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A polêmica dos calendários entre a história e a matemática

Uma polêmica tão divertida quanto inusitada tomou conta das redes sociais de historiadores na virada de 2019 para 2020. Estava ou não se encerrando uma década?

A polêmica é inusitada porque, a rigor, todo ano se conclui uma década. Uma década sem qualquer outro adjetivo é apenas um período de 10 anos. Imagino que serão eletrizantes os balanços da década que vai finalizar em 2022, iniciada no polêmico ano de 2013.

A polêmica é divertida porque tem origem em uma discussão sobre o calendário gregoriano que rege a contagem de tempo na chamada era cristã. Há muitas outros calendários e formas de contar o tempo em outras culturas e povos, mas nesse calendário, organizado em unidades de cem anos tendo por referência simbólica o nascimento de Cristo, o século “I”  D.C. começa no ano 1 e termina no ano 100, como não poderia deixar de ser.

Todo professor de história ensina a seus alunos que o século XIX começou no ano 1801 e terminou em 1900, o século XX em 1901 e terminou no ano 2000 e o século XXI começou no ano de 2001. Assim, a “segunda década do século XXI”, iniciada em 2011, só terminará no fim deste ano de 2020.  Estarão livres as comemorações e os balanços, ainda que 2011 tenha sido um ano sem graça.

Apesar disso, pelo menos desde o oitocentos, a partir do ano 10 de cada século, as décadas do calendário passaram a ser referidas, sobretudo por historiadores, pela dezena que comanda a sequencia dos anos: décadas de dez, vinte, trinta, e assim por diante.  São recortes de uma beleza poética ou matemática, como preferirem, que passaram a ser privilegiados em textos históricos, jornalísticos ou literários.

Processo semelhante aconteceu até mesmo com os séculos, entendidos apenas como períodos de cem anos. O século XIX, já vimos, começou em 1801 e terminou em 1900, mas os especialistas adoram falar nos “oitocentos”, que abarcam os cem anos que começaram no último ano do século XVIII (1800) e terminaram em 1899.

A força comunicativa  das décadas comandadas pela dezena de abertura acompanha nossas referências à contagem do tempo há muito tempo. As décadas de “noventa” emprestam uma beleza solitária aos anos que fecham cada século  (1800, 1900, …), seguidos de um novo ano 1 – que abre uma nova contagem do tempo, por vezes um novo milênio, como nos anos 1000/1001 e 2000/2001.  Na última passagem de milênio, o mundo celebrou, com razão, duas vezes: o começo do último e solteiro ano de fim de século (2000) e, em seguida, o começo do novo milênio do mesmo calendário (2001).

Escrevo este post para lembrar que o conversa de historiadoras está meio devagar quase parando, mas continua no ar com todos os textos até agora publicados e muita coisa mais em sua biblioteca. Disto isto, arquivo por aqui meu texto de balanço da década de 10 deste século 21 no Brasil, publicado na Folha de São Paulo em primeiro de janeiro do novo ano.

E desejo a todos nós melhores ventos e final feliz nesses novos anos 20!

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Como me tornei historiadora… divulgando a imperdível entrevista de Giovana Xavier ao NEXO JORNAL!

O blog hoje divulga a entrevista de Giovana Xavier, ao NEXO JORNAL, que começa indagando: Como você chegou a essa carreira? O que te motiva? Por que você a escolheu?

GIOVANA XAVIER

Esta é uma pergunta difícil de responder porque ela é resultado de muitas histórias. Fui criada por uma família de mulheres negras que acreditaram e colocaram em prática o poder da educação como instrumento de liberdade e ascensão social. Minha mãe, Sonia Regina (ancestral) foi a primeira da família a cursar a universidade. Isso revela uma característica típica de famílias negras: o investimento na formação de um indivíduo (geralmente o mais novo) como projeto de liberdade e transformação coletivo. Essa marca, sempre presente nas histórias que hoje escuto meus estudantes pretos contarem, é um saber que temos aprimorado como comunidade negra e que evidencia os limites da meritocracia como conceito que dê conta de explicar as oportunidades desiguais que recebemos a depender de quem somos em termos raciais, de gênero, de classe, sexualidade. Então posso dizer que o fato de ter sido socializada em um matriarcado que acreditou que eu poderia ser quem eu quisesse, estimulando-me a ler, escrever, aprender outros idiomas, motivou-me a transgredir, indo além do destino esperado para as meninas negras do Brasil: o trabalho doméstico, ramo em que inclusive trabalhei por um tempo, quando fui arrumadeira de pousada na Ilha Grande na adolescência. Meu primeiro trabalho foi aos 11 anos, entregando panfletos “Vendo Ouro” na ponte do subúrbio do Méier, no Rio de Janeiro, onde fui criada. Até hoje tenho pavor de receber esses papéis, por saber das violências e perversidades que rodeiam a juventude que desde cedo tem de se virar, encarando a rua como local de trabalho. Essas experiências de inserção no mercado informal somadas à oportunidade de ter estudado em uma escola branca de classe média me geraram um ponto de vista denso sobre como estar em dois mundos e, do interior deles, criar o meu próprio. Acho que esta tem sido minha busca pelo “caminho de casa”, para usar a expressão marcante da escritora ganense Yaa Gyasi. Na linha “força, foco e fé”, pergunto-me diariamente: como, na condição de mulheres negras, podemos e devemos reivindicar a intelectualidade, construindo um universo para chamar de nosso, dentro e fora da academia? A história, enquanto matéria dedicada à interpretação de processos sociais e à construção de identidades individuais e coletivas, oferece ferramentas para responder à minha pergunta. Entretanto, estamos falando ao mesmo tempo de uma disciplina que contradiz minha própria motivação se considerarmos que ela foi criada a partir de uma lógica branca, masculina e eurocêntrica. As ferramentas da história e da academia como um todo precisam ser empretecidas na forma de uma ciência para o negro, conforme sinalizado pelo sociólogo Eduardo Oliveira e Oliveira e pela historiadora Beatriz Nascimento nos anos 1980. Entendendo-me como continuidade, essa é minha missão, definida por meus ancestrais. É isso que me motiva a seguir fazendo ciência, diariamente.

Para a íntegra da entrevista: https://www.nexojornal.com.br/profissoes/2017/10/16/Como-me-tornei-historiadora-e-a-vida-entre-livros-arquivos-e-salas-de-aula

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“Não vamos mais caber!”

Com essa frase, David Alfredo e Luis Araújo, dois jovens negros, marcaram o estribilho do texto que leram na abertura do evento Vivências do Tempo: Matriz Africana, no Museu do Amanhã, situado na zona portuária do Rio de Janeiro. O documento, escrito por eles, foi nomeado como Manifesto Baobá e apresentado no dia 24 de junho de 2017, antecedido pelas danças e cantos do Jongo da Serrinha, no espaço de entrada do museu. Esse foi um dia de festa na Praça Mauá, em frente da qual fica o museu, que foi ocupada antes, nesse mesmo dia, pelo Afoxé Filhos de Gandhi homenageando Mãe Beata e o Jongo da Serrinha lembrando nossas raízes africanas e saudando São João, entre outras presenças e lembranças.

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Jongo da Serrinha em frente ao Museu do Amanhã, na abertura do evento Vivências do Tempo: Matriz Africana, em 24 de junho de 2017

O Manifesto reivindica territórios a serem conquistados e ocupados pela juventude negra, e lembra o reduzido espaço que lhe foi destinado, o não-lugar que lhe coube historicamente. Declara: “Estamos transbordando os limites, rompendo as barreiras, fissurando os muros…” Traz a memória da dor “em cada gota de suor que cai da pele negra cansada de esforço de pesar uma tonelada e valer muito menos no mercado. ” E afirma que “No pranto de cada mãe, que enterra um filho, no som de cada tiro que leva a vida, no afiar de cada faca que desce o morro, no choro de cada criança que nasce, é possível escutar: Não vamos mais caber!

Não mesmo.

Em recente visita de trabalho realizada à Universidade Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira – UNILAB, no Campus dos Malês, em São Francisco do Conde – Bahia, meus olhos se encantaram com a vida pulsante nas salas de aula, corredores e espaços comuns daquela instituição acadêmica. Criada no primeiro governo Lula, assinalando desde seu início uma identidade singular e marcadamente plural, tendo como política universitária o estímulo e apoio à presença de estudantes africanos dos países de língua oficial portuguesa. Uma experiência única e fundamental para o Brasil, que deveria ser cada vez melhor compreendida e estudada – e certamente apoiada, garantida em sua continuidade e expansão. Em que outro lugar do país se pode encontrar uma maioria absoluta de estudantes negras e negros e escutar os muitos sotaques do Português falado em África e línguas crioulas do continente, somadas aos falares brasileiros com diversos acentos, sobretudo, do Nordeste? E no dia da África, em 25 de maio, realizarem uma festa trazendo a junção de muitas sonoridades e movimentos, dos diferentes instrumentos, das cores de roupas e adornos, e os músicos de RAP das áfricas e brasis que, nas suas idas e vindas, (re)encontraram seus ritmos e poesias?

 

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Festa do dia da África, celebrada por estudantes africanos e brasileiros com muita música e dança, na UNILAB – Campus dos Malês, São Francisco do Conde – BA, em 25 de maio de 2017

Novas realidades vem surgindo. Atravessam os muros, enriquecem e iluminam o cenário enrijecido e obscuro de espaços tradicionalmente brancos e elitistas. Surpreendem às vezes, jovens negras e negros, por sua força, altivez e autonomia. Há quem os esperasse agradecidos – como, e por quê? Certamente sabem que aquilo e quem lhes sustenta não está lhes esperando do lado de dentro. Mas, muitos reconhecem que há aliados, e que houve desbravadores, pioneiros. Nada disso se fez e se faz sem histórias que vêm de longe. Mas, o que de novo há é que nos últimos anos a onda negra cresceu e vem vindo, lavando com sua força, como uma bênção, as praias antes restritas do saber e do (re)conhecimento. Como disse o Manifesto: vem ocupando os espaços, desconhecendo os limites que lhe foram impostos. Ainda bem.

