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Senhora Liberdade!

Alessandra Nicodemos é a convidada dessa semana, com apresentação de Monica Lima.

Pelos caminhos de muitas voltas das redes sociais chegou às minhas mãos, recentemente, um texto atribuído à Juíza Federal Raquel Domingues do Amaral sobre as origens dos direitos humanos. Nele, dirigindo-se aos jovens, a juíza lembraria que as conquistas que geraram os direitos foram alcançadas a partir da luta popular – foram feitas “com a carne do povo”.  Parece lugar-comum, mas não é. Hoje, frente a tantas ameaças, isso tem que ser ensinado e aprendido para que fique impregnado na memória e na forma de entendermos o mundo. Para não nos conformarmos nunca com a perda de direitos fundamentais tão duramente conquistados, e nos conscientizarmos que o direito que ainda nos falta obter também só será alcançado com nossa atuação, enfrentando os que dele se apropriaram e que assim constroem seu privilégio.

Sabemos que a aprendizagem só se realiza de forma completa e vital num ambiente de liberdade. De liberdade de pensar, de discutir, de questionar. E essa liberdade no ambiente escolar e universitário é fundamental para que se desenvolva um espírito crítico e um pensamento autônomo, requisitos indispensáveis para uma mente aberta para novos conhecimentos. No entanto, alguns grupos reacionários se apropriaram da palavra liberdade para construir seu discurso e defender práticas e ideias que em tudo se distanciam dela. Falas e textos que pretendem amordaçar os professores e impedir o acesso a uma informação crítica e problematizadora se disfarçam com uma roupagem que não lhes serve, dizendo defender o que mais querem destruir.

A liberdade definitivamente não combina com os que se dizem de uma escola sem partido, os que dizem defender uma escola livre ou ideias assemelhadas – estes só querem mesmo é silenciar quem ameaça seus podres poderes. Querem usurpar, uma vez mais, um conteúdo que não lhes pertence, pois, a conquista da liberdade não resulta da ação das forças conservadoras. Essa palavra, que o sonho humano alimenta – como escreveu lindamente Cecilia Meireles – não é deles. Ela é dos que lutam contra a exploração dos trabalhadores, contra o autoritarismo, o racismo, o machismo, a homofobia e todos os males presentes em nossa longa história de opressão e preconceito.

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Lembrando tudo isso e indo mais além, Alessandra Nicodemos, professora da Faculdade de Educação da UFRJ,  nos brinda com um texto ao mesmo tempo de reflexão e informação sobre recentes ataques das forças reacionárias aos professores de História. São ameaças à liberdade – reais, concretas. E nós, agora?

Escola sem partido, para quem?

Alessandra Nicodemos

Professores/as de História uni-vos!

Hoje vivemos um significativo avanço conservador, em escala global e local, que pode ser considerado como reflexo de um novo padrão de desenvolvimento econômico que necessita da reestruturação profunda na relação capital-trabalho, o que reconhecemos sendo materializado, nas disputas atuais em torno das propostas da Reforma da Previdência e principalmente, da Reforma Trabalhista no país.

Esse processo implica, ainda, em alterações nas relações sociais gerais e nas relações de poder no Brasil no tempo presente, principalmente na tentativa de construção de uma nova sociabilidade e de novos valores político-sociais. Essas novas relações de poder estão na ordem do dia, após o Golpe de Estado que atravessamos e que enterram definitivamente, para aqueles que acalantavam essa possibilidade, a conciliação de classe. Nos marcos do cenário econômico-político que atravessamos, a democracia, a garantia de direitos, o respeito a diversidade, a liberdade de ensinar e aprender, são entraves que podem – e devem – ser rapidamente removidos ou neutralizados, na construção desses novos padrões de sociabilidade.

A reinvenção nos padrões de sociabilidade, proposta por esse ideário conservador, e materializado em projetos políticos que se encontram em disputa, tem implicado em ações contundentes sobre a Educação Formal, e principalmente, sobre o trabalho e o trabalhador docente.  A educação formal precisa ser controlada e deve passar por mudanças significativas para se adaptar aos “novos” tempos, tornando-se, assim, um instrumento importante na construção de um ideário inspirado na colaboração e harmonização das classes sociais e na ausência de conflitos sociais.  Portanto, o processo de coesão social é simples e depende de uma sociedade civil ativa, na qual os indivíduos, através do diálogo e da tolerância, constroem o bem comum, desde que as contradições de nossa realidade social não sejam identificadas, problematizados e/ou desnaturalizadas nos processos de escolarização.

