Arquivo do autor:Monica Lima

Sobre Monica Lima

Professora de História da África da UFRJ, pesquisa ensino de história da África e histórias de africanos no Brasil em conexão com seu continente de origem. Coordena o LEÁFRICA - Laboratório de Estudos Africanos da UFRJ.

Sobre destruição e reconstrução

“Pode não parecer, mas eu tenho uma história

Uma casa com alicerces profundos, paredes flexíveis.

No quintal uma mina d’água na sombra de um jequitibá.”

trecho de “História”, poema de Ana Cruz, publicado em SEMOG, Ele(org). Amor e outras revoluções, Grupo Negrícia. Rio de Janeiro: Pallas, 2019

Tenho acompanhado apaixonadamente as matérias jornalísticas e os debates sobre a derrubada e intervenção nas estátuas que homenageiam personagens cuja trajetória esteve ligada ao tráfico escravista, à própria escravidão, ao colonialismo e à diversas expressões de racismo. Leio e mal posso controlar meu entusiasmo, tornam-se um sopro de energia no meio da onda nefasta que me é trazida pelo assassinato sistemático de negros, o extermínio consentido de povos indígenas, as mortes da pandemia e a vida política do nosso país – cujas notícias vinham desnutrindo cotidianamente minha força vital.

Como historiadora e cidadã, reconheço que não é simples a discussão, e que há que se escutar e pesar bem os argumentos que assinalam o significado de um monumento para o entendimento da história, o valor de um patrimônio e a impossibilidade de estarmos destruindo e reconstruindo permanentemente nossas cidades e logradouros para que sejam erguidas estátuas, praças e prédios com outros personagens e referências. No entanto, nenhuma dessas ponderações até agora me convenceu que os movimentos e ações levadas a cabo por manifestantes em diferentes partes do mundo estejam equivocados. Muito pelo contrário, a articulação que esses movimentos recentes trazem com a campanha internacional #vidasnegrasimportam os tornaram não apenas oportunos como situados ao lado da justiça e da defesa de causas fundamentais para o momento em que estamos.

Vale lembrar outra história, que algumas vezes tem estado presente nesse debate. Em 2015, estudantes e ativistas sul-africanos iniciaram uma campanha para a retirada da estátua em homenagem a Cecil Rhodes na Universidade do Cabo, na África do Sul. Esta campanha teve como um de seus líderes um estudante bolsista de origem popular da universidade, que se chamava Chumani Maxwele, e que protagonizou uma ação de inequívoco desprezo pelo monumento atirando fezes na estátua. O caráter desse gesto causou espécie a muitos, e deu partida tanto a uma discussão sobre o “respeito ao patrimônio” como sobre o que deveria ser a conduta “mais adequada” de uma manifestação política. Outras lideranças estudantis surgiram, e o movimento cresceu, alcançou outras universidades fora da África do Sul, ganhou espaço na imprensa internacional e nas redes sociais e… Rhodes caiu. Porém, para além da vitória dos ativistas, o movimento #RodhesMustFall abriu espaço para um debate – que já existia, mas se fortaleceu – sobre o ensino de história da África do Sul e as diferentes perspectivas presentes nesse mesmo processo, considerando que estudantes africâneres também haviam engrossando a campanha, por questionarem a presença de uma visão favorável ao colonialismo inglês.

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A história ocorrida na África do Sul nos permite pensar um pouco mais sobre o quanto ainda temos que avançar, no Brasil, no ensino da história e cultura africana e afro-brasileira e no conhecimento e reconhecimento de espaços e monumentos que nos remetem a nossa ancestralidade, a nossa luta, e aos personagens que as protagonizaram. Os monumentos que homenageiam os que se dedicaram a oprimir, a destruir e desvalorizar nosso passado presente negro africano podem e devem ser deslocados ou ressignificados, quando sua presença nos causar dor e ofender nossa autoestima. E por isso é importante debater sobre eles, problematizá-los. Mas, é importante também pensarmos em como produzirmos outros monumentos e ocupar a cidade com outras histórias.

Numa discussão com o grupo de representantes do conselho consultivo do Museu de História Africana e Afro-brasileira – projeto hoje silenciado – junto com a historiadora Martha Abreu, iniciamos um importante e rico debate sobre as formas de representar a história da escravidão, marcada pela violência e sofrimento, mas também pela criação, resistência e enfrentamento por parte das pessoas postas em situação de cativeiro. Foi apenas um começo, mas já nos anunciou as grandes possibilidades que esse caminho abria. Como romper com os estereótipos sustentados por imagens e textos que historicamente subalternizavam os escravizados? Como trazer questões contemporâneas, urgentes, como o debate sobre reparação e associá-lo a essa história, sem reduzir toda a explicação da força do racismo na nossa sociedade à escravidão? Como exibir, apresentar visualmente e materialmente esse passado presente – trago o termo remetendo conscientemente ao projeto que o consagrou – de forma a valorizar nossa história e a luta da população africana e negra? Certamente, não tenho respostas imediatas, mas a certeza que ampliar essa discussão e ouvir – e considerar – as pessoas e comunidades mais diretamente envolvidas nos efeitos desse passado sensível é a melhor maneira de dar conta dessas questões.

Valorizar essa história, com seus alicerces profundos e paredes flexíveis (como lembra o lindo poema de Ana Cruz, que recomendam que leiam todo), terá o poder de reconstruir e ressignificar o nosso patrimônio, nas nossas cidades e no nosso país.

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crédito da foto.

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A história viva e os nossos mortos no 13 de maio

 

“A morte não emite som de trombeta” (ditado do Congo)

 

O que mais pode nos trazer como matéria de reflexão uma data como essa, o 13 de Maio, em meio a uma pandemia assustadora, que nos mantém reféns de um medo que vai da ameaça do vírus a negacionismos de autoridades governamentais que reforçam um discurso anticientífico, e que desconhecem a relevância dos mortos pela covid19? O que temos a lembrar sobre o dia da abolição da escravidão, nos nossos dias, pensando a História como um conhecimento que atravessa o passado e chega ao presente, levantando véus e reconhecendo voz e vida também naqueles que faleceram?

Há outros 13 de maios a serem lembrados, e um deles com especial razão no atual momento. Há quinze anos, nessa data, era fundado o Instituto de Pretos Novos – IPN, instituição que abriga e preserva o Cemitério Pretos Novos, situado na zona portuária da cidade do Rio de Janeiro. A história desse cemitério está ligada ao complexo escravagista criado na região do entorno do Cais do Valongo entre fins do século XVIII e 1831, na qual centenas de milhares de africanos escravizados foram desembarcados e de onde os cativos recém-chegados não poderiam sair “nem depois de mortos”. Neste local, os escravizados que haviam chegado adoecidos pela terrível travessia atlântica e que, não conseguindo se recuperar, vinham a falecer, eram enterrados numa vala comum, de um modo tão precário que muitas vezes seus restos mortais ficavam “à flor da terra” .  E tudo isso sem direito à choro nem vela, o que, para suas culturas de origem, era mais do que um profundo desrespeito, uma maldição.

A lei de proibição do tráfico escravista de 1831 fez com que o desembarque de africanos   escravizados deixasse de ser feito na região central da cidade, esvaziando dessa função o Cais do Valongo e desativando o Cemitério de Pretos Novos. Sua história, assim como a do cais, é enterrada de forma material, em obras sucessivas que remodelam a região portuária e, de forma simbólica, com a mudança de nomes – a antiga Rua do Cemitério passa a ser Rua Pedro Ernesto – e, sobretudo, o silenciamento dessa memória de uma história que se escreveu querendo apagar as marcas da escravidão.