Assenhorear-se de novos territórios pode significar também estabelecer regras e cuidados com nossa história e memória, pressionando e dialogando no sentido de fazer respeitar o que nossos ancestrais viveram e a forma como queremos que tudo isso seja lembrado. Nesse sentido, um dos resultados é o evento que se realizará no próximo dia 1º de julho e faz parte do TAC (Termo de Ajuste de Conduta) da  Fazenda Santa Eufrásia, inaugurando novas conversas sobre o turismo de memória no Vale do Café, no estado do Rio de Janeiro.

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Tudo indica que essas conquistas podem fazer dos brasileiros cidadãos melhores, e assim nos fortalecermos em tempos tão difíceis e desesperançados, para lutarmos por nossos direitos: os que conquistamos e os que ainda queremos obter.

Que não caibamos nesse restrito espaço de vergonha pública que querem nos confinar.

Obrigada, David Alfredo e Luis Araújo. Viva o Manifesto Baobá!

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Dossiê Conversa de Historiadoras Negras – Cotas na Unicamp Já!

Na próxima terça-feira, dia 30 de maio de 2017, o Conselho Universitário da Unicamp decidirá a respeito da adoção das cotas raciais no sistema de ingresso dos seus cursos de graduação. A mobilização está intensa e animada. Já nesta segunda-feira, 29, será realizado um Festival/Ato pelas Cotas, que contará com a participação de ativistas, artistas e demais membros da comunidade acadêmica.

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O Blog Conversa de Historiadoras se soma à essa onda contra o racismo e, portanto, em defesa da democracia, apresentando hoje um papo coletivo preto, o Dossiê Conversa de Historiadoras Negras − Cotas na Unicamp Já!, escrito por quatro mulheres que estiveram e/ou estão na Unicamp como discentes e docentes: Ana Flávia Magalhães Pinto, Giovana Xavier, Lucilene Reginaldo e Taina Aparecida Silva Santos.

 

“Enxugando gelo”: as cotas em debate na Universidade Estadual de Campinas

Lucilene Reginaldo, Professora do Departamento de História – Unicamp

Na próxima semana, no dia 30 de maio, o Conselho Universitário da Unicamp irá discutir e votar uma proposta de mudança na sua política de ação afirmativa para o ingresso nos cursos de graduação. Desde 2004, a universidade adota um modelo de bonificação com acréscimo de pontos na nota do vestibular aos estudantes oriundos de escolas públicas e autodeclarados pretos, pardos e indígenas. Entre as críticas recebidas pelo programa, destaca-se o impacto diminuto da política no tocante ao ingresso de negros (pretos e pardos) e indígenas. A insistência e ressonância destas críticas na comunidade acadêmica – e penso que tão somente elas – foram responsáveis por algumas mudanças significativas no sistema de bonificação que, entre outras consequências, conseguiu elevar o número de estudantes negros ingressantes através do concurso vestibular. Os números, entretanto, continuam abaixo da representação demográfica da população negra no estado de São Paulo e não impactam de maneira semelhante todos os cursos.

A proposta a ser votada nos próximos dias tem como principal subsídio o relatório do grupo de trabalho – reivindicado e instituído com a responsabilidade de organizar três audiências públicas no segundo semestre de 2016 – formado por representantes das organizações que pautaram o tema das cotas na paralisação estudantil (Frente Pró-Cotas e Núcleo de Consciência Negra), professores e funcionários.  Em síntese, e à luz de amplo debate sobre o papel da universidade pública no combate ao racismo e às desigualdades sociais, bem como de uma avaliação minuciosa das experiências de implementação de cotas, o que se propõe para Unicamp é uma política de reserva de vagas (cotas) informada por critérios sociais e raciais.

Cotas - Audiências

Primeira Audiência – Cotas e ações afirmativas: perspectiva histórica e o papel da Universidade Pública no Brasil, 13.10.2016. Fonte: Jornal da Unicamp 

Desde fevereiro, o relatório e proposta inicial do GT têm sido amplamente discutidos em diferentes espaços da Unicamp, tendo encontrado em alguns momentos resistências mais ou menos sistemáticas. Levada pelo movimento e pela força da condição e das circunstâncias – se assim posso dizer – como membro do GT que elaborou o relatório, tenho participado de vários debates com diferentes grupos e em várias unidades, atravessando inclusive a “confortável e previsível” fronteira das ciências humanas, conversando com professores, alunos e funcionários da área de saúde, das engenharias, das ciências exatas. Embora em muitos momentos tenha me sentido teletransportada para os acalorados debates ocorridos entre 2002 e 2006 – o que obviamente nos remete ao franco atraso e à resistência da Universidade de Campinas, em particular, e das universidades paulistas em geral, em relação às políticas de ação afirmativa baseadas no princípio das cotas – o debate atual tem algo de contemporâneo. Assim, mesmo a reprodução dos velhos argumentos, quando repostos no momento político atual, redimensiona e atualiza as antigas resistências.

Confesso, com certa hesitação, a recorrência de certos argumentos pôs à prova minha considerável paciência e capacidade de argumentação! “Ninguém sabe quem é negro no Brasil”. “As cotas colocarão em perigo os centros de excelências”. “As cotas enxugam gelo! Precisamos melhorar o ensino básico”. Diante destes argumentos a apresentação de dados que demonstram as desigualdades raciais no tocante à renda, educação, saúde e segurança, amplamente divulgados e debatidos há décadas, os estudos e avaliações que atestam o desempenho positivo dos cotistas e os resultados acadêmicos da diversidade, bem como as limitações das políticas universalistas no combate às desigualdades raciais, nem sempre foi bem sucedida.

Sem muita precisão metodológica, arrisco identificar uma face coletiva neste conjunto de argumentos. Nas entrelinhas da argumentação de impossibilidade de uma política de acesso ao ensino superior que defina metas e priorize os grupos que estão sub-representados ou ausentes na universidade pública se revela a defesa da manutenção de privilégios que não são jamais questionados na sua natureza histórica. Desse modo, a defesa do centro de excelência tem por suposto a universalidade de uma elite científica e intelectual. Diante das reticências deste grupo, cujo desconhecimento – proposital ou contingente – do histórico de implantação das cotas no Brasil frequentemente remetia a discussão à estaca zero, os versos de BNegão foram evocados como consolo: “Sigo na batida, a frequência desse pensamento não pode ser captada com perfeição por um receptor enferrujado pelos padrões do dia-a-dia/Enxugando o gelo, sua realidade segura por um fiapo de cabelo”.

É certo que o debate sobre as cotas extrapola os muros dos centros de excelência – o que não é nenhuma novidade – mas, de certa forma, singularmente se recoloca no contexto político atual. Políticas de ampliação da cidadania, o que quer dizer, direitos políticos, acesso aos bens materiais e de prestígio são inadmissíveis para a pequena parcela de privilegiados da sociedade brasileira. Desde a minha “área de conforto”, ou seja, olhando para o passado, não tenho dúvidas de que a interpretação é pertinente. Mas o que realmente me preocupa neste momento são as consequências desta pertinência para o futuro da nossa fragilizada democracia.

Cotas Já − Para que uma reunião de estudantes negros/as não seja convite para piada sobre quilombo?

Ana Flávia Magalhães Pinto, pós-doutoranda e doutora em História pela Unicamp

Considerada a segunda melhor universidade da América Latina, pelo QS University Rankings, a Unicamp se orgulha de ser uma referência na pesquisa acadêmica no Brasil e manter “a liderança entre as universidades brasileiras no que diz respeito a patentes e ao número de artigos per capita publicados anualmente em revistas indexadas na base de dados ISI/WOS”. Vendo através dessas lentes, mesmo que a instituição não esteja entre as cem melhores do mundo, estaríamos legitimados a falar tranquilamente sobre qualidade e excelência. Todavia, é o atraso da Unicamp que a torna digna de atenção no atual cenário. Um atraso perante a democracia, que também poderia ser visto por meio de números, mas que é facilmente percebido nas salas de aula e nos espaços abertos da universidade.

A presença de estudantes negros (pretos e pardos) nos cursos de graduação segue sendo empiricamente tímida, a despeito do que dizem as estatísticas divulgadas nos resultados de vestibular e dados de matrícula. Diante desse fato, a dificuldade e a demora da Unicamp, como instituição, em reconhecer o maior impacto das políticas de cotas em relação a outras políticas de ação afirmativa voltadas ao enfrentamento das desigualdades sociorraciais, como o PAAIS, a colocam em situação de atraso e nos obriga a seguir fazendo um debate recuado em relação ao que se encontra bastante avançado em outras universidades brasileiras.

Sindicato de Empregadas Domésticas Campinas

Sindicato das Empregadas Domésticas de Campinas em apoio à implementação das cotas na Unicamp. Fonte: Núcleo de Consciência Negra da Unicamp.

A despeito de toda a disputa discursiva, ideológica, política etc. que se vivenciou desde pelo menos o início dos anos 2000, a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), de 26 de abril de 2012, projetou a discussão para um outro nível. Ou seja, quando a suprema corte julgou improcedente a ação movida pelo partido Democratas (DEM), em 2009, contra o programa de ingresso de estudantes negros da UnB, reconheceu a constitucionalidade das políticas de cotas raciais nas universidades, e as considerou como medidas necessárias para corrigir o histórico de discriminação racial no Brasil; uma etapa decisiva foi cumprida, tendo como desdobramento imediato a promulgação da Lei n. 12.711, de 29 de agosto 2012, e a posterior Lei n. 12.990, de 9 de junho de 2014, que versa sobre a reserva de vagas em concursos públicos.

A lei federal, por certo, não rege o funcionamento de universidades estaduais, como a Unicamp, o que faz com que as coisas tenham aqui uma trajetória particular. E, por falar em particularidades e generalidades, às vésperas da votação pelo Conselho Universitário da proposta de incorporação das cotas raciais na política de acesso à graduação, me peguei pensando sobre episódios corriqueiros que ajudam a entender como o atraso desta universidade pôde ser não apenas tolerado, mas também tomado como marca de prestígio. As cenas não se limitam a registros de dor, mas mesmo as demonstrações de afeto e solidariedade estabelecidas por nós, pessoas negras, estão infelizmente conectadas a violências, porque funcionam como mecanismo de defesa e reação a hostilidades.

