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Samba na universidade

No dia 21 de março passado, no Salão Nobre do prédio histórico da UFRJ no Largo de São Francisco de Paula número 1, centro do Rio de Janeiro, o compositor, escritor e intelectual Martinho da Vila ministrava a aula magna de início de semestre do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A sala estava lotada, não havia lugar nem no chão, todos os espaços foram tomados por estudantes, professores e funcionários e pelo público externo que compareceu ao evento acadêmico. Na sua fala, Martinho trouxe ideias sobre a importância da universidade e sobre o racismo. Sua presença nesse dia também fazia referência à data da aula magna – quando se celebra um dia de luta e de dor na história da população negra no mundo.

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Martinho da Vila ministrando aula magna no Instituto de História da UFRJ

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Aula inaugural de Martinho da Vila no Instituto de História da UFRJ

Em 21 de março de 1960, no bairro de Shaperville, na cidade de Joanesburgo, na África do Sul, aproximadamente vinte mil pessoas protestavam contra a lei do passe que passaria a obrigar a população negra do país a carregar um documento que permitiria a minoria branca no poder ter maior controle sobre a sua movimentação. O protesto pacífico, de absoluta maioria negra, com muitos estudantes jovens, foi reprimido com truculência pelas tropas do governo sul-africano, levando à morte sessenta e nove pessoas e ferindo outras cento e sessenta e nove. Essa ação violenta do regime racista do apartheid, que ficou conhecida como Massacre de Shaperville causou grande comoção local e também no mundo, levando a que a Organização das Nações Unidas passasse a estabelecer a data como Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial.

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Massacre de Shaperville, África do Sul

A presença do sambista em local de destaque e reconhecimento acadêmico nesse dia em especial teve relação não apenas com o significado dessa data, mas também com as mudanças pelas quais as universidades brasileiras vêm passando. Nos últimos anos, principalmente em função das ações afirmativas implantadas no acesso de alunos às universidades públicas, tem havido sensível alteração no perfil dos estudantes de graduação e pós-graduação. E, acompanhando essa transformação, tem crescido o ativismo negro e ampliado os espaços de debate sobre temas que são trazidos pelas demandas desses grupos. A aula magna de Martinho da Vila no IH-UFRJ, além de fazer parte do calendário acadêmico oficial, esteve também vinculada a uma série de eventos incluídos na campanha denominada 21 dias de ativismo contra o racismo, iniciativa inédita de diversos grupos e instituições desenvolvida em diferentes espaços do Rio de Janeiro durante o mês de março, para discutir e visibilizar diversas frentes de luta contra a discriminação racial. O resultado dessas inúmeras iniciativas e encontros tendo como foco a luta contra o racismo terá sua atividade de encerramento amanhã, segunda-feira, dia 27 de março, numa atividade na UERJ, marcando com a militância o espaço dessa universidade que, sendo pioneira na adoção de políticas de ação afirmativa e com reconhecido mérito acadêmico em diversas áreas do conhecimento, vem sofrendo um gravíssimo processo de desmonte por parte do governo estadual.

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21 dias de ativismo contra o racismo: encerramento

Martinho da Vila atualmente frequenta o curso de Relações Internacionais numa universidade privada, iniciativa que teve a partir de sua nomeação como embaixador da ONU junto aos países de língua portuguesa, e fez público seu entusiasmo e interesse sobre o que vem aprendendo. Citou inclusive um de seus professores mais admirados, o antropólogo Jacques D’Adesky, que estava presente. A aula magna de Martinho da Vila e o que disse sobre a luta contra o racismo fez lembrar a linda letra do samba de Candeia, Dia de Graça, que diz: “E cante o samba na universidade. E verás que seu filho será príncipe de verdade. Aí então jamais tu voltarás ao barracão. ” Certamente não se pode tomar a poesia ao pé da letra, a luta para não voltar ao barracão ainda se revela longa. Mas, sem dúvida, a entrada de mais estudantes negros e pobres na universidade contribui decisivamente para a desconstrução de formas de pensar o mundo e a história e, sobretudo, de agir frente a ela. A academia se beneficia, e mais ainda a sociedade. O dia de graça é um dia como foi esse mesmo, e de outras formas de escuta e diálogo que devem vir.