Em 1996, uma família carioca encontra pedaços de ossos realizando uma obra em sua casa, nesta mesma rua, que fica no bairro da Saúde, zona portuária do Rio. A princípio não sabiam do que se tratava, mas logo descobriram: era o Cemitério de Pretos Novos. Merced Guimarães e sua família passam então a se responsabilizar por cuidar e gerir um sítio histórico de valor incomensurável: nele se encontram restos mortais de milhares de africanos e africanas que, transportados à força de sua terra natal, atravessaram o oceano e vieram ter como última morada o solo brasileiro. A guarda desse lugar de memória sensível, testemunho material da crueldade da escravidão, depois de muita luta e do enfrentamento do descaso de autoridades, num 13 de maio de há quinze anos, passou a ser exercida pelo Instituto de Pretos Novos, que ainda sobrevive com muitas dificuldades.

E o que tem esse 13 de maio do IPN a ver com nossos dias? Muito. O Cemitério de Pretos Novos nos faz lembrar da abolição, que é incompleta porque não reparou as incontáveis perdas da população negra e africana de seu tempo, bem como a de seus descendentes, marcados pelo sofrimento do racismo, além da profunda desigualdade social. E nos recorda que não deve existir vala comum simbólica para nenhum dos nossos falecidos, que todos importam, e que o respeito à morte é respeito à vida. Que os corpos dos nossos antepassados africanos guardados pelo IPN possam ser reconhecidos como parte de nossa História, assim como os nossos bem-amados de hoje que se foram nesse mar da pandemia venham a ser resgatados pela nossa memória. Como diz o ditado congolês, a morte não emite som de trombeta. Cabe a nós fazê-la soar.

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Mwana

Mwana quer dizer criança no idioma Xona, falado em Moçambique, Zimbábue e Zâmbia. O Xona (grafado algumas vezes como Xhona) pertence ao tronco linguístico banto – origem de diversas línguas africanas que existem ao sul da linha do Equador no continente e que, pela história da travessia atlântica de cativos, marcaram fortemente o Português falado no Brasil. Nosso vínculo com o termo mwana situa-se, mais além do parentesco dos termos banto no vocabulário que usamos, na presença desse universo cultural de matriz africana nos formando como sociedade.

Porém, a Mwana a que me refiro é o nome de uma exposição de fotos, acompanhada por uma série de atividades, vinculada ao Espaço Memória Arte e Sociedade Jessie Jane Vieira de Souza (Espaço JJ), projeto de extensão da Decania do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFRJ. As atividades dessa curadoria Mwana: Infância e Relações Raciais no Brasil e na África estão programadas até o dia 29 de novembro desse ano, mas a exposição no Espaço JJ seguirá até 31 de março de 2018, com chances de mais atividades acontecerem no seu último mês.

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Cartaz de divulgação da programação. Arte e design de Fábio Marinho (UFRJ).

O tema central da Mwana, indicado no subtítulo, aparece nas trinta e duas fotos – belíssimos trabalhos generosamente cedidos por Lucas Landau e Stela Caputo – e em atividades com crianças (contação de histórias, oficina de arte, roda de capoeira e samba de roda), além da exibição de filmes com debates, mesas-redondas, oficinas de formação de educadores e apresentações artísticas, quase sempre às quartas-feiras – por isso carinhosamente chamadas de Quartas Pretinhas. Em todos esses momentos, a criança é o centro da discussão, com atenção especial aos temas sensíveis relacionados à expressão e sofrimento do racismo na infância e à problematização das formas de representação da criança negra.

Mwana tem uma dupla origem, como tantas coisas. Por um lado, nasce da pesquisa histórica para elaboração do dossiê de candidatura do Cais do Valongo a patrimônio da humanidade, do qual participei direta e intensamente. Ao lidar com as fontes relacionadas ao tráfico atlântico de africanos escravizados durante o período de funcionamento do cais, entre fins do século XVIII e 1831, constatei o expressivo número de crianças cativas nas embarcações que aportavam na cidade do Rio de Janeiro, num percentual que gira em torno de 30% do total de desembarcados.  Não se tratava de uma novidade: o crescimento do número de crianças na demografia do tráfico escravista no século XIX já fora assinalado em trabalhos de historiadores brasileiros e estrangeiros, como Manolo Florentino e Ben Lawrance, e mais recentemente, em trabalho de  Marcus Carvalho. Crianças escravizadas recém-chegadas do continente são identificadas em especial nos relatos de viajantes sobre o mercado do Valongo e também se fazem ver ao visitar-se a iconografia de época. Nos restos mortais encontrados no Cemitério de Pretos Novos estão igualmente presentes em grande número. Tudo isso que, a muitos, como a mim, comove profundamente, fortaleceu, na redação do dossiê de candidatura, a tese que apresentou o Cais do Valongo como sítio histórico de caráter sensível – entendimento totalmente aceito pelo Comitê da UNESCO.

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Por outro lado, Mwana também nasceu da luminosidade existente nas imagens produzidas por Lucas Landau, jovem e talentoso fotógrafo brasileiro que, ao voltar de sua viagem de trabalho na África do Sul no ano passado, trouxe na bagagem um acervo lindíssimo sobre crianças de Blikkiesdorp, na periferia da Cidade do Cabo, e de uma escola rural na província do Limpopo. E ele decidiu doar essas fotos para quem pudesse pretender usá-las para estudo, o que fez com que chegassem frente aos meus olhos e até as minhas mãos. Nas imagens que trouxe, a brincadeira, o riso e a disposição para a pose frente à máquina fotográfica me conquistaram de pronto. Não eram realidades maquiadas, em diversas fotos se percebe a dureza das circunstâncias – mas, as crianças estavam ali, afirmativamente, encarando a vida. Um enfoque fazendo a diferença dos lugares-comuns de miséria, doença e morte em que sempre situam as crianças negras africanas. Como ele mesmo relata, elas se colocaram para a foto, pautaram seus sorrisos e suas brincadeiras.

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Estudantes da Escola Primária St Patrick Mathibela, localizada em Namakgale, Limpopo, zona rural da África do Sul. Foto de Lucas Landau

E Mwana não ficou por aí. A força do olhar das crianças sul-africanas fez lembrar as nossas heranças, o legado intangível dessa energia vital que cruzara o Atlântico dolorosamente e tantas belezas criara por aqui. E, a partir desse fio de contas que entrelaça as histórias, entraram as belíssimas fotos de Stela Caputo, pesquisadora e professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, que tem como sujeitos de seus estudos as crianças de terreiro. As fotografias para ela são instrumentos dessa investigação que trilha há pelo menos uma década. Nas imagens de Stela, a doçura, a pureza e a firmeza do olhar das crianças nos diferentes espaços religiosos de matriz africana no Brasil desafiam o preconceito e o racismo religioso. O grupo de pesquisa Kékéré – que significa pequeno em iorubá – por ela coordenado, fez um vídeo comovente em que aparecem algumas das crianças presentes nas fotos.

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Dandara e as folhas. Foto de Stela Caputo

As crianças, visitantes especialmente importantes à Mwana, vem interagindo com as fotografias, escolhem as suas preferidas, enxergam (percebem) situações (“essa aqui está voando” – dizem sobre uma das imagens) e dialogam a partir do que observam na vitrine de objetos artísticos e afro-religiosos que faz parte da exposição, tecendo comentários e observações. Nas rodas de contação de histórias africanas e afro-brasileiras, conhecem personagens que trazem na pele a beleza da cor da noite, com as quais muitas se identificam. Mwana já teve a visita de crianças das duas unidades de Educação Básica da UFRJ: a Escola de Educação Infantil e o Colégio de Aplicação, e espera receber, em visitas guiadas agendadas, outras escolas. E não somente as crianças se encantam.

