O poder da criação

Gosto de ser professora. Meus caminhos profissionais me levaram por outras veredas também, mas a sala de aula tem sido a mais constante, aquele lugar em que encontro sentido para as coisas que estudo e pesquiso. E gosto muito de participar da formação de professores, de História principalmente, e ver como aquilo que a gente constrói, sonha e cria no campo do conhecimento é transformado em um saber próprio que o docente produz ali, naquele lugar quente e complexo de encontro com os estudantes da Educação Básica. O quente aqui não se refere às agruras do clima, mas ao calor do debate e da criação.

Evidentemente, não vivo num idealismo piegas que me faz ver só campos floridos no trabalho do professor. Sei que esses profissionais, em sua maioria, tem um dia a dia duríssimo, e são muitas vezes desrespeitados por seus alunos, colegas e empregadores. A luta é cotidiana e não sem razão muitas vezes o enfrentamento das dificuldades gera o adoecimento, o desânimo e até o abandono da profissão. Todos os dias vários talentos para o magistério são perdidos, por não se sentirem capazes de enfrentar as durezas da profissão. O que fazer quando a falta de mínimas condições, de salários dignos, de efetivo apoio de gestores faz de tantos projetos para o ensino sonhos fracassados?

Não são apenas as frases bonitas colocadas nas redes sociais e murais da escola no dia do professor que vão conseguir animar a rapaziada. Homenagear é bom, celebrar é bom, e flores e bombons nunca são demais, mas o que pode significar a decisão entre desistir e seguir, entre seguir arrastando uma opção profissional da qual se orgulha, mas que esbarra numa realidade desgastante, tem que ser mais. Tem que trazer reconhecimento, e abrir novas possibilidades aos professores – de mostrarem, inclusive, que o que fazem, em meio a todas as dificuldades, é de uma qualidade excepcional. E não por que são heróis ou sacerdotes abnegados de um trabalho missionário. Mas, por que se fortalecem na sua própria capacidade de atuar em sala de aula. Criar novos modos de se aprender e ensinar é uma forma de resistir, é contrapor-se ao rolo compressor da mediocridade. E isso acontece.

E de onde eu consigo tirar tanto otimismo nesse contexto temerário? Afinal, estamos em tempos de projetos de mordaça ao professor, de denuncismo na escola, de cerceamento ao livre exercício de pensar e questionar – sem o qual nada se aprende. O ensino de História em especial tem se tornado alvo dessa onda reacionária que pretende atingir a livre navegação do pensamento em sala de aula. Os conteúdos de questionamento e de crítica inerentes ao saber histórico escolar são alvo preferencial daqueles que jogam no campo do obscurantismo, do racismo e da intolerância.

Felizmente, tenho boas notícias. A primeira turma do Mestrado Profissional em Ensino de História que conclui agora o curso apresentou os mais diversificados e estimulantes resultados daquilo que um investimento no professor poderia trazer. Os trabalhos finais de curso defendidos frente às bancas examinadoras trouxeram consistência teórica e criatividade que funcionam como sinais inequívocos de esperança. Foram dois anos de trabalho duro, com carga de disciplinas pesada e muitos debates em sala. Propostas de trabalho articulando textos teóricos e experiências práticas nasceram do dia do curso, desafiando os professores e estudantes.

E o que tivemos como resultados? Alguns exemplos, só para dar uma ideia: a produção de desenhos animados para se trabalhar com educação para relações étnico-raciais no ensino de História no ensino fundamental; um site com sugestões de atividades com o uso de canções da música popular brasileira (sambas) no ensino de História no ensino médio; a partir da trajetória pessoal e profissional de dois artistas plásticos negros do Brasil oitocentista, surgiu uma proposta de trabalho com diversas atividades para se conhecer esses personagens e discutir a relação entre ensino de história e representatividade afro-brasileira; uma reflexão sobre a laicidade do ensino por meio de estudos de casos de escolas situadas em territórios religiosos de filiação distinta; elaboração de metodologias e estratégias para ensino de História no campo da Educação Patrimonial; produção de um documentário para servir como uma visita virtual ao sítio histórico e arqueológico do Cais do Valongo, candidato a patrimônio da humanidade; uma proposta de trabalhos com ensino de História numa comunidade quilombola no Tocantins… entre tantos outros, e há muitos mais em finalização. Esses produtos são acompanhados por uma sólida reflexão teórica, em que o propor a fazer está articulado a pensar o fazer, e um só se realiza por meio do outro.

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Alessandro Paz, Joana Darc Ribeiro e Lucas Moreira Calvo: professores do ProfHistoria festejando conclusão de seus trabalhos finais de mestrado

Quando vejo e conheço esses trabalhos sinto que estamos cerrando fileiras. Não nos rendemos, nem vamos. O poder transformador dessas criações dos professores do ProfHistória não nos deixa entregar o jogo. Como se trata de um mestrado em rede nacional, esses trabalhos vêm de diferentes partes do Brasil, ou seja, têm professoras e professores produzindo ideias e reflexões sobre o campo e criando alternativas para o ensino de História em muitos lugares nesse nosso país. E isso tudo também quer dizer que nas universidades há outros docentes também empenhados em fazer com que aconteça, orientando, estimulando, acompanhando essas histórias. E o melhor: essa foi a primeira turma, e a segunda turma está aí, chegando junto, ainda que sem as mesmas condições até agora (que venham as bolsas para todos os professores da rede pública, como ocorreu na primeira!), e vem mostrando com força a que veio.