Logo que ingressei na Unicamp para cursar o doutorado, em 2009, achava um barato ser cumprimentada por funcionários/as negros/as que reconheciam com facilidade a novidade da minha presença nas áreas públicas da universidade e me lançavam um sorriso suave e uma faísca no olhar ao passar por mim, gestos de uma cumplicidade silenciosa. O mais divertido era saber que isso acontecia com outros/as poucos/as colegas também negros/as. Da mesma forma, era motivo de festa cada vez que se sabia de um/a estudante negro/a aprovado/a no processo de seleção de qualquer programa de pós-graduação. O costume da exclusão fazia com que as doses homeopáticas de inclusão fossem sentidas como porções cheias.

Essa sensação agradável, porém, logo tinha seu encanto roubado ao fatalmente se adquirir o hábito de ficar apreensiva/o já antes de entrar nas bibliotecas sabendo que, a qualquer momento, mais um/a estudante branco/a poderia te abordar pedindo para que você procurasse algum livro ou prestasse algum serviço pra ele/a. Ou ainda quando um/a colega de curso se mostrava surpreso/a por você dominar mais do que o conteúdo das disciplinas, sobretudo por não entender como isso se casava com sua profunda erudição sobre os “Pagodes Anos 90”, antes de isso se tornar moda entre a galera “cult-bacaninha”. E o que dizer quando um professor, ao avistar um grupo de estudantes negros reunidos em volta de uma mesa pública do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, se aproximou e perguntou com ar de empolgação: “Isso aqui é um quilombo?”.

Os registros do atraso da Unicamp em prejuízo à promoção da democracia no Brasil que poderiam ser feitos por estudantes, funcionários/as concursados/as e terceirizados/as, e os/as poucos/as professores/as negros/as dariam para a edição de muitos volumes, repletos de informações suficientes para evidenciar a fragilidade da excelência da instituição. Isso, aliás, serviria muito bem para marcar a inquestionável legitimidade das políticas de cotas, defendidas hoje por mais gente além de nós negros, ainda minoria nesse espaço. Seja como for, o momento agora é para que posicionamentos sejam tomados. Diante da mobilização que rompe os limites da universidade, no dia 30, saberemos até que ponto a Unicamp gosta de avanço, liderança e bons conceitos.

A luta antirracista e o poder ser: afrontes e a construção de um novo projeto humanista

Taina Aparecida Silva Santos, graduanda em História pela Unicamp

Entre luzes e som, só encontro, meu corpo, a ti. Velho companheiro das ilusões de caçar a fera. Corpo de repente aprisionado pelo destino dos homens de fora. Corpo/mapa de um país longínquo que busca outras fronteiras, que limitam a conquista de mim. Quilombo mítico que me faça conteúdo da sombra das palavras. Contornos irrecuperáveis que minhas mãos tentam alcançar (Beatriz Nascimento, O conceito de quilombo e a resistência cultural negra [1977]. In: Alex Ratts. Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo:Imprensa Oficial, 2006).

 Entre todos os processos que compõem a luta pela implementação das cotas raciais na Unicamp, um especial, tem me chamado muito a atenção, não pelo fato de eu fazer parte disto, mas, sim, pela sensação de sentir-me pertencente ou ligada a algo que muitos outros negros e negras com que partilho esses momentos andam percebendo também. Demarco a experiência desses corpos pretos, primeiramente, pela violência a que o racismo os submetem pelo simples fato de existirem. Essa reflexão é importante, pois, chegado o momento que a discussão tomou grandes proporções a ponto de tornar-se imprescindível que a comunidade como um todo, acadêmica ou não, tomasse posições verbalizadas, silenciosas, favoráveis ou contrárias, acredito que, para aquelas e aqueles de pele escura, essa questão sacudiu nossas identidades pessoais e coletivas. Algo complexo que, ao refletir sobre, me vejo mais desvendando um caminho, um mapa, do qual ainda não sei as fronteiras e nem onde conseguirei alcançar, porém, a cada dia que passa, fica mais evidente que esse mapa são os nossos corpos, como nos lembra Beatriz Nascimento (Cf. Christen Smith. Lembrando Beatriz Nascimento: quilombos, memórias e imagens negras radicais. In: Sidney Chalhoub e Ana Flávia Magalhães Pinto (orgs.). Pensadores negros, pensadoras negras: séculos XIX e XX. Belo Horizonte: Fino Traço, 2016). Corpos que, no contexto em questão e até na experiência da formação de movimentos negros no Brasil e na diáspora, têm constituído um território negro.

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Ato durante a Greve Unicamp, 2016. Fonte: Núcleo de Consciência Negra da Unicamp.

Desde que iniciei meus estudos na Unicamp, em 2014, eu participo de um grupo de negras e negros que se reúne uma vez por semana, durante o horário do almoço, em umas mesinhas que ficam na parte central da Universidade – PB. Ao me aproximar desses estudantes acabei conhecendo os outros poucos negros e negras – estudantes, funcionários e professores presentes nessa ilha branca da cidade de Campinas, que atuavam, circularam ou circulavam em torno do Núcleo de Consciência Negra, outros grupos que tiveram composição e atuação semelhante dentro ou fora da universidade. Conheci, também, pretos e pretas que não fizeram parte de nenhum grupo do tipo, porém, independentemente de cada de nós, 2016 presenciamos algo inédito na história da Unicamp: a universidade parou com a eclosão de uma greve estudantil, na qual a denúncia do racismo tomou proporções incríveis e as cotas raciais junto com a ampliação das políticas de permanência estudantil tornaram-se uma das pautas principais da mobilização.

Protagonizados pelos estudantes negros, os embates para convencer as pessoas de que a violência que aflige as nossas vidas importam foram duros e acirrados, em muitos momentos até dolorosos, pois, se pensarmos na presença negra na Unicamp, esses afrontamentos vêm de muito antes dessa greve. Entretanto, a politização em torno da discussão das cotas que se transformou numa “quizumba”, como diria Lélia Gonzalez, abriram os meus olhos para perceber os significantes dos nossos corpos como territorialidades multilocalizadas em determinados tempos nesse espaço, pois uma série de outros estudantes negros, para além daquele grupo que se reunia todas as sextas-feiras nas mesinhas do PB, ao meio dia, passou a tomar para si essa luta também, tensionando o cotidiano inquestionável a ponto instaurar um clima no qual se deu a entender que situações racistas não passariam mais em branco, nem em silêncio. É certo que nem eu, nem nenhum dos meus colegas invetou a roda da luta antirracista na Unicamp, que isso seja lembrado, em respeito àquelas e àqueles que vieram antes de nós. Porém, muitas conversas “não colam mais”, principalmente àquelas que tentam justificar uma naturalização da nossa ausência em espaços como uma universidade pública que é mantida com nosso dinheiro. Nossas vozes, se multiplicaram e estamos avançando no sentido de nos compreendermos enquanto sujeitos de direito inscritos em corpos que se constituem enquanto territórios políticos.

A mobilização encadeada pela discussão sobre o desprezo que a Unicamp – enquanto reflexo da realidade social, política e econômica brasileira, em especial, paulista – vem alimentando em relação às nossas vidas, logo, também, em relação às políticas de combate ao racismo, evidenciou uma territorialidade para além de um espaço físico, apontando para uma rede entre nossos corpos que conectou os negros e negras que ali estavam. Acabou, também, potencializando a compreensão de uma linguagem entre nós que ampliou a sensibilidade no que diz respeito àquilo que nos fere, o que, também intensificou a altura dos nossos gritos.

Esse processo tem sido curioso, pois a conexão entre nós está longe de se dar no âmbito de uma possível essência. Pelo contrário, esse território é constituído sobre muitas diferenças e contradições que fazem parte do ser. No entanto, todos esses movimentos têm nos mostrado que essas possibilidades causadas pela interrelação entre corpos negros e esse espaço tão hostil indicam a necessidade da reformulação de um novo pacto de humanidade, pois, se é sobre racismo que estamos falando, reconhecer a desumanização das populações negras e indígenas como um dos maiores massacres da nossa sociedade é essencial para compreender a dimensão de um problema que ainda perdura nas nossas vidas.

Sendo assim, não para concluir, mas sim, para passar a bola nesse momento de reflexão que essa luta, entre outras, nos inspira, compartilho as palavras de Abdias do Nascimento:

“Os negros têm como projeto coletivo a ereção de uma sociedade fundada na justiça, na igualdade e no respeito a todos os seres humanos, na liberdade; uma sociedade cuja natureza intrínseca torne impossível a exploração econômica e o racismo. Uma democracia autêntica, fundada pelos destituídos e os deserdados desse país, aos quais não interessa a simples restauração de tipos e formas caducas de instituições políticas, sociais e econômicas as quais serviram unicamente para procrastinar o advento de nossa emancipação total e definitiva que somente pode vir com a transformação radical das estruturas vigentes. Cabe mais uma vez insistir,: não nos interessa a proposta de uma adaptação aos moldes de sociedade capitalista e de classes. Essa não é a solução que devemos aceitar como se fora mandamento inelutável. Confiamos na idoneidade mental do negro, e acreditamos na reinvenção de nós mesmos e da nossa história. Reinvenção de um caminho afro-brasileiro de vida fundado em sua experiência histórica, na utilização do conhecimento crítico e inventivo de suas instituições golpeadas pelo colonialismo e o racismo” (Abdias do Nascimento. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1980).

Corpos Pretos, conselhos brancos: racismo acadêmico e cotas raciais na Unicamp

Giovana Xavier, Professora de Ensino de História UFRJ e coordenadora do Grupo Intelectuais Negras

Recentemente, fui convidada a contribuir com um artigo para o terceiro número do jornal do Coletivo Nuvem Negra da PUC, uma organização incrível de universitários pretos que, dentre outras ações, deram vida à destemida campanha “Quantas Professores Negros a PUC-Rio tem?”, que traz como objetivo a realização de um censo racial da categoria docente na universidade em que estudam. Pois bem.