Por isso, conto uma das muitas histórias da Mwana. Na noite após a montagem, ao sair, encontro duas funcionárias da equipe de limpeza da universidade, duas mulheres negras, tirando fotos – selfies – na exposição. Uma delas, empunhando o celular ao lado de uma das imagens dos meninos africanos que nos trouxe Lucas Landau, sorria e dizia: “parecem meus sobrinhos.” A outra me vê passando e diz, mostrando as fotos das crianças de terreiro de Stela Caputo, falando em tom propositalmente baixo: “adoro isso, é minha religião também.”

Estudantes, funcionários técnicos e professores, não só da UFRJ, circulam pelo Espaço JJ – de dimensões reduzidas, modestas, mas que adora receber. E a programação é diversificada. Já houve sessão de cinema com o documentário Menino 23, seguida por intenso debate. Na semana que vem, terá samba de roda e capoeira com crianças cegas e com baixa visão, trazidas por educadores do Instituto Benjamin Constant. E mais virá. Tudo isso, como bem mostra o cartaz, entrando na roda, na gira da Mwana.

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Do Congo ao Valongo

Hoje o quilombo vem dizer
A favela vem dizer
A rua vem dizer
Que é nós! Por nós!

 

Com esse estribilho, em alto bom som, Mano Teko celebrou, cantando, o aniversário do Filhos de Gandhi no Rio de Janeiro, na noite de 12 de agosto passado na Praça dos Estivadores, zona portuária da cidade. E estiveram ali Agbara Dudu, Banda Òrúnmilá, As Três Marias, Grupo Dandalua e Maracatu Baque Mulher, entre outros grupos e artistas, marcaram presença na praça – antigo Largo do Depósito – festejando a existência e história deste afoxé, com discursos e canções que exaltavam a importância da consciência e resistência da cultura negra local.  Lá também se apresentou o Afóxé Filhas de Gandhi – cabeças iluminadas e autônomas, como se qualificam – trazendo sua dança, música e uma fala afirmativa e poderosa que entusiasmou a assistência de uma forma única.

 

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Na ocasião festiva, em diversos momentos se destacou o reconhecimento do Cais do Valongo como patrimônio cultural da humanidade. O Cais, como símbolo da chegada de africanos e africanas escravizados nessa cidade, no país e no continente americano, hoje atravessa os discursos e se coloca não apenas como porta de entrada das muitas áfricas que aqui chegaram, mas também como referência de um caminho afirmativo para a nossa história e identidade. Uma vez cientes das dores e injustiças, trazendo-as vivas na memória, se pode celebrar a beleza e força vital de nossos ancestrais, em honra dos quais se dá prosseguimento à luta e se faz a festa.

Com toda a razão, o fato do Cais do Valongo ter sido alçado à patrimônio cultural que os humanos compartilham veio a favorecer um incremento de atividades em que grupos negros da cidade ocupam com diversas expressões de sua arte, as praças e espaços públicos da região portuária. E tem que ser assim, deve ser assim. São essas pessoas que trazem uma história que deve ser especialmente visibilizada, afirmada, e valorizada naquele entorno. As pedras pisadas do local de desembarque que, assim como o Cemitério de Pretos Novos, tanto medo e dor testemunharam, se apresentam dessa maneira dando um sentido ao reconhecimento coerente com as justificativas de sua proposição. Evidentemente isso não é de hoje. Trata-se de um sítio histórico de memória sensível, símbolo material do desembarque de milhões de africanos escravizados nas Américas, mas é também um espaço que relembra o poder de resistência e de criação de nossos antepassados. Foi ao redor do Cais onde se constituíram espaços – como o Quilombo da Pedra do Sal – e se criaram expressões da herança viva dessa ancestralidade, em religiosidades, sonoridades, movimentos. Proteger esse patrimônio significa também resguardar as muitas expressões culturais de matriz africana que ali existem há muito tempo e cujas histórias ultrapassam os limites da região, da cidade e mesmo do nosso país.

 

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Cerimônia da lavagem simbólica do Cais do Valongo (2014). Foto de João Maurício Bragança.

 

Na mesma reunião da UNESCO em que se deu o reconhecimento do Cais do Valongo, se conferiu o mesmo título a Mbanza Congo, cujo centro histórico passou a figurar na lista de patrimônios culturais da humanidade. Esta cidade, capital do antigo reino do Congo, foi denominada pelos portugueses como São Salvador e, sobretudo a partir da conversão da realeza local ao Catolicismo, ainda no século XV, se estabeleceu uma relação estreita entre os seus governantes e o Estado português.  A justificativa da candidatura toma por base os achados arqueológicos que sinalizam a presença de vestígios do antigo palácio do manicongo – título do soberano local – e do primeiro templo católico construído em África ao sul do Saara, em 1491,  conhecido como Kulumbibi. Destaca também a árvore sagrada denominada Yala Nkuwu, o Lumbu (Tribunal Consuetudinário) de MBanza Congo e assinala a importância da influência cultural que a sociedade do Congo exerceu nas Américas por meio da diáspora africana.

 

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Vista da cidade M’banza-Kongo, capital do reino do Congo. Fonte: Description of Africa, de Olfert Dapper (ca 1635-1689), gravura, 1686.

 

Muitos súditos do reino do Congo e habitantes de áreas próximas foram escravizados e transportados pelas rotas atlânticas até as Américas, e em especial para o Brasil, onde, em sua maioria, deram entrada pelo porto do Rio de Janeiro. Alguns ficaram na cidade, outros foram levados para o interior do atual estado do Rio e outros tantos conduzidos para Minas Gerais. As heranças africanas trazidas desta região da África para o Brasil se evidenciam sob muitas formas, e se podem observar especialmente em manifestações culturais como a Congada. Marina de Mello e Souza sinaliza a existência de referências à festa da Congada no Brasil desde o século XVII – como se pode ler em seu livro Reis Negros no Brasil Escravista: História da Festa da Coroação de Rei Congo – e Martha Abreu, em diversos estudos sobre essa e outras festas afro-brasileiras, releva sua importância como espaço criado pela população negra para expressar suas religiosidades, identidades, alegrias e também sua luta e resistência.

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Congada em Piedade do Rio Grande – MG. Foto de Livia Monteiro.

 

De um lado e de outro do oceano, esses dois espaços que se conectavam com as rotas transatlânticas da travessia dos tumbeiros não tiveram tanto contato direto pois, quando o desembarque de cativos foi transferido pelo Marquês de Lavradio para a enseada do Valongo, em fins do século XVIII, Mbanza Congo não era mais a sede de uma região tão importante para o infame comércio. Ainda assim, muitas africanas e africanos que se identificavam como congo foram levados a cruzar o oceano como cativos, embarcados em portos da baía de Cabinda e do Loango, até meados do século dezenove. Na região do Valongo muitos destes chegaram e foram postos a venda em seus armazéns. Alguns circularam pelas ruas, trabalharam, criaram laços, e uns poucos conseguiram a liberdade. Recentemente, já no século vinte e um, migrantes da região que outrora fazia parte do antigo Reino do Congo e arredores, chegaram e povoam a região do Cais do Valongo sob outras formas. Surgem assim na área aqueles que trazem áfricas contemporâneas, que circulam e imprimem com sua presença outras modalidades de expressão da diáspora. E tudo isso acontece trazendo como novas e antigas bases as marcas visuais de identidade, o som dos tambores, a roda, a gira, o batidão e a poesia.