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Ana Luiza Ribeiro Garcia realizando exposição sobre seu trabalho final de mestrado (um documentário sobre o Cais do Valongo, para uso em sala de aula) no encontro Narrativas do Rio, na Casa da Ciência da UFRJ

E fica ainda mais bonito quando a gente vê que há movimentos próximos a esses acontecendo em outras partes desse mundo, que o saber que se cria em sala de aula é percebido não só como um conhecimento a ser respeitado, como que para os estudantes que vivem essas experiências pedagógicas pensadas e elaboradas num sentido do questionamento frente à realidade, da transformação e autonomia do pensamento, a escola e o aprender vira outra coisa – muito melhor.

Na Martinica, professoras de escolas da rede pública levaram aos seus estudantes de ensino fundamental aspectos da história da escravização de africanos, considerando a presença fundamental dessas pessoas na história da ilha e das Américas. Sem deixar de passar pelo sofrimento e dor, e considerando as iniciativas e resistências e, sobretudo, a força vital de nossos antepassados, propuseram que as crianças, por meio da arte e poesia, representassem essas histórias. O resultado não poderia ser mais comovente e belo, principalmente por que foi apresentado por elas e eles, ocupando de forma afirmativa e protagonista seu lugar de criadores. No Espaço Museu Domaine de La Pagerie, nas cercanias da cidade de Fort de France, alunos das escolas de ensino fundamental Sarrault, Long Pré, Ilex Sixtain e Marius Hurrard apresentaram seus olhares sobre a história da escravidão. E como expositores, falaram sobre seus trabalhos.

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Cartaz da exposição em que estudantes do Ensino Fundamental da Martinica apresentaram seus trabalhos literários e artísticos sobre a história da escravidão africana

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Alunos do Ensino Fundamental de uma escola pública na Martinica apresentam seus olhares sobre a escravidão a partir de produção artística e literária

Conhecendo a eles e as suas professoras deu para juntar com a riqueza dos resultados dos alunos do ProfHistoria e acreditar que estamos aí, no mundo. E sabemos que ainda há muitas experiências sendo desenvolvidas no Brasil, em escolas e outros espaços educativos. Temos que nos conhecer mais.

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Manuela Yung-Hing, Diretora do Museu Domaine de la Paigerie apresenta professoras e estudantes que realizaram a exposição “Olhares sobre a escravidão”

PS (31/10/2016). Resistir à onda conservadora que se vê cada vez mais ameaçadora no Brasil, mais do que uma postura necessária, torna-se um compromisso com a liberdade e com a vida. Vamos que vamos: que os tambores soem cada vez mais fortes, seja no Brasil, na Martinica, ou em África.

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Produção artística dos estudantes de Ensino Fundamental da Martinica. Algo semelhante pode estar sendo realizado nas nossas salas de aulas hoje, por tantos professores que se atrevem a tocar em tão delicado tema. Reparem: a imagem do escravizado é marcada por palavras de revolta, de insubmissão e de negação da sujeição. 

5 Comentários

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5 Respostas para “O poder da criação

  1. Elaine Pereira Rocha

    Meus parabens, Monica! A voce e a todos que participam deste projeto. Deu vontade de participar! Quando quiser e precisar, me chama que eu vou (online, mas vou!). Beijos!

    • Elaine, me lembrei muito de você nessa viagem. Foi um convite desses que veio sem esperar e ao mesmo tempo ao encontro de muitas coisas sobre as quais ando pensando. Fiquei encantada com umas pessoas que conheci por lá. Tenho que lhe escrever e lhe contar. Se houver (espero que haja) desdobramentos desse encontro lhe farei saber, certamente. Beijos!

  2. Boris

    Excelente texto. Quero acrescentar: a Historia coloca hoje no Brasil os historiadores em posição de privilégio, pois a sua disciplina, sobretudo o ensino mas amanhã a pesquisa certamente, estão sendo atacados pela extrema-direita e por governistas histéricos, muitos aliás que ignoram fatos e conceitos. O ensino critico, exemplificado pelos comentários e foto sobre trabalho sobre escravidão na Guadelupe, deve ser estimulado e não suprimido, como o prega a famigerada “Escola sem partido”. Porque não organizam um simpósio bi-nacional com a França, ilustrando o trabalho sobre escravidão em ambos os países? Fica aqui a sugestão.

  3. SANDRA LIMA DO NASCIMENTO

    Lindo texto…lirismo e otimismo: alimentos para o nosso espírito! Parabéns!

  4. Pingback: O ProfHistoria e o bom combate | conversa de historiadoras

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