A opção dos docentes pela reflexão sobre os conflitos, as contradições e os mecanismos de opressão que imperam em nossa sociedade, sejam os de gênero, étnico-raciais e de classe, passam a ser considerados, no discurso conservador, como uma “tomada de partido” ou ainda, como “ideologização do docente” em sua prática curricular, a partir da falsa premissa de que a educação formal venha ser um processo neutro de construção do conhecimento. Esse processo de criminalização e perseguição de docentes atuantes em escolas e universidades, tem tido como alvo mais recorrente os/as professores/as de História. A natureza de nosso campo epistemológico, o avanço em pesquisas com diferentes temas e sujeitos históricos e a análise crítica dos processos históricos, desenvolvidos nos últimos tempos, têm sofrido ataques sérios, nas redes sociais, em discursos maniqueístas e empobrecedores de tão importantes debates.

Porém, precisamos denunciar que tais ações começam a ganhar espaço em um terreno perigoso – principalmente se considerarmos o cenário de exceção que atravessamos – que é a criminalização dos professores e professoras em função de seus posicionamentos teóricos, políticos e pedagógicos. Atualmente temos três casos de processo formal –  de danos morais a processos administrativos –  envolvendo professores e professoras de História em nosso país e em todos eles temos como marca a judicialização do debate da liberdade de ensinar-aprender, ou seja, delegamos a outros sujeitos fora da escola/universidade a possibilidade de indicar o que deve ou não deve estar presente ou ser legitimo nas opções e seleções que os docentes fazem. Esse processo de judicialização, anula a prerrogativa do exercício da autonomia docente, que se constitui como princípio basilar na oferta de políticas públicas em educação, como garante a atual legislação brasileira.  E tais processos judiciais, enviesados por uma tendência de “fla-flu” que atravessamos atualmente, podem desembocar em condenações e perda de direitos desses docentes – funcionários públicos em sua grande maioria – em nome da defesa de uma suposta neutralidade no processo de ensino-aprendizagem, mas que na verdade se constituem em aberta perseguição política e judicial a todos/as que se posicionam contra hegemonicamente.

Precisamos estar atentos, fortes e unidos, em diálogo com os/as nossos/as estudantes e a sociedade, no anúncio de que a escola/universidade é um lugar, ou deve ser, de liberdade na construção do conhecimento e nessa direção, no próximo dia 06 de junho de 2017, se torna imperativo, nosso apoio a Professora Doutora Marlene de Fáveri, que atualmente sofre processo judicial, acusada de perseguição ideológica, pelo seu posicionamento nas discussões de gênero que desenvolve na Universidade Federal de Santa Catarina.

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Professora Marlene de Fáveri. Catarinas: jornalismo com perspectiva de gênero.

Foto: Dieine Andrade

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O poder da criação

Gosto de ser professora. Meus caminhos profissionais me levaram por outras veredas também, mas a sala de aula tem sido a mais constante, aquele lugar em que encontro sentido para as coisas que estudo e pesquiso. E gosto muito de participar da formação de professores, de História principalmente, e ver como aquilo que a gente constrói, sonha e cria no campo do conhecimento é transformado em um saber próprio que o docente produz ali, naquele lugar quente e complexo de encontro com os estudantes da Educação Básica. O quente aqui não se refere às agruras do clima, mas ao calor do debate e da criação.

Evidentemente, não vivo num idealismo piegas que me faz ver só campos floridos no trabalho do professor. Sei que esses profissionais, em sua maioria, tem um dia a dia duríssimo, e são muitas vezes desrespeitados por seus alunos, colegas e empregadores. A luta é cotidiana e não sem razão muitas vezes o enfrentamento das dificuldades gera o adoecimento, o desânimo e até o abandono da profissão. Todos os dias vários talentos para o magistério são perdidos, por não se sentirem capazes de enfrentar as durezas da profissão. O que fazer quando a falta de mínimas condições, de salários dignos, de efetivo apoio de gestores faz de tantos projetos para o ensino sonhos fracassados?

