Eu estava sentada no colo de minha avó Leonor, uma das ancestrais na qual ergo minhas costas, quando assisti Deise Nunes receber a coroa de Miss Brasil, na narração de Silvio Santos. Aquela noite de domingo de 1986 foi diferente de todas as outras. As adultas permitiram que as crianças da casa assistissem televisão até mais tarde. Lembro de minha mãe, Sonia (em memória), mudando de tempos em tempos a TV de canal em busca de mais notícias. A cada pio mirim recebíamos um psiu coletivo das Pretas do clã. Na segunda-feira, que aprendi desde cedo, tratar-se de “dia de branco” (eita contradição!), a história foi outra. Na hora do recreio, eu, menina de sete anos, educada em uma escola branca do subúrbio, fui a Deise. A brincadeira era outra. A Macaca autopromoveu-se Miss Brasil da escola.
Passaram-se três décadas, ou nas palavras da vitoriosa Raissa Santana, um “jejum de trinta anos”, até que uma segunda Mulher Negra conquistasse o título de soberana da beleza. E neste tempo não tivemos domingo, nem dia santo. Tornei-me professora universitária (diga-se de passagem doutora em história das mulheres e da beleza negra) e assim como eu milhões seguimos lutando cotidianamente em espaços variados, forjando caminhos possíveis para o reconhecimento das belezas de quem somos e das histórias que carregamos.
Fotografia: Divulgação
Em um país em que nós (52% da população) ocupamos a base de todas as estatísticas, ser Miss Brasil importa, como muito bem narrado por Flavia Oliveira. Conquistar a coroa, símbolo político por meio do qual costumamos narrar nossos cabelos, representa uma forma de combate às mortes simbólicas que vivenciamos desde a gestação. Mortes em vida que envolvem “torcida” para que nasçamos com pele mais “clara” e cabelo “melhor”, ofensas a cabelos crespos e feições grossas, hipersexualização de corpos, subestimação da capacidade intelectual, perseguição às religiões que praticamos. Agora mesmo estou a auxiliar uma estudante de Pedagogia a encontrar uma instituição de educação formal para realizar seu estágio porque devido ao turbante e aos fios de conta, que representam a sua fé, a jovem já perdeu a conta de quantas vezes ouviu: “Não há mais vagas”.
Evidentemente que por ser quem sou e pelo tipo de trabalho que desenvolvo, concordo com a ideia de que os concursos de miss reproduzem o machismo, o patriarcado e os padrões de beleza hegemônicos, que são alcançados à custa de uma série de violências contra as mulheres desde o século XIX. Ao mesmo tempo, por ter a academia – um mundo branco, masculino e eurocêntrico, como lugar de inserção, não desisto de me perguntar: quais os caminhos possíveis para conquista do protagonismo negro em estruturas indiscutivelmente opressoras?
A primeira coisa que me vem à cabeça e pela qual sou absolutamente compromissada é a necessidade de construirmos nossos próprios espaços de formação e representação. O trabalho que realizamos no Grupo de Estudos e Pesquisas Intelectuais Negras UFRJ é apenas um exemplo.
Para que nossos espaços se fortaleçam, se não todas, algumas de Nós, precisamos também conquistar visibilidade e reconhecimento nos lugares hegemônicos. Não há como fugir, mas há como transgredir. Um exemplo recente encontra-se na minha (in) tensa participação como uma das autoras do livro Mulheres: um século de transformações, publicação em homenagem ao Caderno Ela, o qual já sabemos não nos representa.
Nas últimas três semanas, minhas noites de quinta-feira foram dedicadas a discutir com a equipe do suplemento e as organizadoras da obra, os efeitos catastróficos que a nossa invisibilização em um veículo de comunicação de grande porte gera para a comunidade negra: um crime semanal. Há quem acredite tratar-se de perda de tempo, desgaste desnecessário… Por meu turno, penso que têm coisas que só nós podemos fazer por nós. A quem cabe denunciar nossa invisibilização na exposição em homenagem à “mulher brasileira”, realizada no Espaço Ipanema? Quem deve proteger a história de Carolina Maria de Jesus, narrando o quão desrespeitoso é escolher retratá-la retirando água de um poço? Em um país racista, em que aprendemos a valorizar a branquidade e rejeitar a negritude, quem, se não Nós, para se organizar e reivindicar que as redações de jornais contratem profissionais negros?
