A história viva e os nossos mortos no 13 de maio

 

“A morte não emite som de trombeta” (ditado do Congo)

 

O que mais pode nos trazer como matéria de reflexão uma data como essa, o 13 de Maio, em meio a uma pandemia assustadora, que nos mantém reféns de um medo que vai da ameaça do vírus a negacionismos de autoridades governamentais que reforçam um discurso anticientífico, e que desconhecem a relevância dos mortos pela covid19? O que temos a lembrar sobre o dia da abolição da escravidão, nos nossos dias, pensando a História como um conhecimento que atravessa o passado e chega ao presente, levantando véus e reconhecendo voz e vida também naqueles que faleceram?

Há outros 13 de maios a serem lembrados, e um deles com especial razão no atual momento. Há quinze anos, nessa data, era fundado o Instituto de Pretos Novos – IPN, instituição que abriga e preserva o Cemitério Pretos Novos, situado na zona portuária da cidade do Rio de Janeiro. A história desse cemitério está ligada ao complexo escravagista criado na região do entorno do Cais do Valongo entre fins do século XVIII e 1831, na qual centenas de milhares de africanos escravizados foram desembarcados e de onde os cativos recém-chegados não poderiam sair “nem depois de mortos”. Neste local, os escravizados que haviam chegado adoecidos pela terrível travessia atlântica e que, não conseguindo se recuperar, vinham a falecer, eram enterrados numa vala comum, de um modo tão precário que muitas vezes seus restos mortais ficavam “à flor da terra” .  E tudo isso sem direito à choro nem vela, o que, para suas culturas de origem, era mais do que um profundo desrespeito, uma maldição.

A lei de proibição do tráfico escravista de 1831 fez com que o desembarque de africanos   escravizados deixasse de ser feito na região central da cidade, esvaziando dessa função o Cais do Valongo e desativando o Cemitério de Pretos Novos. Sua história, assim como a do cais, é enterrada de forma material, em obras sucessivas que remodelam a região portuária e, de forma simbólica, com a mudança de nomes – a antiga Rua do Cemitério passa a ser Rua Pedro Ernesto – e, sobretudo, o silenciamento dessa memória de uma história que se escreveu querendo apagar as marcas da escravidão.

Em 1996, uma família carioca encontra pedaços de ossos realizando uma obra em sua casa, nesta mesma rua, que fica no bairro da Saúde, zona portuária do Rio. A princípio não sabiam do que se tratava, mas logo descobriram: era o Cemitério de Pretos Novos. Merced Guimarães e sua família passam então a se responsabilizar por cuidar e gerir um sítio histórico de valor incomensurável: nele se encontram restos mortais de milhares de africanos e africanas que, transportados à força de sua terra natal, atravessaram o oceano e vieram ter como última morada o solo brasileiro. A guarda desse lugar de memória sensível, testemunho material da crueldade da escravidão, depois de muita luta e do enfrentamento do descaso de autoridades, num 13 de maio de há quinze anos, passou a ser exercida pelo Instituto de Pretos Novos, que ainda sobrevive com muitas dificuldades.

E o que tem esse 13 de maio do IPN a ver com nossos dias? Muito. O Cemitério de Pretos Novos nos faz lembrar da abolição, que é incompleta porque não reparou as incontáveis perdas da população negra e africana de seu tempo, bem como a de seus descendentes, marcados pelo sofrimento do racismo, além da profunda desigualdade social. E nos recorda que não deve existir vala comum simbólica para nenhum dos nossos falecidos, que todos importam, e que o respeito à morte é respeito à vida. Que os corpos dos nossos antepassados africanos guardados pelo IPN possam ser reconhecidos como parte de nossa História, assim como os nossos bem-amados de hoje que se foram nesse mar da pandemia venham a ser resgatados pela nossa memória. Como diz o ditado congolês, a morte não emite som de trombeta. Cabe a nós fazê-la soar.

#inumeraveis

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Arquivado em história e memória, história pública, politicas de reparação

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