Professor não doutrina, professor ensina

Quisera eu ter o poder que o pessoal da Escola Sem Partido me atribui. Professores doutrinadores? Fazemos a cabeça dos nossos alunos? Sinceramente, nem se a gente quisesse. Só quem não tem ideia de o que se passa em uma sala de aula pode acreditar em uma tolice dessas.

Quando eu dava aula no Ensino Básico, até conseguir abrir a boca e começar a falar era um deus-nos-acuda. E não venham me dizer que eu era péssima professora. Estudo da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) mostra que o professor no Brasil gasta em media 20% da sua aula pedindo silêncio ou lutando contra a bagunça. O mesmo estudo mostra que o bendito professor gasta outros 12% do seu tempo com burocracias como o controle de presença. Sobra pouco. Considerando que cada tempo de aula tem entre 40 e 50 minutos, na realidade cada aula só dura uns 30 minutos.

Eu não duvidaria se os denunciadores de plantão listassem História, Geografia e Ciências como as disciplinas mais afeitas à “doutrinação”; as duas primeiras pelo crime de pretender “formar cidadãos”, a terceira por discutir a origem da vida e confundir os alunos com os temas da identidade de gênero e orientação sexual. Em geral, tais disciplinas têm entre dois e três tempos de aula por semana. Na melhor das hipóteses, seriam 150 minutos de aula por cada disciplina por semana. Mas não chega nem a isso: com tantas perdas, cada uma destas disciplinas têm, no máximo, 90 minutos de aula por semana. Vale a repetição: com muita sorte, nossos alunos têm 1 hora e meia de aula de História, Ciências e Geografia por semana.

Agora vamos comparar: quanto tempo seu filho passa por semana acessando a internet? E brincando no celular? Estudos mostram que as crianças brasileiras são as que mais acessam a internet no mundo: são cerca de 13 horas online por semana, gastos basicamente com entretenimento e jogos. Isto sem contar as cerca de 5 horas e meia por dia assistindo à televisão. Ou seja: as crianças brasileiras passam pelo menos 50 horas por semana prestando muito atenção nas telas, contra 1 hora e meia nas aulas de História, Geografia ou Ciências. Basta uma rápida análise nestes dados para saber que o problema da educação brasileira é outro. Ainda assim, não deixa de ser surpreendente que, em tão pouco tempo de aula, alguns professores consigam, com dedicação e disponibilidade para compartilhar o que sabem, despertar em seus alunos a genuína paixão pelo estudo e pelo conhecimento – que, afinal de contas, é o que torna possível o aprendizado.

A questão principal é que professor não doutrina, professor ensina. Denominar o conjunto de professores de “um exército organizado de militantes” (e isto só porque muitos definem, entre suas missões, a de formar cidadãos) é uma falácia sem qualquer correspondência com a realidade. Aliás, como mostrou matéria recente da Revista Nova Escola, o site do movimento registra “somente” 33 denúncias de suposto abuso por parte de professores. Seria muito barulho por nada se os objetivos não fossem nefastos e os métodos, desonestos. É desonestidade intelectual querer transformar a exceção, se é que ela existe, em regra. É desonestidade intelectual sair por aí dizendo que a doutrinação grassa nas escolas quando não se tem qualquer evidência de que este é um fenômeno significativo.

Mais ajuda quem não atrapalha. Vamos parar de atrapalhar o árduo trabalho dos professores. As propostas do Escola Sem Partido em absolutamente nada contribuem para melhorar a qualidade da educação deste país. Sejamos francos: a Educação brasileira está em estado calamitoso, e entre seus problemas mais graves está justamente a situação dos professores. Ao invés de ficar perdendo tempo com histórias de assombração, é hora de focar nos problemas reais. O salário dos professores brasileiros está entre os piores do mundo. A carreira docente hoje não atrai quase ninguém. O Brasil já ocupa um lugar muito ruim nos rankings mundiais de educação para corrermos o risco de ainda piorar.