Não são apenas as frases bonitas colocadas nas redes sociais e murais da escola no dia do professor que vão conseguir animar a rapaziada. Homenagear é bom, celebrar é bom, e flores e bombons nunca são demais, mas o que pode significar a decisão entre desistir e seguir, entre seguir arrastando uma opção profissional da qual se orgulha, mas que esbarra numa realidade desgastante, tem que ser mais. Tem que trazer reconhecimento, e abrir novas possibilidades aos professores – de mostrarem, inclusive, que o que fazem, em meio a todas as dificuldades, é de uma qualidade excepcional. E não por que são heróis ou sacerdotes abnegados de um trabalho missionário. Mas, por que se fortalecem na sua própria capacidade de atuar em sala de aula. Criar novos modos de se aprender e ensinar é uma forma de resistir, é contrapor-se ao rolo compressor da mediocridade. E isso acontece.

E de onde eu consigo tirar tanto otimismo nesse contexto temerário? Afinal, estamos em tempos de projetos de mordaça ao professor, de denuncismo na escola, de cerceamento ao livre exercício de pensar e questionar – sem o qual nada se aprende. O ensino de História em especial tem se tornado alvo dessa onda reacionária que pretende atingir a livre navegação do pensamento em sala de aula. Os conteúdos de questionamento e de crítica inerentes ao saber histórico escolar são alvo preferencial daqueles que jogam no campo do obscurantismo, do racismo e da intolerância.

Felizmente, tenho boas notícias. A primeira turma do Mestrado Profissional em Ensino de História que conclui agora o curso apresentou os mais diversificados e estimulantes resultados daquilo que um investimento no professor poderia trazer. Os trabalhos finais de curso defendidos frente às bancas examinadoras trouxeram consistência teórica e criatividade que funcionam como sinais inequívocos de esperança. Foram dois anos de trabalho duro, com carga de disciplinas pesada e muitos debates em sala. Propostas de trabalho articulando textos teóricos e experiências práticas nasceram do dia do curso, desafiando os professores e estudantes.

E o que tivemos como resultados? Alguns exemplos, só para dar uma ideia: a produção de desenhos animados para se trabalhar com educação para relações étnico-raciais no ensino de História no ensino fundamental; um site com sugestões de atividades com o uso de canções da música popular brasileira (sambas) no ensino de História no ensino médio; a partir da trajetória pessoal e profissional de dois artistas plásticos negros do Brasil oitocentista, surgiu uma proposta de trabalho com diversas atividades para se conhecer esses personagens e discutir a relação entre ensino de história e representatividade afro-brasileira; uma reflexão sobre a laicidade do ensino por meio de estudos de casos de escolas situadas em territórios religiosos de filiação distinta; elaboração de metodologias e estratégias para ensino de História no campo da Educação Patrimonial; produção de um documentário para servir como uma visita virtual ao sítio histórico e arqueológico do Cais do Valongo, candidato a patrimônio da humanidade; uma proposta de trabalhos com ensino de História numa comunidade quilombola no Tocantins… entre tantos outros, e há muitos mais em finalização. Esses produtos são acompanhados por uma sólida reflexão teórica, em que o propor a fazer está articulado a pensar o fazer, e um só se realiza por meio do outro.

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Alessandro Paz, Joana Darc Ribeiro e Lucas Moreira Calvo: professores do ProfHistoria festejando conclusão de seus trabalhos finais de mestrado

Quando vejo e conheço esses trabalhos sinto que estamos cerrando fileiras. Não nos rendemos, nem vamos. O poder transformador dessas criações dos professores do ProfHistória não nos deixa entregar o jogo. Como se trata de um mestrado em rede nacional, esses trabalhos vêm de diferentes partes do Brasil, ou seja, têm professoras e professores produzindo ideias e reflexões sobre o campo e criando alternativas para o ensino de História em muitos lugares nesse nosso país. E isso tudo também quer dizer que nas universidades há outros docentes também empenhados em fazer com que aconteça, orientando, estimulando, acompanhando essas histórias. E o melhor: essa foi a primeira turma, e a segunda turma está aí, chegando junto, ainda que sem as mesmas condições até agora (que venham as bolsas para todos os professores da rede pública, como ocorreu na primeira!), e vem mostrando com força a que veio.