Dia de Graça, samba de Candeia

Considerar a presença de novos sujeitos no campo acadêmico relaciona-se diretamente com luta contra o racismo e também com a necessidade de um compromisso permanente com a defesa da história e da memória das populações que foram longamente silenciadas. Isso traz à preocupação preservar e valorizar lugares de memória da população africana, como o Cemitério de Pretos Novos, na zona portuária da cidade do Rio de Janeiro. Trata-se muito provavelmente do mais importante campo santo de inumação de africanos recém-chegados às Américas em toda a diáspora africana no continente. Hoje, o local que vem sendo à duras penas conservado e aberto à visitação e pesquisa, está ameaçado por falta de apoio mínimo para seu custeio. Nossos ancestrais, que sobreviveram à travessia, mas não à vida como cativos recentemente desembarcados, exigem nossa atuação para que a materialidade de sua história continue a ser objeto de estudo e conhecimento. O Instituto de Pretos Novos resiste, e não está sozinho.

#IPNresiste

Durante sua fala, Martinho da Vila também cantou e fez cantar a letra de outro samba, de Dona Ivone Lara, Sorriso Negro, e chamou a atenção para a frase “Negro sem emprego, fica sem sossego...”, contextualizando as consequências desses difíceis dias que a sociedade brasileira vem passando, com a presente ameaça aos direitos conquistados em anos de luta e frente às reformas que atingem especialmente os trabalhadores. Em diversos momentos recorreu à poesia de sambas para trazer à plateia suas reflexões. Nessa ocasião de aprendizagem memorável, mostrou uma vez mais que essas e outras produções culturais negras e populares têm muito a dizer na academia. Celebramos um dia de luta nos encantando com a inteligência e a elegância do intelectual sambista, conscientes da importância de nos mantermos juntos e firmes para os novos embates.

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O poder da criação

Gosto de ser professora. Meus caminhos profissionais me levaram por outras veredas também, mas a sala de aula tem sido a mais constante, aquele lugar em que encontro sentido para as coisas que estudo e pesquiso. E gosto muito de participar da formação de professores, de História principalmente, e ver como aquilo que a gente constrói, sonha e cria no campo do conhecimento é transformado em um saber próprio que o docente produz ali, naquele lugar quente e complexo de encontro com os estudantes da Educação Básica. O quente aqui não se refere às agruras do clima, mas ao calor do debate e da criação.

Evidentemente, não vivo num idealismo piegas que me faz ver só campos floridos no trabalho do professor. Sei que esses profissionais, em sua maioria, tem um dia a dia duríssimo, e são muitas vezes desrespeitados por seus alunos, colegas e empregadores. A luta é cotidiana e não sem razão muitas vezes o enfrentamento das dificuldades gera o adoecimento, o desânimo e até o abandono da profissão. Todos os dias vários talentos para o magistério são perdidos, por não se sentirem capazes de enfrentar as durezas da profissão. O que fazer quando a falta de mínimas condições, de salários dignos, de efetivo apoio de gestores faz de tantos projetos para o ensino sonhos fracassados?

Não são apenas as frases bonitas colocadas nas redes sociais e murais da escola no dia do professor que vão conseguir animar a rapaziada. Homenagear é bom, celebrar é bom, e flores e bombons nunca são demais, mas o que pode significar a decisão entre desistir e seguir, entre seguir arrastando uma opção profissional da qual se orgulha, mas que esbarra numa realidade desgastante, tem que ser mais. Tem que trazer reconhecimento, e abrir novas possibilidades aos professores – de mostrarem, inclusive, que o que fazem, em meio a todas as dificuldades, é de uma qualidade excepcional. E não por que são heróis ou sacerdotes abnegados de um trabalho missionário. Mas, por que se fortalecem na sua própria capacidade de atuar em sala de aula. Criar novos modos de se aprender e ensinar é uma forma de resistir, é contrapor-se ao rolo compressor da mediocridade. E isso acontece.