O grupo de estudantes, nos quais se destacam jovens lideranças como Lucas de Deus e Yasmin Thainá, solicitou-me dedicar algumas linhas ao legado das Intelectuais Negras nas universidades brasileiras, dentre as quais podemos e devemos sempre lembrar de Azoilda Loretto da Trindade, Beatriz Nascimento, Lelia Gonzales, Luiza Bairros para ficarmos com algumas. Para mim, professora universitária que faz questão de explicitar sua raça e titulação através da identidade Preta ‘Dotora’, o convite do Coletivo despertou, além do orgulho e da importância de apoiar as novas gerações, a reflexão do quanto as conquistas alcançadas até aqui são irreversíveis.

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Ato durante a Greve Unicamp, 2016. Fonte: Núcleo de Consciência Negra da Unicamp.

Pensar nessa irreversibilidade, expressa na hashtag #nenhumdireitoamenos, significa também refletir o quanto nossas conquistas têm sido construídas às custas de muitas violências às quais nossos corpos pretos estão submetidos, dentro e fora do espaço acadêmico. Como a conversa aqui é in-academia e pautada por historiadoras Pretas, rememoro algumas das minhas histórias como estudante de doutorado na Unicamp, sempre na esperança de que as palavras lançadas nos fortaleçam e inspirem para a construção de projetos políticos que nos representem.

A primeira delas − um trauma com o qual tive de lidar por muitos anos − refere-se à hostilidade de meus colegas de turma de doutorado quando apresentei meu projeto de pesquisa na linha de História Social da Cultura (Cecult). À ocasião, a investigação focava-se na temática dos concursos de beleza negra em São Paulo nas primeiras décadas do século XX. Até hoje fico a me perguntar: qual seria o problema: a beleza ou o negra? Muitas são as respostas, mas nenhuma delas nos exime de algo com o qual temos de lidar como corpos pretos no mundo acadêmico branco: o preço de ser identificada e interpretada como a exceção do seu grupo racial. Ser exceção na Unicamp fez com que eu passasse quatro horas sujeita a “conselhos” bem intencionados sobre como “escrever melhor”, “procurar temas de pesquisas mais adequados”, “programas de pós-graduação que combinassem mais comigo”. O mais cool de tudo isso é que prestei bastante atenção em todas as dicas. Menos de um ano depois da conclusão do doutorado estava eu concursada e empregada como Professora Adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Namastê!

A segunda história, também passada no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, refere-se a uma situação em sala de aula. Ao realizar uma disciplina obrigatória, o professor, que dentro das contradições que só as elites brancas têm o direito de experimentar, não era muito chegado a lecionar, dividiu o programa de seu curso em seminários, que ficaram sob a nossa responsabilidade. Ao longo de um semestre, cada grupo de pós-graduandos escolhia seu tema, preparava um seminário e apresentava à turma. Um dos grupos, composto por pessoas brancas, em sua maioria com sobrenomes dominados pelas consoantes (o que é autoexplicativo das muitas facetas do privilégio) apresentou-nos a biografia de Primo Levi. Lembro-me que o grupo levou a turma às lágrimas, dadas as tragédias e violências ignóbeis do Nazismo alemão. Recordo também que havia na sala, algumas exceções da pele preta, além de mim. Ufa!

Lá pelas tantas, interrompi o grupo e pontuei o quanto como historiadores deveríamos discutir qual grupo tem o direito de ter sua história interpretada a partir da categoria “holocausto”. Seria oportuno debatermos os diferentes status entre “holocausto” do povo judeu e “genocídio” da população negra. Torta de climão servida, o professor, figura rara nas suas próprias aulas, lembrou-me educadamente que existiam muitos poucos negros nas universidades, por isso as pesquisas sobre escravidão, tráfico e desumanização eram tão escassas. A colega ao meu lado, ostentando suas consoantes, olhou-me de cima a baixo, com a certeza escravocrata de que cada um tem seu lugar e lançou: “se não está satisfeita, faça você mesma pesquisas sobre sua história e sua gente”.

***

Se de boas intenções o inferno está cheio, fica a pergunta: o que seria dos corpos pretos sem os conselhos brancos?

Quando olho para trás e vejo onde chegamos hoje, enche-me de orgulho estar de fora e de dentro de uma Unicamp na qual os lugares da mesa estão sendo bagunçados. A votação, no próximo 30 de maio no Conselho Universitário da Unicamp, sobre a proposta de mudança da política de ações afirmativas para ingresso na graduação, me faz cantar:

Eles querem que alguém / Que vem de onde nóis vem / Seja mais humilde, baixa a cabeça / Nunca revide, finja que esqueceu a coisa toda.

 Não esqueceremos! Afinal, aprendemos com Mãe Beatá de Iemonjá, transformada ontem em estrela, que quantas vezes voltarmos à terra retornaremos Negros.

Mãe Beata

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Notícias da Semana

No papo coletivo de hoje, as historiadoras do blog resolveram comentar alguns aspectos da semana que passou sobre os quais não vale passar batido.

Cotas na Pós-Graduação! (por Hebe Mattos e Mônica Lima)

cotas sim

Nessa última semana de julho, o colegiado do Programa de Pós-Graduação em História da UFF, um dos mais antigos cursos de mestrado e doutorado em História no Brasil, aprovou o edital de Seleção para 2017 com 20% de reserva de vagas para ação afirmativa (negros, indígenas e deficientes físicos).  A decisão foi aprovada no início de julho em reunião de colegiado por ampla maioria e o edital aprovado, por unanimidade, em 27 de julho. A UFF, como universidade, começa também a discutir a questão, já regulamentada na UNIRIO e nas universidades estaduais do Rio de Janeiro. O exemplo do PPGH/UFF, curso de excelência, primeiro do Brasil na área de história a obter a nota máxima (7) de avaliação da CAPES,  é um exemplo que faz diferença. Um edital histórico.

Também o núcleo da UFRJ do Programa de Pós-Graduação em Ensino de História – ProfHistoria aprovou, em recente reunião de seu colegiado, a adoção de ações afirmativas de caráter racial e social para seu próximo processo seletivo. Formado por professores do Instituto de História e da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, inserido em redes local (no estado do Rio de Janeiro) e nacional de programas de pós-graduação, articuladas pelo MEC, a aprovação no núcleo da UFRJ tem um significado especial, pois a universidade é a instituição que ancora o mestrado profissional e que, em outros períodos, reunia em seus seletos grupos de pesquisadores fortes adversários das ações afirmativas.

Em tempos de golpe e retrocesso, as duas decisões têm enorme importância prática e simbólica. Nenhum direito a menos!

Cultura negra e cultura popular ocupando espaços (por Martha Abreu)

Dia 23 de julho, o debate sobre salvaguarda do jongo esquentou a festa no Museu Casa do Pontal – Arte Popular Brasileira. Toninho Caneção, do quilombo de São José da Serra,  e Dyonne Boy, do jongo da Serrinha, mostraram como é importante ocupar os espaços dos museus e das escolas para a valorização dos jongueiros e seu patrimônio. O mesmo desafio, para o caso dos sambistas, foi discutido no dia 30 de julho no Segundo Encontro de Departamentos Culturais das Escolas de Samba organizado pelo Departamento Cultural da Visa Isabel.  A melhor novidade desse último encontro foi perceber a presença de muitos jovens, sambistas e historiadores, investindo na construção das histórias de suas Escolas e buscando estratégias de registro e valorização das memórias de seus baluartes. Fazer cultura e fazer política parece ser um aprendizado consolidado.

Festival da Mulher Afro-Latino-Americana e Caribenha chega à nona edição (por Ana Flávia Magalhães Pinto)

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Se comunicação é poder, não interessa apenas consumir produtos. É importante e estratégico ter o domínio das tecnologias e dos meios, bem como disputar a produção das mensagens e das narrativas a respeito do que temos vivido em sociedade. Com esse entendimento, a nona edição do Festival da Mulher Afro-Latino-Americana e Caribenha adotou o tema “Comunicação” e ocupou diferentes espaços da capital federal, entre os dias 25 e 31 de julho, para refletir sobre experiências do passado, apresentar iniciativas em curso e articular possibilidades futuras. A intensa programação criou ainda condições para o diálogo entre um público bastante amplo, que vai das nossas bem pequenas representantes da “Geração Tombamento” às mais experientes referências do Movimento de Mulheres Negras. Começando na segunda-feira com uma saudação a Exu, orixá da comunicação, na Rodoviária de Brasília, uma encruzilhada da cidade, abriu-se um tempo para se apropriar de debates sobre democratização da mídia, imprensa negra, comunicação pública, construção de redes livres de internet e telefonia celular, canais independentes, educomunicação, além de ouvir e contar histórias, dançar, cantar, poetizar, celebrar a vida e ainda denunciar o golpe, que atenta contra o que foi possível avançar até agora. Em 2017, o Festival Latinidades chegará ao seu décimo ano! Guarde na agenda a semana do 25 de julho, pois a coisa promete!

25/07: Dia Internacional da Mulher Negra Latino Americana Caribenha (por Giovana Xavier)

Uma data a cada ano mais e mais apropriada pelos movimentos sociais para conferir visibilidade às lutas de mulheres negras contra as opressões de gênero, raça e sexualidades. Conectada à máxima dos feminismos negros de que “Nossos passos vêm de longe” para compreender a sua importância vale aqui lembrar o conceito de “amefricana”. Cunhado pela feminista negra Lélia Gonzales, ele alude às origens americanas e africanas como constituintes das identidades de mulheres pretas. Esta perspectiva, nomeada nos anos 1980 pela historiadora negra Beatriz Nascimento de “atlântica” guia-nos para o tempo presente. Um agora no qual destaca-se a II Marcha das Mulheres Negras. Realizada no dia 31/07/16 na Praia de Copacabana, o ato político liga-se à luta pelo direito ao “bem-viver” não apenas de mulheres, mas de todo o povo negro, cotidianamente privado de direitos básicos relacionados à educação, à saúde, ao trabalho. Assim, os trabalhos da última semana do mês de julho foram marcados por muitas atividades em torno das pautas pretas. Destaca-se aí a I Semana Carolina Maria de Jesus: mulher negra e a cultura periférica afro-brasileira, organizado pelas estudantes negras integrantes do Coletivo Carolinas da UERJ. E como uma levanta a outra, a semana que homenageia a histórica líder quilombola Tereza de Benguela, findou-se em grande estilo. Com milhares de mulheres negras de diferentes gerações e perspectivas fincando na areia da princesinha do mar as nossas histórias e reivindicações. Em meio a tantas dores e dissabores, é sempre bonito e pungente ver e fazer parte de um movimento vivo que liga o passado e o presente por meio da presença das “mais velhas” e “mais novas”. Como não podia deixar de ser, malungas como Azoilda Loretto da Trindade, Joselita Souza e Luiza Bairros foram lembradas. Vocês assim como as milhões de mulheres negras espalhadas pelo mundo são visíveis. Presente!