Fotografia: Carolina Maria de Jesus, capa do Níger, Coleção Oswaldo de Camargo. Em 1960, a equipe editorial do jornal negro cuidou de eternizar a imagem da mineira de Sacramento, como autora, preterindo as cenas de subalternidade. Agradeço a Ana Flávia Magalhães Pinto por compartilhar a imagem.
Após muitos confrontos, na semana seguinte, pudemos ver também Thais Araújo representadas na exposição. E, é óbvio que este tipo de retratação é insuficiente, mas é um caminho que também precisa ser trilhado. Após a escuta sensível da editora Renata Izaal, saímos de lá comprometidas com a manutenção dos diálogos com o Caderno Ela. Por que? Somos protagonistas do mercado consumidor brasileiro (em 2014 movimentamos 32 bilhões de reais). Além disso e não menos importante: como educadora, lembro sempre que é o jornal O Globo que chega a todas as bancas. Que é dele que as crianças pretas recortam as imagens para confeccionar os murais das escolas. Que é este o impresso disponível para leitura nos lugares em que trabalhamos, inclusive na casa das patroas…
Exposição Mulheres: um século de transformações, Espaço Ipanema, 06/10/16.
Transgredir passa por colocar a margem no centro com nossas próprias mãos. Passa por questionar noções universais de mulher, raça, beleza. Articular marcadores sociais, reconhecendo que as experiências de gênero são distintas a depender do grupo racial a que pertencemos, torna possível compreender que para Mulheres Negras, historicamente narradas como puro corpo, sem alma e humanidade, ser eleita símbolo nacional de beleza é algo que, se devidamente trabalhado, pode se tornar uma lança para as novas gerações, que encontrarão na imagem de Raissa, a baiana de 21 anos (e que representou o estado do Paraná), um espelho possível para o amanhã.
Não sabemos (nem precisamos) mensurar em número o impacto do primeiro lugar no pódio assim como da presença de seis candidatas negras participando no Miss Brasil 2016, mas devemos estar sensíveis ao fato de que milhões de meninas negras no Brasil tiveram no sábado, dia 01/10/16, validado o seu direito de sonhar. Isso porque por conta do racismo, estrutura que não criamos, mas a qual estamos sujeitas, esta possibilidade inexiste. Nossas meninas permanecem violentadas, sendo ensinadas a projetarem o trabalho doméstico como destino. Seguimos em vigílias noturnas, sem saber ao certo se nossos meninos pretos voltarão para casa.
Eu realmente acredito que fazermos-nos visíveis a partir de nossos corpos e pontos de vista em concursos de beleza, na mídia, no mundo acadêmico e demais espaços de prestígio é de suma importância para combatermos o extermínio de nossa juventude, a esterilização à revelia de nossos corpos, o encarceramento de nossa comunidade.
Fotografia: divulgação. Da esq./dir. Deise D’Anne (Miss Maranhão); Raissa Santana (Miss Brasil); Beatriz Nalli (Miss Espírito Santo); Sabrina Paiva (Miss São Paulo); Vitoria Esteves (Miss Bahia); Mariana Theol (Miss Rondônia).
Apropriar-nos do potencial político que a categoria de beleza negra evoca significa materializar o ato de lutar para sermos quem quisermos ser, um direito relacionado à nossa história de pertencimento a uma comunidade negra, plural em seus modos de ser, sentir e existir. Não somos todas Raíssa, mas a coroa de Raissa é de Todas Nós.
Debate”Empoderamento feminino: um debate sobre a trajetória da mulher na moda”, ao fundo a jornalista Melissa Jannuzzi, consultora de moda. (Fotografia: Amana Mattos, 06/10/16).
E para terminar, a Miss Brasil Raissa por Raissa, já que suas falas andam sendo recortadas para atender a ideais de democracia racial que não nos pertencem:
“Eu estou muito emocionada. Isso aqui é uma mistura de emoções muito grande. Eu não esperava ganhar esse título, mas estou muito feliz por ter conquistado esse título e por poder representar a beleza negra e incentivar meninas que têm o sonho de ter alguma coisa, de conquistar, de ser uma modelo, de ser uma miss… Agora, quero incentivar essas meninas e mostrar para elas que elas podem”.
Parabéns às mulheres negras brasileiras!
Parabéns, Giovana, como sempre, um texto lindo e necessário. Muita admiração por você e por seu trabalho.