 

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“Não vamos mais caber!”

Com essa frase, David Alfredo e Luis Araújo, dois jovens negros, marcaram o estribilho do texto que leram na abertura do evento Vivências do Tempo: Matriz Africana, no Museu do Amanhã, situado na zona portuária do Rio de Janeiro. O documento, escrito por eles, foi nomeado como Manifesto Baobá e apresentado no dia 24 de junho de 2017, antecedido pelas danças e cantos do Jongo da Serrinha, no espaço de entrada do museu. Esse foi um dia de festa na Praça Mauá, em frente da qual fica o museu, que foi ocupada antes, nesse mesmo dia, pelo Afoxé Filhos de Gandhi homenageando Mãe Beata e o Jongo da Serrinha lembrando nossas raízes africanas e saudando São João, entre outras presenças e lembranças.

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Jongo da Serrinha em frente ao Museu do Amanhã, na abertura do evento Vivências do Tempo: Matriz Africana, em 24 de junho de 2017

O Manifesto reivindica territórios a serem conquistados e ocupados pela juventude negra, e lembra o reduzido espaço que lhe foi destinado, o não-lugar que lhe coube historicamente. Declara: “Estamos transbordando os limites, rompendo as barreiras, fissurando os muros…” Traz a memória da dor “em cada gota de suor que cai da pele negra cansada de esforço de pesar uma tonelada e valer muito menos no mercado. ” E afirma que “No pranto de cada mãe, que enterra um filho, no som de cada tiro que leva a vida, no afiar de cada faca que desce o morro, no choro de cada criança que nasce, é possível escutar: Não vamos mais caber!

Não mesmo.

Em recente visita de trabalho realizada à Universidade Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira – UNILAB, no Campus dos Malês, em São Francisco do Conde – Bahia, meus olhos se encantaram com a vida pulsante nas salas de aula, corredores e espaços comuns daquela instituição acadêmica. Criada no primeiro governo Lula, assinalando desde seu início uma identidade singular e marcadamente plural, tendo como política universitária o estímulo e apoio à presença de estudantes africanos dos países de língua oficial portuguesa. Uma experiência única e fundamental para o Brasil, que deveria ser cada vez melhor compreendida e estudada – e certamente apoiada, garantida em sua continuidade e expansão. Em que outro lugar do país se pode encontrar uma maioria absoluta de estudantes negras e negros e escutar os muitos sotaques do Português falado em África e línguas crioulas do continente, somadas aos falares brasileiros com diversos acentos, sobretudo, do Nordeste? E no dia da África, em 25 de maio, realizarem uma festa trazendo a junção de muitas sonoridades e movimentos, dos diferentes instrumentos, das cores de roupas e adornos, e os músicos de RAP das áfricas e brasis que, nas suas idas e vindas, (re)encontraram seus ritmos e poesias?

 

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Festa do dia da África, celebrada por estudantes africanos e brasileiros com muita música e dança, na UNILAB – Campus dos Malês, São Francisco do Conde – BA, em 25 de maio de 2017

Novas realidades vem surgindo. Atravessam os muros, enriquecem e iluminam o cenário enrijecido e obscuro de espaços tradicionalmente brancos e elitistas. Surpreendem às vezes, jovens negras e negros, por sua força, altivez e autonomia. Há quem os esperasse agradecidos – como, e por quê? Certamente sabem que aquilo e quem lhes sustenta não está lhes esperando do lado de dentro. Mas, muitos reconhecem que há aliados, e que houve desbravadores, pioneiros. Nada disso se fez e se faz sem histórias que vêm de longe. Mas, o que de novo há é que nos últimos anos a onda negra cresceu e vem vindo, lavando com sua força, como uma bênção, as praias antes restritas do saber e do (re)conhecimento. Como disse o Manifesto: vem ocupando os espaços, desconhecendo os limites que lhe foram impostos. Ainda bem.

Assenhorear-se de novos territórios pode significar também estabelecer regras e cuidados com nossa história e memória, pressionando e dialogando no sentido de fazer respeitar o que nossos ancestrais viveram e a forma como queremos que tudo isso seja lembrado. Nesse sentido, um dos resultados é o evento que se realizará no próximo dia 1º de julho e faz parte do TAC (Termo de Ajuste de Conduta) da  Fazenda Santa Eufrásia, inaugurando novas conversas sobre o turismo de memória no Vale do Café, no estado do Rio de Janeiro.

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Tudo indica que essas conquistas podem fazer dos brasileiros cidadãos melhores, e assim nos fortalecermos em tempos tão difíceis e desesperançados, para lutarmos por nossos direitos: os que conquistamos e os que ainda queremos obter.

Que não caibamos nesse restrito espaço de vergonha pública que querem nos confinar.

Obrigada, David Alfredo e Luis Araújo. Viva o Manifesto Baobá!

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Senhora Liberdade!

Alessandra Nicodemos é a convidada dessa semana, com apresentação de Monica Lima.

Pelos caminhos de muitas voltas das redes sociais chegou às minhas mãos, recentemente, um texto atribuído à Juíza Federal Raquel Domingues do Amaral sobre as origens dos direitos humanos. Nele, dirigindo-se aos jovens, a juíza lembraria que as conquistas que geraram os direitos foram alcançadas a partir da luta popular – foram feitas “com a carne do povo”.  Parece lugar-comum, mas não é. Hoje, frente a tantas ameaças, isso tem que ser ensinado e aprendido para que fique impregnado na memória e na forma de entendermos o mundo. Para não nos conformarmos nunca com a perda de direitos fundamentais tão duramente conquistados, e nos conscientizarmos que o direito que ainda nos falta obter também só será alcançado com nossa atuação, enfrentando os que dele se apropriaram e que assim constroem seu privilégio.

Sabemos que a aprendizagem só se realiza de forma completa e vital num ambiente de liberdade. De liberdade de pensar, de discutir, de questionar. E essa liberdade no ambiente escolar e universitário é fundamental para que se desenvolva um espírito crítico e um pensamento autônomo, requisitos indispensáveis para uma mente aberta para novos conhecimentos. No entanto, alguns grupos reacionários se apropriaram da palavra liberdade para construir seu discurso e defender práticas e ideias que em tudo se distanciam dela. Falas e textos que pretendem amordaçar os professores e impedir o acesso a uma informação crítica e problematizadora se disfarçam com uma roupagem que não lhes serve, dizendo defender o que mais querem destruir.

A liberdade definitivamente não combina com os que se dizem de uma escola sem partido, os que dizem defender uma escola livre ou ideias assemelhadas – estes só querem mesmo é silenciar quem ameaça seus podres poderes. Querem usurpar, uma vez mais, um conteúdo que não lhes pertence, pois, a conquista da liberdade não resulta da ação das forças conservadoras. Essa palavra, que o sonho humano alimenta – como escreveu lindamente Cecilia Meireles – não é deles. Ela é dos que lutam contra a exploração dos trabalhadores, contra o autoritarismo, o racismo, o machismo, a homofobia e todos os males presentes em nossa longa história de opressão e preconceito.

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Lembrando tudo isso e indo mais além, Alessandra Nicodemos, professora da Faculdade de Educação da UFRJ,  nos brinda com um texto ao mesmo tempo de reflexão e informação sobre recentes ataques das forças reacionárias aos professores de História. São ameaças à liberdade – reais, concretas. E nós, agora?

Escola sem partido, para quem?