E de onde eu consigo tirar tanto otimismo nesse contexto temerário? Afinal, estamos em tempos de projetos de mordaça ao professor, de denuncismo na escola, de cerceamento ao livre exercício de pensar e questionar – sem o qual nada se aprende. O ensino de História em especial tem se tornado alvo dessa onda reacionária que pretende atingir a livre navegação do pensamento em sala de aula. Os conteúdos de questionamento e de crítica inerentes ao saber histórico escolar são alvo preferencial daqueles que jogam no campo do obscurantismo, do racismo e da intolerância.

Felizmente, tenho boas notícias. A primeira turma do Mestrado Profissional em Ensino de História que conclui agora o curso apresentou os mais diversificados e estimulantes resultados daquilo que um investimento no professor poderia trazer. Os trabalhos finais de curso defendidos frente às bancas examinadoras trouxeram consistência teórica e criatividade que funcionam como sinais inequívocos de esperança. Foram dois anos de trabalho duro, com carga de disciplinas pesada e muitos debates em sala. Propostas de trabalho articulando textos teóricos e experiências práticas nasceram do dia do curso, desafiando os professores e estudantes.

E o que tivemos como resultados? Alguns exemplos, só para dar uma ideia: a produção de desenhos animados para se trabalhar com educação para relações étnico-raciais no ensino de História no ensino fundamental; um site com sugestões de atividades com o uso de canções da música popular brasileira (sambas) no ensino de História no ensino médio; a partir da trajetória pessoal e profissional de dois artistas plásticos negros do Brasil oitocentista, surgiu uma proposta de trabalho com diversas atividades para se conhecer esses personagens e discutir a relação entre ensino de história e representatividade afro-brasileira; uma reflexão sobre a laicidade do ensino por meio de estudos de casos de escolas situadas em territórios religiosos de filiação distinta; elaboração de metodologias e estratégias para ensino de História no campo da Educação Patrimonial; produção de um documentário para servir como uma visita virtual ao sítio histórico e arqueológico do Cais do Valongo, candidato a patrimônio da humanidade; uma proposta de trabalhos com ensino de História numa comunidade quilombola no Tocantins… entre tantos outros, e há muitos mais em finalização. Esses produtos são acompanhados por uma sólida reflexão teórica, em que o propor a fazer está articulado a pensar o fazer, e um só se realiza por meio do outro.

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Alessandro Paz, Joana Darc Ribeiro e Lucas Moreira Calvo: professores do ProfHistoria festejando conclusão de seus trabalhos finais de mestrado

Quando vejo e conheço esses trabalhos sinto que estamos cerrando fileiras. Não nos rendemos, nem vamos. O poder transformador dessas criações dos professores do ProfHistória não nos deixa entregar o jogo. Como se trata de um mestrado em rede nacional, esses trabalhos vêm de diferentes partes do Brasil, ou seja, têm professoras e professores produzindo ideias e reflexões sobre o campo e criando alternativas para o ensino de História em muitos lugares nesse nosso país. E isso tudo também quer dizer que nas universidades há outros docentes também empenhados em fazer com que aconteça, orientando, estimulando, acompanhando essas histórias. E o melhor: essa foi a primeira turma, e a segunda turma está aí, chegando junto, ainda que sem as mesmas condições até agora (que venham as bolsas para todos os professores da rede pública, como ocorreu na primeira!), e vem mostrando com força a que veio.

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Ana Luiza Ribeiro Garcia realizando exposição sobre seu trabalho final de mestrado (um documentário sobre o Cais do Valongo, para uso em sala de aula) no encontro Narrativas do Rio, na Casa da Ciência da UFRJ

E fica ainda mais bonito quando a gente vê que há movimentos próximos a esses acontecendo em outras partes desse mundo, que o saber que se cria em sala de aula é percebido não só como um conhecimento a ser respeitado, como que para os estudantes que vivem essas experiências pedagógicas pensadas e elaboradas num sentido do questionamento frente à realidade, da transformação e autonomia do pensamento, a escola e o aprender vira outra coisa – muito melhor.