 

9 Comentários

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9 Respostas para “Professor não doutrina, professor ensina

  1. Luciano Gomes

    Ótimo texto. Queria acrescentar que além dos objetivos terríveis dos autores dessas leis pelo país, há outro elemento muito preocupante. Tendo em vista que as escolas públicas na maioria das vezes não são espaços democráticos e não possuem direções eleitas, essa lei se tornaria mais um instrumento de ameaça e perseguição de professores que não seguirem as regras dos que se acham “donos da escola”. Até provar que focinho de porco não é tomada o professor já foi afastado da escola, sofreu punições ou mesmo foi intimidado por parte dos coronéis na direção, dos responsáveis dos alunos e de coordenadores das secretarias de educação.

  2. Alba Janes

    Enquanto nossos salários estão defasados, o jurídico ganha no mínimo 50 mil reais.

  3. Muito bom ! Educar só se faz com a abertura para a complexidade do mundo que nos cerca, isso não é doutrinação , isso se chama educação.

  4. Italo

    Também não sou a favor dessa lei, mas existem sim professores que não aceitam ou toleram opiniões diferentes, eu mesmo já fui ridicularizado na sala de aula por causa de minha posição sobre a política. Isso é triste.

  5. Maxwell Araujo

    Excelente análise. Nossos alunos não são idiotas, tampouco “tábua rasa”. Leciono História há 16 anos e sempre mostrei para meus alunos os “vários lados da História”, a quem interessa um discurso sobre determinado fato histórico? Sempre luto para a reflexão e nunca a coação! Como estes “puritanos fascistas defensores da Escola Sem Partido”, que na visão unilateral deles, só se pode falar em sala sobre as benesses do capitalismo e da moral judaica-cristã ariana?
    Muitas vezes nossos alunos não assimilam o que ensinamos sobre nossa disciplina, vão bem se deixar ser levados, doutrinados pelos professores. Não somos deuses! Não temos estes super poderes!

  6. Luana

    Também sou super contra esta medida, justamente por violar a liberdade de expressão que o professor, como qualquer cidadão possui. Eu não acho que os alunos sejam doutrinados, mas, sejamos realistas, porque a maioria dos estudantes saem da escola com um pensamento esquerdista? Porque quase todos saem com a ideia de que o capitalismo seja meramente ruim e que não tem lados positivos? Não tenho números para comprovar isso, mas é o que observo dentre grande parte das pessoas que conheço. Não chegaria a dizer que é doutrinação, até porque prefiro acreditar que um professor que ganha o salário vergonhoso e muito abaixo do que ele realmente mereça ganhar faz o que faz por amor e com certeza quer passar não só conhecimento, mas também instigar pensamento crítico em seus alunos. A minha ressalva é que para que um aluno realmente possa desenvolver este senso crítico, é preciso mostrá-lo todas as facetas e pontos e vista sobre determinado ponto. Não quero que o professor abstenha de sua opinião, mas sim que promova mais debates, não só expondo e defendendo suas ideias, como também convidando alguém que pense totalmente diferente dele para falar com os alunos para que aí então estes decidam de que lado estão. Acho que o problema não é uma doutrinação e sim uma falta de pluralidade de ideias. Falo isso porque eu cresci ouvindo que vivemos um “capetalismo” e hoje, apesar de ainda achar que esse sistema está longe de ser perfeito, vejo que ele tem sim seus lados positivos (não só pros ricos, vale ressaltar).

  7. Lania

    Existe doutrinação sim, nao sao todos, mas a maioria.

  8. Tudo isso relatado acima é a mais pura verdade. Em 2019 completo 30 anos de educação, detalhe: sou professora de História. Não se “faz a cabeça” de aluno não. Ou doutrinação como estão chamando. Despertei me para o estudo de História através de jornais, filmes e…televisão. Terminando o Ensino Médio cursei Ciencias Sociais e Política e nenhum professor conseguiu me doutrinar, se e que tentaram. Depois fui fazer História.
    Se escola ou professor doutrinassem crianças e jovens a primeira coisa que estaria acontecendo era que teriamos alunos que lessem, estudassem…
    Em uma sala com 40 alunos, saem meia -boca como pesquisadores etc.

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