Só a Constituição salva (por Keila Grinberg)

Semana passada, estive na sede da CAPES, em Brasilia, para uma reunião dos coordenadores do Mestrado Profissional em Ensino de História, o ProfHistoria. Qual não foi a minha surpresa ao me deparar com um cartaz no elevador convidando a todos os servidores e colaboradores para uma “reunião especial”, no auditório do 1o subsolo, de 12:30 a 13:30h. O convite era assinado pelo “Grupo de Oração CAPES”. Cheguei atrasada, mas não tinha com que me preocupar: na saída, no mesmo elevador (quem for a CAPES não deve usar as escadas: perde-se muito) outro cartaz convidava a todos para “prestigiar mais uma celebração de fé” no mesmo auditório, de 12:45h às 14h. Desta vez não me atrasei e a cena que presenciei foi a que as imagens mostram: uma igreja católica montada em pleno auditório.

Fiquei surpresa e incomodada com o que aconteceu. Em primeiro lugar, pela cena em si. Uma celebração religiosa em pleno Ministério da Educação. Depois, pelas reações disparatadas de alguns que leram meu post no facebook a respeito. No primeiro dia, divulgando apenas a imagem do primeiro cartaz, escrevi “pode isso?”. Era só uma pergunta retórica, mas muita gente se achou no dever de responder e explicar que sim, podia. Não pode. Para isso temos Constituição, e ela é clara: “É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público” (art. 19, parágrafo 1).

Que fique bem claro: não tenho nada contra religião alguma. Admiro aqueles que têm fé e encontram esperança e sustentação em alguma religião. Justamente por isso, a cena na CAPES é inaceitável. Não se trata de inibir quem quer orar. Trata-se de defender a laicidade do Estado. Só o Estado laico pode garantir plenamente o exercício da liberdade religiosa. Escrevi ao gabinete da presidência da CAPES, expressando meu desconforto e solicitando providências. Recebi a promessa de que serão averiguadas “quais providências poderão ser tomadas sobre o assunto em questão”.

Nestes tempos sombrios, não podemos desgarrar da Constituição um segundo que seja. Só ela salva.

Você já ouviu falar de orixá na escola? (por Mônica Lima)

Uma professora do ensino fundamental de Itaguaí enfrentou o preconceito e trouxe a cultura afro-brasileira para a escola, tocando no sensível tema das religiosidades. Nesse trabalho teve o apoio não só da direção da escola e da secretaria municipal de Educação de seu município como das famílias das suas alunas e alunos – muitas delas católicas ou evangélicas. Viviane Martins planejou um ano inteiro de estudo e atividades integradoras com sua turma de quinto ano. Fez cursos e se preparou para tratar essas temáticas com toda sua inteireza, com meninos e meninas da turma em que é professora na Escola Tereza de Araújo Sagário. Tendo como eixo central a cultura afro-brasileira em seus diversos aspectos (linguagem, conhecimentos de botânica, medicina natural, arte), seus alunos estudaram assuntos inseridos nas diferentes matérias do currículo e terminaram o ano celebrando essas aprendizagens com teatro e dança. Festejaram os cem anos do samba com estilo e ginga e se vestiram de orixás, dançando ao som dos tambores. Os responsáveis pelos alunos, de diferentes matrizes religiosas, aplaudiram e acompanharam o trabalho pedagógico da professora Viviane – que explica esse apoio da seguinte maneira: “Eu expliquei direitinho aos alunos do que se tratava, e eles explicaram aos pais. Quando fui conversar com as famílias, disseram que já tinham entendido, que os filhos e filhas tinham explicado tudo. ”

Uma parte do trabalho da professora Viviane Martins foi apresentado no Salão Nobre no Instituto de História da UFRJ, num evento realizado em parceria pelo Laboratório de Estudos Africanos – LEÁFRICA e o Coletivo de Estudantes Afro-religiosos – AGÔ. Contou com a presença de mães de alunos e alunas da turma da professora Viviane, da diretora da escola e da coordenadora de Educação para a Diversidade Étnico-Racial e da Secretária de Educação do município de Itaguaí. Estudantes universitários, professores da rede pública de ensino, professores universitários estiveram presentes e se encantaram com a apresentação dos alunos e com o relato da experiência. Estavam na mesa desse evento que se chamou “Racismo na escola: perspectivas de enfrentamento”, além da professora Viviane Martins, a yalorixá e antropóloga Rosiane Rodrigues e a Monica Lima – professora de História da África na UFRJ. A sala estava cheia, numa tarde de terça-feira, dia 19 de julho de 2016. Uma aula de respeito, diversidade e beleza

 

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“Pássaro Preto”, por Giovana Xavier e Monica Lima

Mataram um estudante! Podia ser seu filho.

Essa frase, escrita em faixas e cartazes, gritada pela multidão que acompanhou o enterro de Edson Luís de Lima Souto nas ruas da cidade do Rio de Janeiro em março de 1968, sempre esteve em minha memória sobre a ditadura militar – construída não pela vivência, mas pela leitura e estudos sobre esse período da história brasileira. Nas últimas semanas ela voltou, ressignificada, a partir da notícia do assassinato de Diego Vieira Machado, encontrado morto no campus da Ilha do Fundão da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com fortes sinais de violência.

O que têm em comum essas duas histórias? Aparentemente nada, além de serem ambos paraenses, filhos de famílias pobres, terem vindo ao Rio de Janeiro para estudar, e serem negros. Circunstâncias diametralmente distintas e contextos pessoais de morte muito diversos. No entanto, a frase segue ressoando. Podia ser meu filho. Meu irmão. Meu aluno.

Sim, poderia ser meu aluno. Um daqueles que desafiam, instigam e trazem, na atitude e nas ideias, provocações – que devem estar presentes na vida universitária. Um aluno que se propõe, na vida acadêmica e pessoal, transgredir e enfrentar. Artista, lutador, poeta – dizem os relatos daqueles que o conheceram de perto. E segundo consta, aberta e assumidamente homossexual. Nas fotos, vejo e imagino: jovem, negro, forte e belo. Um estudante que não se conformava com o preconceito, que não se curvava aos ditames do chamado “bom comportamento”. Como tantos, ou talvez como poucos.

Essas teriam sido, conforme os indícios trazidos pelo ataque que sofreu, as razões de seu assassinato.  Seriam sinais de um crime de ódio, motivado por homofobia agregada ao racismo, movido pela intolerância – por sua atitude, por sua presença, por tudo que fazia e representava. Diego trazia no corpo as marcas de toda a iniquidade de seus assassinos, como evidências da ânsia sempre assustadora que o preconceito tem em torturar e eliminar “o outro”. Os agentes dessa morte pareciam desejar mostrar, por toda crueldade de sua ação, seu poder de destruição.

Infelizmente não se trata de um caso isolado, já se sabe. Em outros espaços, e em outras universidades brasileiras, tragédias assim ocorrem com frequência apavorante. E, no dia a dia no nosso país, a feiura rasgada do racismo e da intolerância à diversidade na orientação sexual, injuriam, ferem e matam. Calar não é uma opção. Ficar com o sofrimento circunscrito ao interior de si ou às rodas de amigos e redes sociais não consegue dar mais conta do tamanho dessa dor. E ela se amplia com outras dores que se vêm a somar, e junto com a história de Diego, na mesma semana vem Joselita de Souza, trazendo na sua morte as marcas da violência de sua tristeza inconsolável. Os cento e onze tiros no carro onde estava seu filho Betinho e seus amigos atingiram, dias depois, o coração de Joselita. Outra história, tão diferente, tão parecida. E o mesmo final.

Podia ser meu filho.

A cada vez que ouço a frase “o estudante da UFRJ que morreu”, corrijo-a. A retificação não tem a ver com a dicotomia entre certo e errado, mas com o compromisso que devemos assumir na luta por respeito e igualdade a quem vive e à memória de nossos mortos. Diego Vieira Machado não morreu. Ele foi brutalmente assassinado, espancado e encontrado sem calça e sem documentos – conforme relatos. Embora já tenha tempo que aprendemos que violências não se medem, a tragédia da qual ele foi vítima no dia 02/07/2016 é um caso extremo, que não pode ser pensado isoladamente. Ele é parte da história de violências vivenciadas cotidianamente por estudantes negros.

Tais violências são observáveis nas precárias condições das residências estudantis, em atrasos e cortes de bolsas, no escasso número de bandejões, nos empecilhos para obtenção de passes livres, nos currículos acadêmicos, marcados pela negação do direito de acessar o pensamento e o conhecimento científico produzido por autoras e autores negros, nos relatos de situações de humilhação e constrangimento em salas de aula. Tudo isso insere-se no racismo estrutural, que faz com que desigualdades construídas socialmente sejam naturalizadas e normatizadas como problemas inerentes a grupos específicos, hierarquicamente chamados de “outro”.

Se considerarmos que o Brasil é o lugar do mundo que mais mata por homofobia, tiraremos a nossa venda dos olhos. Sem ela, conseguiremos enxergar como eu um país de maioria de população negra, no qual a cada 23 minutos um jovem preto é assassinado, faz todo sentido a frase “Podia ser meu filho ou filha”.

Em memória de Diego Vieira Machado, estudante negro cotista que atravessou o Brasil em busca do sonho de ingressar em uma universidade pública para estudar e foi assassinado no principal campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro, seguiremos mais vivas trabalhando para o “inesperado”.