Na Martinica, professoras de escolas da rede pública levaram aos seus estudantes de ensino fundamental aspectos da história da escravização de africanos, considerando a presença fundamental dessas pessoas na história da ilha e das Américas. Sem deixar de passar pelo sofrimento e dor, e considerando as iniciativas e resistências e, sobretudo, a força vital de nossos antepassados, propuseram que as crianças, por meio da arte e poesia, representassem essas histórias. O resultado não poderia ser mais comovente e belo, principalmente por que foi apresentado por elas e eles, ocupando de forma afirmativa e protagonista seu lugar de criadores. No Espaço Museu Domaine de La Pagerie, nas cercanias da cidade de Fort de France, alunos das escolas de ensino fundamental Sarrault, Long Pré, Ilex Sixtain e Marius Hurrard apresentaram seus olhares sobre a história da escravidão. E como expositores, falaram sobre seus trabalhos.

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Cartaz da exposição em que estudantes do Ensino Fundamental da Martinica apresentaram seus trabalhos literários e artísticos sobre a história da escravidão africana

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Alunos do Ensino Fundamental de uma escola pública na Martinica apresentam seus olhares sobre a escravidão a partir de produção artística e literária

Conhecendo a eles e as suas professoras deu para juntar com a riqueza dos resultados dos alunos do ProfHistoria e acreditar que estamos aí, no mundo. E sabemos que ainda há muitas experiências sendo desenvolvidas no Brasil, em escolas e outros espaços educativos. Temos que nos conhecer mais.

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Manuela Yung-Hing, Diretora do Museu Domaine de la Paigerie apresenta professoras e estudantes que realizaram a exposição “Olhares sobre a escravidão”

PS (31/10/2016). Resistir à onda conservadora que se vê cada vez mais ameaçadora no Brasil, mais do que uma postura necessária, torna-se um compromisso com a liberdade e com a vida. Vamos que vamos: que os tambores soem cada vez mais fortes, seja no Brasil, na Martinica, ou em África.

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Produção artística dos estudantes de Ensino Fundamental da Martinica. Algo semelhante pode estar sendo realizado nas nossas salas de aulas hoje, por tantos professores que se atrevem a tocar em tão delicado tema. Reparem: a imagem do escravizado é marcada por palavras de revolta, de insubmissão e de negação da sujeição. 

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HÁ UM LUGAR PARA A LIBERDADE?*

A escravidão foi reconhecida como crime contra a humanidade pela ONU, por meio do Estatuto de Roma, do Tribunal Penal Internacional, em 1998. A especial gravidade do tráfico transatlântico de africanos, por sua vez, foi destacada na Declaração e no Programa de Ação  da Conferência Mundial contra Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, de 2001. Estamos no segundo ano da Década Internacional do Afrodescendente. E nesta segunda-feira, 21 de março, chegamos ao 50º ano do Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial, instituído seis anos depois do Massacre de Sharpeville, quando a polícia do apartheid sul-africano se lançou contra cerca de 20 mil pessoas que manifestavam contra a Lei do Passe, que limitava o direito de ir e vir de gente de pele escura no país, atentado que deixou dezenas de mortos e centenas de feridos. O episódio é representado no filme Mandela: o caminho para a liberdade (2013), dirigido por Justin Chadwick e estrelado por Idris Elba, a partir do 25º minuto.

Sharpeville

O apartheid inequivocamente foi uma prática condenável. E precisamos nunca perder isso de vista. Ao mesmo tempo, devemos fugir da antiga armadilha de estabelecer rankings da violência racial no mundo. Trata-se de uma questão que dá sentido à sociabilidade em escala global e isso precisa ser encarado com seriedade e serenidade. Não é por acaso que, no lado de cá do Atlântico, de uma ponta a outra do continente americano, a escravidão e o racismo tiveram papel decisivo na conformação de projetos nacionais que em sua maioria não adotaram a universalização da liberdade e da cidadania como pressuposto para seus processos de independência. Senão, vejamos.