Alessandra Nicodemos

Professores/as de História uni-vos!

Hoje vivemos um significativo avanço conservador, em escala global e local, que pode ser considerado como reflexo de um novo padrão de desenvolvimento econômico que necessita da reestruturação profunda na relação capital-trabalho, o que reconhecemos sendo materializado, nas disputas atuais em torno das propostas da Reforma da Previdência e principalmente, da Reforma Trabalhista no país.

Esse processo implica, ainda, em alterações nas relações sociais gerais e nas relações de poder no Brasil no tempo presente, principalmente na tentativa de construção de uma nova sociabilidade e de novos valores político-sociais. Essas novas relações de poder estão na ordem do dia, após o Golpe de Estado que atravessamos e que enterram definitivamente, para aqueles que acalantavam essa possibilidade, a conciliação de classe. Nos marcos do cenário econômico-político que atravessamos, a democracia, a garantia de direitos, o respeito a diversidade, a liberdade de ensinar e aprender, são entraves que podem – e devem – ser rapidamente removidos ou neutralizados, na construção desses novos padrões de sociabilidade.

A reinvenção nos padrões de sociabilidade, proposta por esse ideário conservador, e materializado em projetos políticos que se encontram em disputa, tem implicado em ações contundentes sobre a Educação Formal, e principalmente, sobre o trabalho e o trabalhador docente.  A educação formal precisa ser controlada e deve passar por mudanças significativas para se adaptar aos “novos” tempos, tornando-se, assim, um instrumento importante na construção de um ideário inspirado na colaboração e harmonização das classes sociais e na ausência de conflitos sociais.  Portanto, o processo de coesão social é simples e depende de uma sociedade civil ativa, na qual os indivíduos, através do diálogo e da tolerância, constroem o bem comum, desde que as contradições de nossa realidade social não sejam identificadas, problematizados e/ou desnaturalizadas nos processos de escolarização.

A opção dos docentes pela reflexão sobre os conflitos, as contradições e os mecanismos de opressão que imperam em nossa sociedade, sejam os de gênero, étnico-raciais e de classe, passam a ser considerados, no discurso conservador, como uma “tomada de partido” ou ainda, como “ideologização do docente” em sua prática curricular, a partir da falsa premissa de que a educação formal venha ser um processo neutro de construção do conhecimento. Esse processo de criminalização e perseguição de docentes atuantes em escolas e universidades, tem tido como alvo mais recorrente os/as professores/as de História. A natureza de nosso campo epistemológico, o avanço em pesquisas com diferentes temas e sujeitos históricos e a análise crítica dos processos históricos, desenvolvidos nos últimos tempos, têm sofrido ataques sérios, nas redes sociais, em discursos maniqueístas e empobrecedores de tão importantes debates.

Porém, precisamos denunciar que tais ações começam a ganhar espaço em um terreno perigoso – principalmente se considerarmos o cenário de exceção que atravessamos – que é a criminalização dos professores e professoras em função de seus posicionamentos teóricos, políticos e pedagógicos. Atualmente temos três casos de processo formal –  de danos morais a processos administrativos –  envolvendo professores e professoras de História em nosso país e em todos eles temos como marca a judicialização do debate da liberdade de ensinar-aprender, ou seja, delegamos a outros sujeitos fora da escola/universidade a possibilidade de indicar o que deve ou não deve estar presente ou ser legitimo nas opções e seleções que os docentes fazem. Esse processo de judicialização, anula a prerrogativa do exercício da autonomia docente, que se constitui como princípio basilar na oferta de políticas públicas em educação, como garante a atual legislação brasileira.  E tais processos judiciais, enviesados por uma tendência de “fla-flu” que atravessamos atualmente, podem desembocar em condenações e perda de direitos desses docentes – funcionários públicos em sua grande maioria – em nome da defesa de uma suposta neutralidade no processo de ensino-aprendizagem, mas que na verdade se constituem em aberta perseguição política e judicial a todos/as que se posicionam contra hegemonicamente.

Precisamos estar atentos, fortes e unidos, em diálogo com os/as nossos/as estudantes e a sociedade, no anúncio de que a escola/universidade é um lugar, ou deve ser, de liberdade na construção do conhecimento e nessa direção, no próximo dia 06 de junho de 2017, se torna imperativo, nosso apoio a Professora Doutora Marlene de Fáveri, que atualmente sofre processo judicial, acusada de perseguição ideológica, pelo seu posicionamento nas discussões de gênero que desenvolve na Universidade Federal de Santa Catarina.

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Professora Marlene de Fáveri. Catarinas: jornalismo com perspectiva de gênero.

Foto: Dieine Andrade

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“Essa história é o presente”

Hoje, 23 de abril, se festejou São Jorge em diferentes partes do Brasil, mas no Rio de Janeiro tal celebração, como sempre, assumiu especial importância. Desde a meia-noite se escutaram fogos e vivas por diversos cantos da cidade e muitos admiradores e fiéis do santo se juntaram para aguardar a alvorada em frente aos templos católicos que a ele são dedicados. Durante o dia, a sua imagem circulou por ruas da cidade em cortejo.

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Rio de Janeiro, bairro do Estácio, 23 de abril de 2017. Foto de Fernanda Crespo.

Em terreiros os tambores tocaram para Ogun, orixá trazido das terras iorubanas da África pelos escravizados e que aqui foi identificado com o guerreiro católico. Conta a história que Jorge, guerreiro nascido na Turquia, com trajetória de muitas bravuras, recusou a obedecer a ordem do Imperador romano Diocleciano e por isso foi condenado. Ogun, em sua origem protetor da agricultura, guardião da forja e patrono dos ofícios manuais, na diáspora africana no Brasil passou a ser representado carregando a espada com a qual é reconhecido como o vencedor das demandas. Dois, mas para muitos, um só.

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É verdade que o santo católico do dia é reivindicado como patrono pelas forças da repressão assim como pelos seus combatentes. Mas, nessa noite, nas ruas da cidade dos cariocas, sobretudo nas esquinas do centro velho e do subúrbio e nas comunidades, sobressai sua face de aguerrido defensor dos desfavorecidos. E é dessa face que eu me lembro quando não consigo esquecer a condenação do jovem Rafael Braga.

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E vem também à mente história de Ana Liz. E me recordo dos rostos negros na galeria dos condenados da Casa de Correção do Rio de Janeiro no século dezenove – rico e emocionante acervo de imagens e histórias disponível na Biblioteca Nacional. .

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Junto a essas imagens me chegam também à memória os anúncios de fuga de escravizados nos jornais da cidade na mesma época, trazendo a descrição por vezes detalhada da aparência com a indicação de marcas corporais que assinalavam o sofrimento daquelas pessoas – em sua maioria jovens, muitas ainda crianças.

 

Nesse momento, chega forte a frase de James Baldwin no “Eu não sou seu negro”, excelente documentário sobre a história de luta por direitos dos negros estadunidenses: “a história não é o passado. Essa história é o presente”. Assim como é presente o racismo na nossa sociedade, que não foi revogado com a legislação que aboliu a escravatura nem mesmo com os avanços da Constituição Federal que o reconheceu como crime inafiançável e imprescritível.

Na alvorada de Jorge e Ogun, o que se pode pedir é outra justiça. Essa é a demanda de nossos dias em que crianças e jovens negros continuam morrendo a cada poucos minutos, como registram as estatísticas oficiais assustadoras. É uma demanda forte no nosso país, cujo povo tem todas as razões para duvidar daqueles que foram encarregados da criação, aplicação e ponderação das leis. Que venham outros santos e orixás para ajudar e fortalecer, serão muito necessários porque a luta é grande, e há muitas frentes. Como diz a letra da linda canção de Moacyr Luz, Medalha de São Jorge: “a malvadeza desse mundo é grande em extensão”. Mas, que principalmente possamos nos fortalecer – nós, nesse plano terrenal, juntos, contra essa maldade toda, tão forte e tão antiga.