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Ana Luiza Ribeiro Garcia realizando exposição sobre seu trabalho final de mestrado (um documentário sobre o Cais do Valongo, para uso em sala de aula) no encontro Narrativas do Rio, na Casa da Ciência da UFRJ

E fica ainda mais bonito quando a gente vê que há movimentos próximos a esses acontecendo em outras partes desse mundo, que o saber que se cria em sala de aula é percebido não só como um conhecimento a ser respeitado, como que para os estudantes que vivem essas experiências pedagógicas pensadas e elaboradas num sentido do questionamento frente à realidade, da transformação e autonomia do pensamento, a escola e o aprender vira outra coisa – muito melhor.

Na Martinica, professoras de escolas da rede pública levaram aos seus estudantes de ensino fundamental aspectos da história da escravização de africanos, considerando a presença fundamental dessas pessoas na história da ilha e das Américas. Sem deixar de passar pelo sofrimento e dor, e considerando as iniciativas e resistências e, sobretudo, a força vital de nossos antepassados, propuseram que as crianças, por meio da arte e poesia, representassem essas histórias. O resultado não poderia ser mais comovente e belo, principalmente por que foi apresentado por elas e eles, ocupando de forma afirmativa e protagonista seu lugar de criadores. No Espaço Museu Domaine de La Pagerie, nas cercanias da cidade de Fort de France, alunos das escolas de ensino fundamental Sarrault, Long Pré, Ilex Sixtain e Marius Hurrard apresentaram seus olhares sobre a história da escravidão. E como expositores, falaram sobre seus trabalhos.

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Cartaz da exposição em que estudantes do Ensino Fundamental da Martinica apresentaram seus trabalhos literários e artísticos sobre a história da escravidão africana

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Alunos do Ensino Fundamental de uma escola pública na Martinica apresentam seus olhares sobre a escravidão a partir de produção artística e literária

Conhecendo a eles e as suas professoras deu para juntar com a riqueza dos resultados dos alunos do ProfHistoria e acreditar que estamos aí, no mundo. E sabemos que ainda há muitas experiências sendo desenvolvidas no Brasil, em escolas e outros espaços educativos. Temos que nos conhecer mais.

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Manuela Yung-Hing, Diretora do Museu Domaine de la Paigerie apresenta professoras e estudantes que realizaram a exposição “Olhares sobre a escravidão”

PS (31/10/2016). Resistir à onda conservadora que se vê cada vez mais ameaçadora no Brasil, mais do que uma postura necessária, torna-se um compromisso com a liberdade e com a vida. Vamos que vamos: que os tambores soem cada vez mais fortes, seja no Brasil, na Martinica, ou em África.

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Produção artística dos estudantes de Ensino Fundamental da Martinica. Algo semelhante pode estar sendo realizado nas nossas salas de aulas hoje, por tantos professores que se atrevem a tocar em tão delicado tema. Reparem: a imagem do escravizado é marcada por palavras de revolta, de insubmissão e de negação da sujeição. 

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HÁ UM LUGAR PARA A LIBERDADE?*

A escravidão foi reconhecida como crime contra a humanidade pela ONU, por meio do Estatuto de Roma, do Tribunal Penal Internacional, em 1998. A especial gravidade do tráfico transatlântico de africanos, por sua vez, foi destacada na Declaração e no Programa de Ação  da Conferência Mundial contra Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, de 2001. Estamos no segundo ano da Década Internacional do Afrodescendente. E nesta segunda-feira, 21 de março, chegamos ao 50º ano do Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial, instituído seis anos depois do Massacre de Sharpeville, quando a polícia do apartheid sul-africano se lançou contra cerca de 20 mil pessoas que manifestavam contra a Lei do Passe, que limitava o direito de ir e vir de gente de pele escura no país, atentado que deixou dezenas de mortos e centenas de feridos. O episódio é representado no filme Mandela: o caminho para a liberdade (2013), dirigido por Justin Chadwick e estrelado por Idris Elba, a partir do 25º minuto.

Sharpeville

O apartheid inequivocamente foi uma prática condenável. E precisamos nunca perder isso de vista. Ao mesmo tempo, devemos fugir da antiga armadilha de estabelecer rankings da violência racial no mundo. Trata-se de uma questão que dá sentido à sociabilidade em escala global e isso precisa ser encarado com seriedade e serenidade. Não é por acaso que, no lado de cá do Atlântico, de uma ponta a outra do continente americano, a escravidão e o racismo tiveram papel decisivo na conformação de projetos nacionais que em sua maioria não adotaram a universalização da liberdade e da cidadania como pressuposto para seus processos de independência. Senão, vejamos.