Afora o delicado caso do Haiti, nenhuma outra nação americana independente no século XIX construiu as bases de sua soberania a partir da liberdade de todos os seus membros. A permanência da escravização de africanos e seus descendentes, em vez disso, serviu para sustentar os primeiros passos de países como os EUA (ainda no século XVIII), Brasil, Colômbia, Argentina, etc. Por outro lado, seja o difícil processo da emancipação política das colônias inglesas, no pós-segunda guerra mundial, e de Cuba, em 1959; seja a ambiguidade da atual condição das ex-colônias francesas e de Porto Rico, esses casos em vez desmontar o argumento, acabam por reforçá-lo. Isso porque tais experiências nos permitem explicitar uma outra face do mesmo problema: os limites e as possibilidades da cidadania negra antes e após o fim da escravidão legalizada.

Tabela Independências - Abolição

A hierarquização sociorracial dos habitantes desses países – a princípio, divididos entre escravizados, libertos e livres − gerou um embaraço que ainda hoje custa ser desfeito pelos pesquisadores dessas histórias nacionais. Cidadania de segunda classe, quase cidadania, cidadania parcial ou não cidadania, essas são expressões por meio das quais pesquisadoras/es têm buscado se aproximar das experiências da liberdade negra nas diversas sociedades americanas. Fato que muitas vezes causa estranheza até entre interessados/as na chamada “história negra”, não foram pontuais as presenças de “pretos”, “pardos”, “morenos”, “mulatos”, etc. livres durante a vigência da escravidão.

Como observado por George Andrews, em 1783, 59,7% da população “negra e mulata” de Caracas era livre; em 1810, 22,6% dos “negros e mulatos” da cidade de Buenos Aires também; e aproximadamente 54,8% em 1827; em 1850, 35% da população afro-cubana já não estava submetida à escravidão. Giovana Xavier, a partir da análise dos censos dos EUA, destaca que, se em 1860, 11% dos “blacks and mulattos” do país; os 41.224 afro-americanos de Nova York (ou seja 100%) eram livres já neste período. No Brasil, para o ano de 1872, segundo o Recenseamento Geral do Império, para dez pessoas pretas e pardas, seis eram libertas ou livres.

Diante de tal cenário, fica a pergunta: Como e por que, a despeito do tempo e do espaço, o sujeito negro por excelência se tornou sinônimo de escravo nas histórias nacionais? Longe de subtrair o peso da escravidão, interessa responder por que a lacuna representada pela ignorância sobre os destinos de tantas pessoas vivendo na liberdade e lutando por cidadania não colocam em xeque o que acreditamos conhecer sobre a história do nosso continente? Por força do costume ou “razões científicas”, a invenção da liberdade como um não lugar da gente negra fez com que, por exemplo, a inclusão dessas pessoas em projetos de imigração entre países americanos se tornasse inviável. Tal impossibilidade de pensar as populações negras na liberdade extrapola, portanto, a escravidão e nos informa sobre a viabilidade desses sujeitos e das nações em que se encontram, como registrado pelo jornal O Homem, primeiro periódico da imprensa negra de Pernambuco, que em 1876 apresentava o subtítulo “Realidade Constitucional ou Dissolução Social”. Afinal, desde a Constituição de 1824, os cidadãos deveriam ser medidos por seus talentos e virtudes.

De tal sorte, acredito que, do lugar de historiadoras/es, contribuir para a luta que marca o dia de hoje passa por romper com essa expressão do racismo expressa nesse apagamento desses sujeitos históricos e sua importância para a trajetória de cada país. Estando nos anos iniciais da Década do Internacional do Afrodescendente, é importante problematizar o que das histórias americanas queremos rememorar e como faremos isso. E mais, torna-se ainda mais urgente incorporar em nosso repertório as experiências dos países vizinhos, como as das irmãs Petrona e Sebastiana Cárdenas, uma das tantas apresentadas pela série colombiana “Invisibles”. Se os estudos comparados sobre escravidão renderam bons resultados, está caindo de madura a oportunidade de aproximar as reflexões sob essa outra perspectiva também.

Irmãs Cadernas

 

*Texto produzido enquanto acompanhava as mobilizações contra as investidas de golpe à democracia brasileira e sobrevoava o mar do Caribe com destino a Nova York; e finalizado sob o impacto da fala da cineasta e advogada Viviane Ferreira  no ato realizado na Avenida Paulista em 18 de março.

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