Está chegando o dia 28 de abril, data da greve geral nacional, convocada para lutarmos contra a perda de nossos direitos, e contra as reformas pretendidas pelo governo – que só viriam a aprofundar a exclusão e a injustiça. Será um momento para que tudo isso possa ser dito em alto e bom som. E que se diga e se repita até lá. Não podemos, nem vamos esquecer. E a perseverança vai ganhar do sórdido, como também disse outra canção feita pra Jorge, lindamente interpretada pelo Soul de Brasileiro.

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Samba na universidade

No dia 21 de março passado, no Salão Nobre do prédio histórico da UFRJ no Largo de São Francisco de Paula número 1, centro do Rio de Janeiro, o compositor, escritor e intelectual Martinho da Vila ministrava a aula magna de início de semestre do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A sala estava lotada, não havia lugar nem no chão, todos os espaços foram tomados por estudantes, professores e funcionários e pelo público externo que compareceu ao evento acadêmico. Na sua fala, Martinho trouxe ideias sobre a importância da universidade e sobre o racismo. Sua presença nesse dia também fazia referência à data da aula magna – quando se celebra um dia de luta e de dor na história da população negra no mundo.

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Martinho da Vila ministrando aula magna no Instituto de História da UFRJ

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Aula inaugural de Martinho da Vila no Instituto de História da UFRJ

Em 21 de março de 1960, no bairro de Shaperville, na cidade de Joanesburgo, na África do Sul, aproximadamente vinte mil pessoas protestavam contra a lei do passe que passaria a obrigar a população negra do país a carregar um documento que permitiria a minoria branca no poder ter maior controle sobre a sua movimentação. O protesto pacífico, de absoluta maioria negra, com muitos estudantes jovens, foi reprimido com truculência pelas tropas do governo sul-africano, levando à morte sessenta e nove pessoas e ferindo outras cento e sessenta e nove. Essa ação violenta do regime racista do apartheid, que ficou conhecida como Massacre de Shaperville causou grande comoção local e também no mundo, levando a que a Organização das Nações Unidas passasse a estabelecer a data como Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial.

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Massacre de Shaperville, África do Sul

A presença do sambista em local de destaque e reconhecimento acadêmico nesse dia em especial teve relação não apenas com o significado dessa data, mas também com as mudanças pelas quais as universidades brasileiras vêm passando. Nos últimos anos, principalmente em função das ações afirmativas implantadas no acesso de alunos às universidades públicas, tem havido sensível alteração no perfil dos estudantes de graduação e pós-graduação. E, acompanhando essa transformação, tem crescido o ativismo negro e ampliado os espaços de debate sobre temas que são trazidos pelas demandas desses grupos. A aula magna de Martinho da Vila no IH-UFRJ, além de fazer parte do calendário acadêmico oficial, esteve também vinculada a uma série de eventos incluídos na campanha denominada 21 dias de ativismo contra o racismo, iniciativa inédita de diversos grupos e instituições desenvolvida em diferentes espaços do Rio de Janeiro durante o mês de março, para discutir e visibilizar diversas frentes de luta contra a discriminação racial. O resultado dessas inúmeras iniciativas e encontros tendo como foco a luta contra o racismo terá sua atividade de encerramento amanhã, segunda-feira, dia 27 de março, numa atividade na UERJ, marcando com a militância o espaço dessa universidade que, sendo pioneira na adoção de políticas de ação afirmativa e com reconhecido mérito acadêmico em diversas áreas do conhecimento, vem sofrendo um gravíssimo processo de desmonte por parte do governo estadual.

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21 dias de ativismo contra o racismo: encerramento

Martinho da Vila atualmente frequenta o curso de Relações Internacionais numa universidade privada, iniciativa que teve a partir de sua nomeação como embaixador da ONU junto aos países de língua portuguesa, e fez público seu entusiasmo e interesse sobre o que vem aprendendo. Citou inclusive um de seus professores mais admirados, o antropólogo Jacques D’Adesky, que estava presente. A aula magna de Martinho da Vila e o que disse sobre a luta contra o racismo fez lembrar a linda letra do samba de Candeia, Dia de Graça, que diz: “E cante o samba na universidade. E verás que seu filho será príncipe de verdade. Aí então jamais tu voltarás ao barracão. ” Certamente não se pode tomar a poesia ao pé da letra, a luta para não voltar ao barracão ainda se revela longa. Mas, sem dúvida, a entrada de mais estudantes negros e pobres na universidade contribui decisivamente para a desconstrução de formas de pensar o mundo e a história e, sobretudo, de agir frente a ela. A academia se beneficia, e mais ainda a sociedade. O dia de graça é um dia como foi esse mesmo, e de outras formas de escuta e diálogo que devem vir.

Dia de Graça, samba de Candeia

Considerar a presença de novos sujeitos no campo acadêmico relaciona-se diretamente com luta contra o racismo e também com a necessidade de um compromisso permanente com a defesa da história e da memória das populações que foram longamente silenciadas. Isso traz à preocupação preservar e valorizar lugares de memória da população africana, como o Cemitério de Pretos Novos, na zona portuária da cidade do Rio de Janeiro. Trata-se muito provavelmente do mais importante campo santo de inumação de africanos recém-chegados às Américas em toda a diáspora africana no continente. Hoje, o local que vem sendo à duras penas conservado e aberto à visitação e pesquisa, está ameaçado por falta de apoio mínimo para seu custeio. Nossos ancestrais, que sobreviveram à travessia, mas não à vida como cativos recentemente desembarcados, exigem nossa atuação para que a materialidade de sua história continue a ser objeto de estudo e conhecimento. O Instituto de Pretos Novos resiste, e não está sozinho.

#IPNresiste

Durante sua fala, Martinho da Vila também cantou e fez cantar a letra de outro samba, de Dona Ivone Lara, Sorriso Negro, e chamou a atenção para a frase “Negro sem emprego, fica sem sossego...”, contextualizando as consequências desses difíceis dias que a sociedade brasileira vem passando, com a presente ameaça aos direitos conquistados em anos de luta e frente às reformas que atingem especialmente os trabalhadores. Em diversos momentos recorreu à poesia de sambas para trazer à plateia suas reflexões. Nessa ocasião de aprendizagem memorável, mostrou uma vez mais que essas e outras produções culturais negras e populares têm muito a dizer na academia. Celebramos um dia de luta nos encantando com a inteligência e a elegância do intelectual sambista, conscientes da importância de nos mantermos juntos e firmes para os novos embates.

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O poder da criação

Gosto de ser professora. Meus caminhos profissionais me levaram por outras veredas também, mas a sala de aula tem sido a mais constante, aquele lugar em que encontro sentido para as coisas que estudo e pesquiso. E gosto muito de participar da formação de professores, de História principalmente, e ver como aquilo que a gente constrói, sonha e cria no campo do conhecimento é transformado em um saber próprio que o docente produz ali, naquele lugar quente e complexo de encontro com os estudantes da Educação Básica. O quente aqui não se refere às agruras do clima, mas ao calor do debate e da criação.