Afora o delicado caso do Haiti, nenhuma outra nação americana independente no século XIX construiu as bases de sua soberania a partir da liberdade de todos os seus membros. A permanência da escravização de africanos e seus descendentes, em vez disso, serviu para sustentar os primeiros passos de países como os EUA (ainda no século XVIII), Brasil, Colômbia, Argentina, etc. Por outro lado, seja o difícil processo da emancipação política das colônias inglesas, no pós-segunda guerra mundial, e de Cuba, em 1959; seja a ambiguidade da atual condição das ex-colônias francesas e de Porto Rico, esses casos em vez desmontar o argumento, acabam por reforçá-lo. Isso porque tais experiências nos permitem explicitar uma outra face do mesmo problema: os limites e as possibilidades da cidadania negra antes e após o fim da escravidão legalizada.

Tabela Independências - Abolição

A hierarquização sociorracial dos habitantes desses países – a princípio, divididos entre escravizados, libertos e livres − gerou um embaraço que ainda hoje custa ser desfeito pelos pesquisadores dessas histórias nacionais. Cidadania de segunda classe, quase cidadania, cidadania parcial ou não cidadania, essas são expressões por meio das quais pesquisadoras/es têm buscado se aproximar das experiências da liberdade negra nas diversas sociedades americanas. Fato que muitas vezes causa estranheza até entre interessados/as na chamada “história negra”, não foram pontuais as presenças de “pretos”, “pardos”, “morenos”, “mulatos”, etc. livres durante a vigência da escravidão.

Como observado por George Andrews, em 1783, 59,7% da população “negra e mulata” de Caracas era livre; em 1810, 22,6% dos “negros e mulatos” da cidade de Buenos Aires também; e aproximadamente 54,8% em 1827; em 1850, 35% da população afro-cubana já não estava submetida à escravidão. Giovana Xavier, a partir da análise dos censos dos EUA, destaca que, se em 1860, 11% dos “blacks and mulattos” do país; os 41.224 afro-americanos de Nova York (ou seja 100%) eram livres já neste período. No Brasil, para o ano de 1872, segundo o Recenseamento Geral do Império, para dez pessoas pretas e pardas, seis eram libertas ou livres.

Diante de tal cenário, fica a pergunta: Como e por que, a despeito do tempo e do espaço, o sujeito negro por excelência se tornou sinônimo de escravo nas histórias nacionais? Longe de subtrair o peso da escravidão, interessa responder por que a lacuna representada pela ignorância sobre os destinos de tantas pessoas vivendo na liberdade e lutando por cidadania não colocam em xeque o que acreditamos conhecer sobre a história do nosso continente? Por força do costume ou “razões científicas”, a invenção da liberdade como um não lugar da gente negra fez com que, por exemplo, a inclusão dessas pessoas em projetos de imigração entre países americanos se tornasse inviável. Tal impossibilidade de pensar as populações negras na liberdade extrapola, portanto, a escravidão e nos informa sobre a viabilidade desses sujeitos e das nações em que se encontram, como registrado pelo jornal O Homem, primeiro periódico da imprensa negra de Pernambuco, que em 1876 apresentava o subtítulo “Realidade Constitucional ou Dissolução Social”. Afinal, desde a Constituição de 1824, os cidadãos deveriam ser medidos por seus talentos e virtudes.

De tal sorte, acredito que, do lugar de historiadoras/es, contribuir para a luta que marca o dia de hoje passa por romper com essa expressão do racismo expressa nesse apagamento desses sujeitos históricos e sua importância para a trajetória de cada país. Estando nos anos iniciais da Década do Internacional do Afrodescendente, é importante problematizar o que das histórias americanas queremos rememorar e como faremos isso. E mais, torna-se ainda mais urgente incorporar em nosso repertório as experiências dos países vizinhos, como as das irmãs Petrona e Sebastiana Cárdenas, uma das tantas apresentadas pela série colombiana “Invisibles”. Se os estudos comparados sobre escravidão renderam bons resultados, está caindo de madura a oportunidade de aproximar as reflexões sob essa outra perspectiva também.

Irmãs Cadernas

 

*Texto produzido enquanto acompanhava as mobilizações contra as investidas de golpe à democracia brasileira e sobrevoava o mar do Caribe com destino a Nova York; e finalizado sob o impacto da fala da cineasta e advogada Viviane Ferreira  no ato realizado na Avenida Paulista em 18 de março.

Voo

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