Sou pássaro preto
estendo as minhas asas
coloco fogo na dor
espalho as cinzas pelo meu corpo
forjo uma pele nova a cada momento
jogo as cinzas ao vento
e voo
águia negra
a ressuscitar diante de qualquer tempestade
mais forte
mais célebre
mais viva
espere o inesperado…

(Espere o inesperado, de Cristiane Sobral)

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Fogo no Canavial! Dossiê 13 de Maio

Uma Data Para Refletir e Celebrar/ por Hebe Mattos

O blog conversa de historiadoras não poderia deixar o 13 de maio passar em branco. Desde que combinamos a atual sequência de artigos, programamos, para este domingo, um dossiê com pequenos textos de todas nós refletindo sobre a data. No contexto político atual, porém, refletir sobre este 13 de maio em que se comemora 128 anos da abolição legal da escravidão no Brasil ganhou um significado ainda mais especial.

O título do dossiê vem de um post da historiadora Wlamyra Albuquerque em sua página no facebook, que eu peço licença para citar:

7 homens brancos perfilados no poder. É 13 de maio. Uma multidão rodeava José do Patrocínio. Era 13 de maio de 1888. No ar, o cheiro de canaviais queimados no Recôncavo baiano por ex-escravos apontava o alvo, os senhores brancos poderosos. Ontem, eram só 80 mil com o brilho nos olhos e sangue rebelde nas ruas. A juventude nos lidera. Em 1888, uma multidão gritava que a abolição foi conquista negra. Patrocínio alertava: a bandeira da liberdade está sempre em risco. Hoje é o treze de maio de luta. A bandeira da liberdade segue carregada pela juventude negra, pobre, feminina, LGBT e guerreira. Se a luta é antiga, a batalha é pra hoje: treze de maio de 2016. Fogo nos canaviais!

O post de Wlamyra está compartilhado no grupo Historiadores Pela Democracia. Criado por iniciativa do blog como forma de resistência ao atentado à democracia que estamos vivendo, já conta com mais de mil participantes. Também eu registrei a importância da desobediência civil dos libertos para que o 13 de maio de 1888 acontecesse e me emocionei com uma imagem compartilhada nas redes sociais.

Desobediência civil

Arte: Moisés Patrício

Mas 13 de maio de 2016 não foi apenas um dia de resistência democrática. Foi um dia de tristeza para todos os brasileiros e, em especial, para os descendentes dos últimos libertos do Brasil, a geração dos 13 de maio. Alguns de seus netos ainda vivos, como Manoel Seabra do Quilombo São José, viram o novo governo interino e ilegítimo interromper com uma canetada a política de titulação de terras quilombolas pelo INCRA. Impossível não evocar uma outra simbologia também fortemente ligada à data da abolição, sua incompletude.

“O 13 de maio marca o fim formal da escravidão no Brasil. Processo cujo desfecho é similar ao que vivemos hoje: rebote conservador depois de maré reformista”, escreveu Ângela Alonso, em outro post.

O 13 de Maio terá sempre múltiplos significados, por isso é uma data tão rica para pensarmos o presente. Dia da maior reforma social e política do Brasil, a aprovação da chamada Lei Áurea tornou ilegal uma instituição infame que estruturou por três séculos a história da colonização portuguesa na América e a construção do primeiro estado nacional brasileiro. O dia 13 de Maio deixou de ser feriado no Brasil, mas se tornou o Dia dos Pretos Velhos nas tradições religiosas afro-brasileiras. Dia de festa, dia de luta contra o racismo, dia de reflexão, dia de celebração.

Treze de Maio também é dia de negro! / por Ana Flávia Magalhães Pinto

A Gazeta de Notícias, em 14 de maio de 1888, informava a seus leitores:

“Reuniram-se anteontem, a convite da Sociedade Cooperativa da Raça Negra, os delegados de diversas corporações de descendentes da mesma raça, a fim de deliberarem sobre os meios de agradecer àqueles que trabalharam para o acontecimento glorioso que, para honra de nossa pátria, completou-se sem a menor perturbação na ordem pública, e resolveram nomear uma comissão executiva dos festejos, que apresentará o programa destes, sendo um deles um Te-Deum na igreja da venerável irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito”.

Efetivamente, para além do que aconteceu no interior do Paço Imperial, não foram poucas as pessoas que se encheram de expectativa sobre o futuro nos dias que antecederam e sucederam o 13 de maio de 1888. Mais do que isso, na contramão de várias versões construídas ao longo do tempo, não foram poucas as mulheres e homens negros que estavam nas ruas ou que foram nelas lembrados como responsáveis pela chegada ao momento da assinatura da lei que extinguia formalmente a escravidão no Brasil. Entre lembrados e esquecidos atualmente, sobressaíam-se Luiz Gama, Ferreira de Menezes e José do Patrocínio, por exemplo.

Abolicionistas

Arte: Vitor Epifãnio, 2015.

Aspecto central da minha pesquisa de doutorado, o interesse por essa presença negra nas lutas abolicionistas, entretanto, me foi despertado por uma espécie de afirmação da ausência sugerida em falas de pessoas um pouco mais velhas como forte justificativa para a defesa do 20 de Novembro, visto como uma data mais legítima para simbolizar as lutas contra o racismo e a discriminação racial no país. A denúncia da “falsa abolição” – bastante documentada pelo Acervo Cultne − levava muita gente do final do século XX a dissociar aquele ato do governo imperial da ação política negra. Entre os vários registros em que esse discurso aparece, a contar do fim dos anos 1970, destacaria ainda as músicas produzidas por compositores e grupos afros. Martha Rosa Queiroz, na tese em que problematiza a dicotomia entre cultura e política no fazer das organizações negras pernambucanas entre 1979 e 1995, cita uma série de exemplos, entre os quais “Dia de Negro”, música de Zumbi Bahia, para o Bloco Quilombo Axé:

“Irmãos e irmãs assumam sua raça assumam sua cor/ Essa beleza negra Olorum quem criou/ Vem pro Quilombo Axé dançar em nagô/ Todos unidos num só pensamento/ Levando à origem desse carnaval/ Desse bloco colossal/ Pra denunciar o racismo/ Contra o apartheid brasileiro/ 13 de Maio não é dia de negro/ 13 de Maio não é dia de negro/ Quilombo axé, colofé, colofé, colofé, Olorum”.

Em face desse aparente choque de temporalidades, penso que fazer o papel de juiz/a das razões e estratégias adotadas por ativistas negros/as − que naquele momento intentavam promover o desmonte do mito da democracia racial e, ao mesmo tempo, reposicionar o lugar de africanos e seus descendentes na história nacional − não figura como a melhor opção para quem está interessado/a na compreensão das experiências negras numa perspectiva histórica. Sobretudo neste momento em que julgamentos ilegítimos de natureza comum conduzem o país mais uma vez a cenários trágicos.

Afinal, pelo menos ainda é consenso entre historiadores/as que a abolição, seguida de uma série de manobras que inviabilizaram um debate sério sobre a formulação de políticas de apoio ao trabalhador nacional, mantém-se como um tema que desperta interesse justamente por estar repleta de conflitos. Por outro lado, como sabiamente me disse Luiza Bairros, referência do movimento negro e de mulheres negras, numa dessas conversas que impulsionam uma vida inteira: Nós não tínhamos elementos para fazer uma outra leitura do 13 de Maio. A recuperação dessa outra história está nas mãos de vocês que estão chegando às universidades em maior quantidade e num outro cenário – tal como me recordo.

Por isso, neste 13 de Maio de 2016, marcado pela entrega da demarcação das terras dos remanescentes das comunidades quilombolas nas mãos do deputado José Mendonça Bezerra Filho (DEM-PE), agora ministro da Educação e Cultura; e pelo início do Encontro Nacional de Estudantes e Coletivos Universitários Negros (EECUN), na UFRJ, eu preferi alimentar minha aposta de que, em se tratando de história do Brasil, não dá para abrir mão de toda e qualquer experiência de resistência empreendida pelos vários segmentos populacionais subalternizados no Brasil. Sendo assim, não dá para deixar o dia passar em branco, sem dizer que “Treze de Maio também é dia de negro”! E para embalar essa celebração da memória de luta, nada melhor do que os versos de Seu Wilson Moreira e Nei Lopes, em seu “Jongueiro Cumba“: “O dia tanto treze quanto vinte / Avia que o negócio é o seguinte: / Um é feriado novo / O outro é de todo esse povo / Vamos os dois festejar”.

É uma questão política, como insiste o orador/ Por keila Grinberg

“A questão não é de sentimentalidade, é uma questão política, insiste o orador. Com finanças já arruinadas, com uma dívida publica que vai crescendo a passos agigantados, com as fontes de produção ameaçadas, é preciso que os representantes da Nação sejam mais cautelosos. Abra-se o relatório do Ministério da Fazenda, vejam-se os balanços do Tesouro, coteje-se a renda arrecadada nas alfândegas, visto que os nossos tributos consistem quase que exclusivamente em direitos de exportação e direitos de importação. Encontram-se aí lições eloqüentes.”

 O orador em questão é o deputado Andrade Figueira. O discurso foi proferido em 9 de maio de 1888. A cautela que ele recomendava? A iminente e imediata abolição da escravidão, grande problema para os lavradores de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. Melhor ter cautela, argumentava ele, já que dois terços das rendas públicas destas províncias, as mais produtivas do país, eram baseadas no trabalho escravo. “Quer-se agora extinguir tudo isso: já pensou no resultado que este acontecimento acarretará para as rendas públicas?” Andrade Figueira votou contra a aprovação da lei que extinguia a escravidão. Defendia a indenização aos proprietários de escravos. E queria ainda que o governo os ajudasse, criando uma linha de crédito para se adaptarem aos novos tempos do pagamento de salários, não fazendo sofrer, assim, “a produção nacional e as rendas públicas em sua marcha ascendente. Mas querer destruir sem edificar é expor a pátria a um grande perigo!”, alertava Figueira. “É expor o crédito público, que está comprometido por somas importantes nas praças estrangeiras e por contratos solenes com companhias estrangeiras, a azares perigosos.”

Qualquer semelhança entre o nobre deputado e aqueles que hoje defendem retrocessos nas conquistas sociais em nome do equilíbrio nas contas públicas e da defesa dos interesses privados não é mera coincidência. Mas veio o 13 de Maio e a História reservou lugar de honra a Figueira: o esquecimento. Que o destino reservado a seus tataranetos políticos seja o mesmo. Afinal, dentre os membros da Câmara dos Deputados daquele célebre maio de 1888, de quem você já ouviu falar? Andrade Figueira ou Joaquim Nabuco?