Evidentemente, não vivo num idealismo piegas que me faz ver só campos floridos no trabalho do professor. Sei que esses profissionais, em sua maioria, tem um dia a dia duríssimo, e são muitas vezes desrespeitados por seus alunos, colegas e empregadores. A luta é cotidiana e não sem razão muitas vezes o enfrentamento das dificuldades gera o adoecimento, o desânimo e até o abandono da profissão. Todos os dias vários talentos para o magistério são perdidos, por não se sentirem capazes de enfrentar as durezas da profissão. O que fazer quando a falta de mínimas condições, de salários dignos, de efetivo apoio de gestores faz de tantos projetos para o ensino sonhos fracassados?

Não são apenas as frases bonitas colocadas nas redes sociais e murais da escola no dia do professor que vão conseguir animar a rapaziada. Homenagear é bom, celebrar é bom, e flores e bombons nunca são demais, mas o que pode significar a decisão entre desistir e seguir, entre seguir arrastando uma opção profissional da qual se orgulha, mas que esbarra numa realidade desgastante, tem que ser mais. Tem que trazer reconhecimento, e abrir novas possibilidades aos professores – de mostrarem, inclusive, que o que fazem, em meio a todas as dificuldades, é de uma qualidade excepcional. E não por que são heróis ou sacerdotes abnegados de um trabalho missionário. Mas, por que se fortalecem na sua própria capacidade de atuar em sala de aula. Criar novos modos de se aprender e ensinar é uma forma de resistir, é contrapor-se ao rolo compressor da mediocridade. E isso acontece.

E de onde eu consigo tirar tanto otimismo nesse contexto temerário? Afinal, estamos em tempos de projetos de mordaça ao professor, de denuncismo na escola, de cerceamento ao livre exercício de pensar e questionar – sem o qual nada se aprende. O ensino de História em especial tem se tornado alvo dessa onda reacionária que pretende atingir a livre navegação do pensamento em sala de aula. Os conteúdos de questionamento e de crítica inerentes ao saber histórico escolar são alvo preferencial daqueles que jogam no campo do obscurantismo, do racismo e da intolerância.

Felizmente, tenho boas notícias. A primeira turma do Mestrado Profissional em Ensino de História que conclui agora o curso apresentou os mais diversificados e estimulantes resultados daquilo que um investimento no professor poderia trazer. Os trabalhos finais de curso defendidos frente às bancas examinadoras trouxeram consistência teórica e criatividade que funcionam como sinais inequívocos de esperança. Foram dois anos de trabalho duro, com carga de disciplinas pesada e muitos debates em sala. Propostas de trabalho articulando textos teóricos e experiências práticas nasceram do dia do curso, desafiando os professores e estudantes.

E o que tivemos como resultados? Alguns exemplos, só para dar uma ideia: a produção de desenhos animados para se trabalhar com educação para relações étnico-raciais no ensino de História no ensino fundamental; um site com sugestões de atividades com o uso de canções da música popular brasileira (sambas) no ensino de História no ensino médio; a partir da trajetória pessoal e profissional de dois artistas plásticos negros do Brasil oitocentista, surgiu uma proposta de trabalho com diversas atividades para se conhecer esses personagens e discutir a relação entre ensino de história e representatividade afro-brasileira; uma reflexão sobre a laicidade do ensino por meio de estudos de casos de escolas situadas em territórios religiosos de filiação distinta; elaboração de metodologias e estratégias para ensino de História no campo da Educação Patrimonial; produção de um documentário para servir como uma visita virtual ao sítio histórico e arqueológico do Cais do Valongo, candidato a patrimônio da humanidade; uma proposta de trabalhos com ensino de História numa comunidade quilombola no Tocantins… entre tantos outros, e há muitos mais em finalização. Esses produtos são acompanhados por uma sólida reflexão teórica, em que o propor a fazer está articulado a pensar o fazer, e um só se realiza por meio do outro.

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Alessandro Paz, Joana Darc Ribeiro e Lucas Moreira Calvo: professores do ProfHistoria festejando conclusão de seus trabalhos finais de mestrado

Quando vejo e conheço esses trabalhos sinto que estamos cerrando fileiras. Não nos rendemos, nem vamos. O poder transformador dessas criações dos professores do ProfHistória não nos deixa entregar o jogo. Como se trata de um mestrado em rede nacional, esses trabalhos vêm de diferentes partes do Brasil, ou seja, têm professoras e professores produzindo ideias e reflexões sobre o campo e criando alternativas para o ensino de História em muitos lugares nesse nosso país. E isso tudo também quer dizer que nas universidades há outros docentes também empenhados em fazer com que aconteça, orientando, estimulando, acompanhando essas histórias. E o melhor: essa foi a primeira turma, e a segunda turma está aí, chegando junto, ainda que sem as mesmas condições até agora (que venham as bolsas para todos os professores da rede pública, como ocorreu na primeira!), e vem mostrando com força a que veio.

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Ana Luiza Ribeiro Garcia realizando exposição sobre seu trabalho final de mestrado (um documentário sobre o Cais do Valongo, para uso em sala de aula) no encontro Narrativas do Rio, na Casa da Ciência da UFRJ

E fica ainda mais bonito quando a gente vê que há movimentos próximos a esses acontecendo em outras partes desse mundo, que o saber que se cria em sala de aula é percebido não só como um conhecimento a ser respeitado, como que para os estudantes que vivem essas experiências pedagógicas pensadas e elaboradas num sentido do questionamento frente à realidade, da transformação e autonomia do pensamento, a escola e o aprender vira outra coisa – muito melhor.

Na Martinica, professoras de escolas da rede pública levaram aos seus estudantes de ensino fundamental aspectos da história da escravização de africanos, considerando a presença fundamental dessas pessoas na história da ilha e das Américas. Sem deixar de passar pelo sofrimento e dor, e considerando as iniciativas e resistências e, sobretudo, a força vital de nossos antepassados, propuseram que as crianças, por meio da arte e poesia, representassem essas histórias. O resultado não poderia ser mais comovente e belo, principalmente por que foi apresentado por elas e eles, ocupando de forma afirmativa e protagonista seu lugar de criadores. No Espaço Museu Domaine de La Pagerie, nas cercanias da cidade de Fort de France, alunos das escolas de ensino fundamental Sarrault, Long Pré, Ilex Sixtain e Marius Hurrard apresentaram seus olhares sobre a história da escravidão. E como expositores, falaram sobre seus trabalhos.

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Cartaz da exposição em que estudantes do Ensino Fundamental da Martinica apresentaram seus trabalhos literários e artísticos sobre a história da escravidão africana

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Alunos do Ensino Fundamental de uma escola pública na Martinica apresentam seus olhares sobre a escravidão a partir de produção artística e literária

Conhecendo a eles e as suas professoras deu para juntar com a riqueza dos resultados dos alunos do ProfHistoria e acreditar que estamos aí, no mundo. E sabemos que ainda há muitas experiências sendo desenvolvidas no Brasil, em escolas e outros espaços educativos. Temos que nos conhecer mais.

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Manuela Yung-Hing, Diretora do Museu Domaine de la Paigerie apresenta professoras e estudantes que realizaram a exposição “Olhares sobre a escravidão”

PS (31/10/2016). Resistir à onda conservadora que se vê cada vez mais ameaçadora no Brasil, mais do que uma postura necessária, torna-se um compromisso com a liberdade e com a vida. Vamos que vamos: que os tambores soem cada vez mais fortes, seja no Brasil, na Martinica, ou em África.

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Produção artística dos estudantes de Ensino Fundamental da Martinica. Algo semelhante pode estar sendo realizado nas nossas salas de aulas hoje, por tantos professores que se atrevem a tocar em tão delicado tema. Reparem: a imagem do escravizado é marcada por palavras de revolta, de insubmissão e de negação da sujeição. 

