumas moedas. Quando acabávamos de comer, saíamos, as crianças, loucas pela casa atrás do guardanapo branco. Dos nove netos, quem geralmente achava o afikoman era uma das minhas primas. Nós duas chegávamos algumas horas mais cedo, supostamente para ajudarmos a fazer alguma coisa que agora nem me lembro. Uma vez descobri que, quando a busca ao afikoman começou, ela já o tinha encontrado há muito tempo. Reclamei com a minha avó. E ouvi de volta o comentário meio resignado, meio me alertando, minha querida, o mundo é dos espertos. Acho que a Gi sempre foi mesmo a mais esperta, tanto que hoje até mora na Australia. Eu adorava minha avó e achava que devia haver alguma ligação entre a esperteza dos judeus e a fuga da escravidão. A conquista da liberdade depois de quarenta anos vagando pelo Sinai só podia mesmo ser coisa para espertos.

FullSizeRender (4)

Idem. A obra de arte na página 18 é de minha autoria.

Não foram poucos os escritores que associaram Pessach à reflexão sobre os nossos dilemas contemporâneos, individuais e coletivos.  Durante a ditadura, Carlos Heitor Cony fez sucesso com o livro Pessach, a travessia; e a Hagadá para nossos dias de Moacyr Scliar circula até hoje e é lida e adaptada aos montes por aí. Nos dias de hoje, a simbologia de Pessach virou uma metáfora imbatível, para livro de auto-ajuda nenhum botar defeito. Minha timeline no facebook está cheia de mensagens libertadoras. Eu curto todas. Que tenhamos coragem de cruzar nossos desertos internos e nos libertar dos fantasmas que nos escravizam. Que possamos livrar o mundo do jugo dos poderosos. Que os nossos antepassados nos inspirem a lutar contra a fome, a miséria, o antissemitismo, o capitalismo, o comunismo, a ditadura, a mídia e a corrupção. (Nessa noite que é diferente de todas as outras noites, alguns certamente brindarão à vitória do último domingo contra um Estado que julgam excessivamente espaçoso, ocupado por gente pouco merecedora do cargo. Eu, aqui no meu cantinho, desejo que mantenhamos nossos espíritos abertos na luta contra a escravidão do pensamento único. E ao meu jeito rezo para que consigamos persistir na defesa da democracia, o outro nome da liberdade.)

Metáforas a parte, o que gosto de comemorar em Pessach é mais o fato do que a interpretação. Crescendo na zona sul do Rio de Janeiro nas décadas de 1970 e 1980, para mim os descendentes dos hebreus que construíram as pirâmides do Egito não éramos nós, crianças judias de classe média, quase todas brancas, que estudávamos em uma escola judaica particular, mas aquelas quase todas negras, quase nenhuma de classe média, que estudavam na escola pública ao lado. E que, se mulheres fossem, grandes eram as chances de acabar servindo as mesas das casas de classe média como a da minha avó. Acho que comecei a me interessar pelo estudo da escravidão no Brasil  por estar ainda impressionada com os contos de Pessach que ouvi na infância, não importa que falsos, e porque a liberdade que eu via no fim do século XX me parecia mais um mistério.

E também porque, criança, eu sentia que havia qualquer coisa de errado naquele muro que separava (e ainda separa) as duas escolas e os universos de seus alunos. Que nem aquela história de o mundo ser dos espertos. No fundo, no fundo, era uma baita de uma injustiça.

FullSizeRender (5)

Ibidem!

2 Comentários

Arquivado em história e memória