Sexta-feira 13 (DE MAIO)/ por Giovana Xavier

São conhecidas as disputas pela memória oficial da abolição da escravatura no tempo presente, disputas estas simbolizadas pela contraposição entre o 13 de Maio, data de assinatura da Lei Áurea pela Princesa Isabel, e o 20 de Novembro de 1695, dia em que Zumbi, líder do quilombo dos Palmares foi morto lutando pela liberdade sua e dos palmarinos. Tal guerra de narrativas entre o 20 e o 13 iniciou-se em debates travados no âmbito do recém criado Movimento Negro Unificado no fim dos anos 1970, conforme pontuou Ana Flavia Magalhães Pinto em seu post. Particularmente, acho que o 13 de Maio é um dia que também deve ser reconhecido como parte das nossas lutas, afinal de contas a abolição foi feita à base de muita “raça” e ativismo de pessoas negras que recusaram até o fim a condição de escravizadas. Além disso, a despeito de todos os limites e imprecisões que a ideia de liberdade carrega em seu bojo, o 13 representa um marco. Daquela data em diante, as categorias senhor e escravo deixaram de existir do ponto de vista jurídico, embora na prática ainda hoje sejam reatualizadas através de processos de racialziação que naturalizam hierarquias socialmente construídas entre negros e brancos não somente no Brasil, mas em todas as sociedades pós-escravistas. Em meio a esta guerra de narrativas, foi muito significativo ter participado da mesa solene “Fortalecer para Permanecer: Uma permanência estudantil para muito além de moradia e alimentação” do I Encontro de Estudantes e Coletivos Negros Universitários, sediado na UFRJ, justamente no dia 13 de Maio de 2016. Falar com mais de 1.500 jovens negros, com tonalidades de pele, texturas de cabelos, sexualidades, gêneros e classes plurais, leva-nos a pensar que estas juventudes negras têm nos ensinado – na prática – a lutar por sentidos de liberdade que deem conta das nossas experiências como pretxs.

EECUN- geral

Fonte: Página do EECUN no Facebook

Autônomo e organizado sob os princípios da auto-gestão, o EECUN possui uma estrutura que abarca dezenas de coletivos universitários negros espalhados por todo o Brasil, dentre eles, o respeitado Coletivo Negro Carolina Maria de Jesus (UFRJ), conhecido por suas articulações entre academia e movimentos sociais como o Reaja ou Será Morta, Reaja ou Será Morto e também, não menos importante, pelo diálogo horizontal com o Sindicato das Trabalhadoras Terceirizadas da UFRJ, com que as e os integrantes do coletivo como Caroline Amanda Lopes Borges, Nayara Silva e Denilson Souza mantêm estreita relação, fazendo aflorar não apenas sentidos de ativismo que articulam classe, raça, gênero e geração, mas também distinguindo-se das estruturas clássicas dos movimentos estudantis (DCE e Centros Acadêmicos), com pouco espaço para diálogos com as classes trabalhadoras. Na sexta-feira 13 do EECUN, viajei para longe, lembrando-me da Missa da Abolição narrada por ninguém menos que Lima Barreto:

Estamos em maio, o mês das flores, o mês sagrado pela poesia. Não é sem emoção que o vejo entrar. Há em minha alma um renovamento; as ambições desabrocham de novo e, de novo, me chegam revoadas de sonhos. Nasci sob o seu signo, a treze, e creio que em sexta-feira; e, por isso, também à emoção que o mês sagrado me traz se misturam recordações da minha meninice. Agora mesmo estou a lembrar-me que, em 1888, dias antes da data áurea, meu pai chegou em casa e disse-me: a lei da abolição vai passar no dia de teus anos. E de fato passou; e nós fomos esperar a assinatura no Largo do Paço.

Foto da Missa Campal

Missa campal celebrada em ação de graças pela Abolição da escravatura no Brasil”. Antonio Luiz Ferreira, 1888”.

Enquanto pensava na narrativa de Lima Barreto, olhava para aquela plateia repleta de estudantes negros, ciosos por darem continuidade à escrita de suas próprias histórias. Saltou-me aos olhos uma delas, com seu casaco preto escrito em letras garrafais brancas “Mães de Maio”, uma referência ao movimento de mulheres que perderam seus filhos em razão da violência policial e da naturalização do genocídio da população negra em São Paulo. Como não pensar nos dizeres no agasalho em conjunto com a frase ostentada na legenda a uma das imperdíveis fotos do encontro?

13 de maio, dia nacional de luta contra o racismo.
Que esse 13 de maio seja lembrado como o dia de luta do EECUN – Encontros Nacional de Estudantes e Coletivos Universitários Negros.
Um dos grandes passos pra uma verdadeira abolição.

Agora mais do que nunca, precisamos ouvir e aprender com as Mães de Maio quando elas dizem “escrevemos na guerra”. Em tempo: Feliz 13 de Maio!

Mães de MaioFoto: Carta das Mães de Maio da Democracia Brasileira a Presidente Dilma Vana Roussef (à esq. a Presidenta Dilma Rousseff, à dir. Debora Silva Maria)

O 13 de maio e os olhos do mundo/ por Mônica Lima

De um lado e outro do Atlântico se celebrou a assinatura da lei de 13 de maio de 1888. A abolição da escravidão no Brasil foi festejada naquele ano durante vários dias na cidade de Lagos, na atual Nigéria, na África Ocidental. Solenidades com discursos de importantes personalidades, cerimônias religiosas e um grande baile marcaram o início das comemorações oficiais, seguidas por diversas celebrações com queima de fogos, uma sessão teatral, apresentações musicais, um desfile de carnaval e um baile à fantasia. Nas ruas, praças e igrejas de Lagos a população se reuniu para cantar e dançar a abolição da escravidão no Brasil. Diversos jornais locais como o Lagos Observer destacaram e saudaram a lei por meio de artigos e editoriais. Destacaram a importância do fim da escravidão para as populações da África, para a paz e boas relações com o nosso país. Essas e outras histórias que remetem ao significado da lei são narradas, a partir de pesquisa em periódicos lagosianos, na excelente tese de doutorado sobre a comunidade de brasileiros em Lagos recentemente defendida na USP pela historiadora Angela Fileno da Silva.

Não foram somente os africanos a saudar a abolição da escravidão no nosso país. Outros jornais de diferentes partes do mundo, especialmente na Inglaterra, noticiaram a medida e a celebraram, reconhecendo como um marco para um outro Brasil no cenário mundial. Hoje, cento e vinte e oito anos depois, são outros os destaques da imprensa internacional sobre o Brasil. Aparecemos como um país em que um grupo de políticos corruptos fez aprovar sem nenhuma base consistente, num visível e ardiloso golpe, o processo de impeachment contra uma presidenta eleita com 54 milhões de votos e que promovera políticas públicas progressistas e dirigidas à população mais carente – que, no nosso país é sobretudo negra.

A lei de 13 de maio de 1888 resultou da ação do movimento social abolicionista e da luta de escravizados e de libertos que, com atitudes e argumentos, pressionaram e criaram diversas situações de rebeldia, em ações coletivas e individuais. Fugas, formação de quilombos, rebeliões e campanhas públicas fizeram da abolição uma causa de muitos e um desejo da maioria. Juntamente à campanha internacional abolicionista, tornaram insustentável a continuidade do cativeiro no Brasil. As narrativas das experiências de africanos escravizados que conseguiram a liberdade, quando divulgada nos meios da época, causava comoção e contribuía para aprofundar o forte apelo da onda abolicionista.

 https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/c/c8/Biography_of_Mahommah_G._Baquaqua.jpg/220px-Biography_of_Mahommah_G._Baquaqua.jpgBiografia de Baquaqua, africano liberto que quando escravizado foi trazido ao Brasil

Hoje também estamos frente a sérias ameaças aos processos de reconhecimento dos direitos dos quilombolas, herdeiros diretos dessa história de luta pela liberdade. Uma das primeiras medidas do governo Temer alterou os trâmites para o reconhecimento dos direitos de propriedade aos territórios de quilombo – que incluem, em sua acepção mais completa, comunidades quilombolas urbanas como o Quilombo da Pedra do Sal, na zona portuária do Rio de Janeiro. Trata-se de direitos reconhecidos pela Constituição de 1988 –  ano do centenário do 13 de maio. Segundo avaliação de historiadores comprometidos com a causa quilombola, há perigo de um retrocesso.

Nesses tempos de ameaça às conquistas negras e populares devemos aprender com os quilombolas que a obtenção da real liberdade resulta de uma luta permanente, e ao mesmo tempo celebrar as conquistas de forma a não esquecer que vale a pena continuar lutando. #VaiTerLuta

fogueira e tio mane

Festas de 13 de maio/ por Martha Abreu

Não sei bem os motivos, mas sempre achei que as festas tinham algo muito especial,  difícil de explicar  quando se é criança. Talvez porque as festas fossem lugares onde todos estavam alegres – ou pareciam alegres (pois  eram inevitáveis conflitos); locais de encontro, música e riso. Na minha família e na minha escola, as festas exigiam nossa presença, com o que tínhamos de melhor e de mais bonito. E ainda planejávamos o futuro: as festas do ano que vem sempre seriam melhores! Eu chegava a perceber também que as festas davam o maior trabalho…e não era pequeno o esforço de organizar as comidas, bebidas, musicas, danças e, talvez o mais difícil, a escolha dos convidados. Quem iria? Quem seria barrado? As festas exigiam certa arte política e muitas costuras entre as várias identidades. Quem entrava e quem ficava de fora…

Minha formação, e provavelmente, a de todos nós passou pelas festas. Nos tornamos cariocas, baianos, gaúchos, brasileiros,  sambistas, pagodeiros  ou jongueiros ali, vivendo os aniversários, casamentos, carnavais, viradas de ano, festas juninas, festas de santo …tantas festas. Dizia minha saudosa amiga Ana Lugão que, brincando o carnaval, cumpríamos nosso dever cívico de tornar nossas filhas brasileiras e cariocas.