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Pela desobediência

As recentes notícias da aprovação, na assembleia legislativa do estado de Alagoas, de uma lei que impede os professores de dar opinião em sala de aula e exige uma postura de “neutralidade” política causaram indignação e medo. Matérias jornalísticas do dia de hoje (02/05/2016) informam que o governador de Alagoas não promulgou a tal lei, perdendo o prazo estabelecido; mas, não há garantias que não seja obrigado a fazê-lo. Projetos com esse mesmo conteúdo tramitam em diversos legislativos estaduais e municipais no nosso país e defendem que qualquer trabalho pedagógico que tenha como objetivo estimular um pensamento crítico deve ser evitado. O que pretendem é retirar do professor a tarefa de educar, ficando apenas com a função de instruir. Foi apresentado no Congresso Nacional no ano passado o projeto de lei 867/2015 que propõe a alterar a lei de diretrizes e bases da educação nacional nesse mesmo sentido, e há interesses em que seja votado.

Tais propostas são defendidas por movimentos que se intitulam escola sem partido e escola livre e que, na verdade, estão distantes de corresponder ao que dizem essas denominações. Estão comprometidos com silenciar, nas escolas e universidades, as discussões sobre temas como diversidade de gênero, liberdade de credo religioso e combate ao racismo. Avançam em sua retórica fundamentalista e politicamente posicionada no campo do retrocesso e da intolerância, contrários às conquistas no campo de direitos humanos que se alcançaram nos últimos anos. Não são em nada imparciais e nem tampouco sem partido, e menos ainda defensores de escolhas livres.

Como diz a letra da canção: há perigo na esquina…

O que está em jogo é a liberdade de ensinar, e sem liberdade não há conhecimento, não há aprendizagem. Não há nada mais ultrapassado que preconizar uma educação que se reduza à instrução, entendida vulgarmente como “passar matéria”. Nenhum lugar do mundo onde se pense seriamente sobre os caminhos da inteligência humana no processo ensino-aprendizagem reconheceria a neutralidade como possível na ciência, na arte ou na técnica.  E, para culminar, esses movimentos estimulam o ódio aos professores, acusando-os de manipular, impor ideias e influenciar negativamente condutas e posturas contrárias ao que pregam aquilo que consideram como valores familiares. Incitam denúncias e ações judiciais contra professores que, segundo eles, doutrinariam os estudantes.

Há poucos dias, num dos espaços virtuais de apoio a esses projetos retrógrados, deu-se a exibição de uma retórica de desrespeito, tendo como foco os livros didáticos que trazem conteúdos de história da África e cultura afro-brasileira. Alegam – os seguidores da escola sem partido e similares – que essas leituras estariam fazendo uma doutrinação religiosa ao apresentar divindades e aspectos positivos das religiões de matriz africana no Brasil aos estudantes. Um argumento que traz tamanha demonstração de ignorância e estreiteza de pensamento poderia gerar apenas um olhar de menosprezo se fosse outra a conjuntura no Brasil. Nesse momento, devemos mais que sempre estar atentos e cientes da importância de tomarmos uma atitude.

Candomblé e umbanda em livros didáticos/2016 do MEC para o ensino fundamental
Alunos de escolas públicas e privadas, inclusive confessionais, que estudarem com os livros didáticos/2016 do MEC para crianças de 6 a 10 anos, serão doutrinados sistematicamente no Candomblé e na Umbanda.

As religiosidades de matriz africana têm uma longa e dolorosa história de perseguição no nosso país. Houve um tempo em que foram proibidas por lei, seus sacerdotes presos, suas casas sagradas destruídas. Esse tipo de ação não se extinguiu com a legislação que veio a institucionalizar os direitos de cidadania aos seguidores de diferentes religiões e a condenar, com base em princípios republicanos e constitucionais, a intolerância – seja em atos ou em discursos. Infelizmente, ainda se têm notícias de atentados contra casas religiosas de matriz afro-brasileira e o desrespeito aos seus féis é uma constante em diversos espaços.

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http://www.tudosobrexanxere.com.br/index.php/desc_noticias/centro_de_umbanda_e_incendiado_suspeita_que_seja_criminoso

Tendo suas origens nos corações e mentes negros durante o tráfico de escravizados, a fé trouxe a força necessária para a sobrevivência dessas pessoas e, ao mesmo tempo, contribuiu humanizar aquele mundo violento e desigual. Na experiência religiosa, criaram solidariedades, laços familiares, e imprimiram um sentido às suas vidas, relacionando-se muitas vezes estreitamente com o catolicismo e diversas vertentes cristãs. Casas religiosas de matriz africana agregaram gente de outros mundos e de todos tons de pele, não discriminaram – nem fizeram proselitismo. Seus deuses e espíritos fazem parte da cultura brasileira hoje, estão na nossa identidade, e a tornam mais bela e plural. Podem conviver tranquila e pacificamente com outros credos, já se demonstrou.

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http://www.midiagospel.com.br/brasil/caminhada-defesa-liberdade-religiosa-leva-milhares-copacabana

E, da mesma forma, há cristãos de diferentes vertentes que assumem uma postura crítica e defendem o direito de todos escolherem seu caminho religioso e também condenam igrejas que mercantilizam a fé: https://www.facebook.com/Crist%C3%A3o-Protestante-486307198057073/?fref=ts

Sabendo da importância de se educar para combater a intolerância e o racismo, como deixar de trazer os elementos das religiosidades afro-brasileiras para a sala de aula, na fundamental discussão sobre as diferentes matrizes que formam o universo (tão diverso) cultural brasileiro?  Como não incluir as lendas e contos da rica tradição oral africana e afro-brasileira nas leituras e histórias contadas para crianças, jovens e adultos que se educam nas escolas do nosso país? Como esquecer os orixás, inquices e voduns, o povo da rua, os espíritos da floresta – entidades que significam tanto para seus fiéis e povoam nosso imaginário, sejamos nós ou não de outros credos, ou de nenhum?  Se isso acontecesse, se deixássemos de ler e ouvir essas histórias, seria uma perda, um esvaziamento e um ato de desprezo com relação a uma parte fundamental de nossa própria identidade. Uma violência, afinal.

Além disso, desde 10 de janeiro de 2003 existe uma legislação que tornou obrigatório o ensino de História da África e cultura afro-brasileira em todos os estabelecimentos de ensino públicos e privados do nosso país. Essa lei foi ampliada em 2008, incluindo a história indígena, dos povos originários de nosso território. É uma questão de cidadania.

Na primeira pessoa, falo aos meus colegas professores: coloquem nas mãos dos alunos as lendas de Exu, da Pomba-Gira, que venham histórias com Xangô, Iemanjá e as sagradas folhas da Jurema, e que estas se atravessem com as histórias das festas da Congada e do Divino Espírito Santo, as romarias de Nossa Senhora Aparecida, os relatos dos médiuns, as tradições judaicas e as narrativas bíblicas – que linda a história de Moisés, que tirou seu povo da opressão…. Que venham todos e muitos mais. Certamente não para doutrinar (precisa dizer?), mas para mostrar que o mundo pode ser mais bonito quando é plural e diverso. Afinal, todos têm direito às suas religiões, e conhecê-las em sua (nossa) riqueza cultural é direito nosso. A intolerância mata – especialmente a inteligência.

Como dizem os estudantes de Alagoas: desobedeçam.

https://www.facebook.com/professordesobedecaa/

DESOBEDEÇAM

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