Quando cresci, algo aconteceu e minhas memórias das festas começaram a não combinar com o que eu lia. Aprendi na faculdade de História, lendo importantes teóricos, que as festas eram válvulas de escape da realidade, ou lugares para a celebração de tradições conservadoras, em geral católicas. A religião também alienava.

Ainda bem que os tempos mudaram, junto com a historiografia e com os movimentos políticos (será vice-versa?).  Os movimentos pela redemocratização, a partir do final dos anos 1970,  iriam reconciliar minhas memórias infantis com as novas vivências das festas. A esquerda começou a levar mais a sério as festas, incorporando a alegria e a musica em seus comícios. Não foi mesmo por acaso que escrevi o Império do Divino, festas e cultura popular no Rio de Janeiro, no século XIX, nos primeiros anos da década de 1990. Muita coisa tinha mudado.  As festas não eram mais lugar para esquecer e fugir, mas para lembrar, lembrar de pessoas, de histórias  e de conquistas; lugar de renovar os encontros e as esperanças.  Tornei-me historiadora das festas.

Foi com enorme emoção que, pela primeira vez, assisti as festas  do 13 de maio do quilombo de São José da Serra, em 2003 ou 2004, a partir de convite de Hebe Mattos.  Ali estavam, e sempre estiveram, todas as possibilidades culturais, políticas e sociais das festas. O jongo marcava a identidade negra e as memórias de um cativeiro, que  não podia ser esquecido; a fogueira unia todos, velhos e jovens,  com os antepassados; os pretos velhos, abençoavam  os participantes  e renovavam as energias; as festas teciam solidariedades internas e externas na luta por um futuro melhor, a partir da identidade quilombola,  do direito à terra e das ações de reparação.  A feijoada trazia alegria ao corpo e à alma. Ali, passado, presente e futuro se encontravam.

Em 2005, o IPHAN considerou  o jongo  Patrimônio Cultural do Brasil a partir de uma demanda de São Jose da Serra e do Jongo da Serrinha, com o apoio de todos os grupos jongueiros do velho sudeste escravista.  Cultura e  Festa tornavam-se oficialmente patrimônio e direito,  bandeira de luta política para muitas conquistas.

Em pouco tempo, muitas outras festas trilharam esse caminho,  que já tinha sido aberto com samba de roda baiano. Tornaram-se Patrimônio Cultural Brasileiro maracatus,  cocos,  bois,  matrizes do samba carioca etc.

Em tempos tão difíceis que se avistam agora, só posso  esperar  vida longa para as festas!!!  Festas que mantenham as esperanças; festas que celebrem memórias de conquistas e direitos! Festas que, como as festas do 13 de maio de São José,  não podem ser esquecidas.

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Manifesto em Defesa das Cotas Raciais na Pós-Graduação

Texto aprovado na Assembléia Geral do XXVIII Simpósio Nacional de História da Anpuh, em Florianópolis.

Em abril de 2012, o Supremo Tribunal Federal reconheceu por unanimidade a constitucionalidade das cotas raciais, confirmando a legitimidade das políticas de ação afirmativa para acesso de estudantes negros/as nos cursos de graduação, implementadas em universidades públicas desde o início dos anos 2000.

Tal decisão reforçou o entendimento sobre a centralidade do racismo na conformação das desigualdades presentes na sociedade brasileira e fortaleceu o debate sobre a necessidade de políticas públicas de promoção da igualdade e combate à discriminação racial no país.

Esse cenário serviu, consequentemente, como estímulo para que programas de pós-graduação, institutos/departamentos e instituições de ensino superior assumissem o desafio de aprofundar o debate e a ação.

Não por acaso, já em 2013, começamos a assistir ao fortalecimento de projetos voltados à implementação de cotas raciais para negros/as, indígenas e quilombolas nos cursos de Mestrado e Doutorado em diferentes localidades brasileiras.

Afora experiências anteriores de natureza diversa em instituições como UNEB, UFPE, UEFS, UFAM e UFPA, tivemos recentemente os seguintes avanços:

  • Rio de Janeiro, fevereiro de 2013 – reserva de 20% das vagas da pós-graduação para negros/as no Programa de Antropologia Social do Museu Nacional / UFRJ;
  • Brasília, julho de 2013 – reserva de 20% das vagas da pós-graduação do Departamento de Sociologia da UnB.
  • Rio de Janeiro, novembro de 2014 – Lei Estadual n. 6.914/14 estabelece que 12% das vagas de pós-graduação das universidades públicas do estado sejam destinadas a negros/as e indígenas.
  • Campinas-SP, março de 2015 – IFCH / UNICAMP aprova cotas para negros/as, indígenas e pessoas com deficiência na pós-graduação.
  • São Paulo-SP, abril de 2015 – FFLCH / USP reserva de 20% das vagas da pós-graduação;
  • Goiás, abril de 2015 – UFG, cotas na pós-gradução strictu sensu para inclusão e permanência da população negra e indígena no corpo discente.
  • Rio de Janeiro, junho de 2015 – PPGHC / UFRJ estabelece cotas para negros no Mestrado e no Doutorado.

Segundo dados da PNAD 2013, dos 387,4 mil pós-graduandos/as brasileiros/as, os/s negros/as somam apenas 28,9%, ou 112 mil em números absolutos.

Atentos/as às questões centrais da atualidade nacional e nos posicionando como sujeitos comprometidos com o enfrentamento do racismo e a promoção da democracia no Brasil, nós, historiadores/as presentes no XXVIII Simpósio Nacional de História da Anpuh, realizado em Florianópolis-SC, entre 27 e 31 de julho de 2015:

  • Manifestamos o nosso apoio às iniciativas em curso voltadas ao acesso de estudantes negros/as, indígenas e quilombolas nos cursos de pós-graduação;
  • Defendemos que essas e outras medidas de ações afirmativas de combate às desigualdades raciais sejam implementadas em outras instituições de ensino, com ênfase para cotas para negros, indígenas e quilombolas nos cursos de pós-graduação em História;
  • Ressaltamos a urgência de que as políticas de acesso sejam acompanhadas de ações voltadas à garantia da permanência de estudantes negros/as, indígenas e quilombolas nos cursos de pós-graduação, especialmente que sejam asseguradas as quantidades necessárias de bolsas de estudo/pesquisa;
  • Defendemos a ampliação do debate sobre a implementação de cotas raciais para o preenchimento das vagas de concursos para a composição do corpo docente das universidades públicas e institutos federais de ensino.

Florianópolis-SC, 30 de julho de 2015

O encerramento da assembleia geral da Anpuh 2015, em Florinópolis, foi muito promissor. Apesar dos inúmeros desafios no campo do Ensino de História, como as ameaças de reforma nos conteúdos do Ensino Médio, as propostas do grupo Escola sem Partido, que atacam a liberdade de ensino do professor, e o avanço de manifestações de intolerância e discriminação nas escolas, a nova gestão, liderada por Maria Helena Capelato, comprometeu-se com uma atuação firme, no campo político e jurídico, frente a essas preocupantes pressões.

Para começar, depois de oportuna intervenção do Prof. Paulo Knauss, definiu-se que o próximo Simpósio terá como tema “Contra os Preconceitos: História e Democracia”. O objetivo é colocarmos no centro das atenções dos historiadores os movimentos de discriminação e preconceito que têm marcado a história recente no Brasil e no mundo. Em seguida, no momento das moções encaminhadas pela Anpuh, um grupo de historiadores, de todas as cores, conseguiu aprovar o forte e belíssimo manifesto de apoio às cotas raciais nos cursos de Pós-Graduação (vagas discentes e docentes), com o qual abrimos o blog. Nossa alegria foi muito grande!

Saímos também da Anpuh animadas com os rumos do GT Emancipações e Pós-Abolição. Os 3 Simpósios  organizados estiveram sempre cheios e a reunião geral foi muito produtiva. Combinamos centrar as energias numa rede de comunicações que funcione efetivamente e na organização de um novo seminário no Rio de Janeiro, em 2016. Os novos coordenadores gerais são Giovana Xavier, Beatriz Loner, Lourival dos Santos e Edinelia Maria Oliveira Souza. Seções regionais Norte: Julio Claudio Silva; Nordeste: Maria Emília Vasconcelos e Valéria Costa; Sudeste: Lucimar Felisberto (UFRJ) e Juliano Sobriño (Uninove); Sul: Rodrigo Weimer; Comissão de comunicação: Eric Brasil (UFF), Leticia Canelas (Unicamp). Comissão do evento 2016: Ana Flavia Pinto (Unicamp), Fernanda Souza (UFRGS), Flavio Gomes (UFRJ).

//EM TEMPO//  O PPG História Comparada, da UFRJ, aprovou recentemente a política de cotas raciais para ingresso no programa!

anpuh 2016Floripa 2015, uma ANPUH que vai ficar na história!

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Diário da Bicicleta (ou conversas de Havana)

Escrevemos este texto do aeroporto Internacional José Marti, em Havana, Cuba. Estamos deixando a cidade após participarmos de colóquio sobre memória da escravidão e herança africana em Brasil e Cuba, organizado por Andre Cicalo (pelo Museu Afro-Digital da UERJ) e por Alberto Granado (pela Casa de Africa, Havana). O colóquio reuniu especialistas brasileiros e cubanos para discutir o desenvolvimento do projeto Rota do Escravo da UNESCO nos dois países, e temas como patrimônio, democracia e racismo; escravidão, arqueologia e lugares de memória; religião, literatura e herança africana em perspectiva comparada.

São muitos os diálogos entre a história da escravidão e as formas peculiares de racismo no Brasil e em Cuba. Para nossa boa surpresa, a pesquisa sobre a história do tráfico ilegal no século XIX, que tem se desenvolvido no Brasil quebrando um silêncio clássico da nossa historiografia, é tema prioritário do grupo de pesquisa da universidade cubana, coordenado pela historiadora Maria del Carmem Barcia.

Também com evidente paralelismo em relação à questão das ações afirmativas no campo cultural na sociedade brasileira, o projeto Rota do Escravo em Cuba se apresentou como instrumento para promover ações no campo da pesquisa histórica e do ensino sobre a escravidão e o tráfico negreiro, valorizando as culturas vivas de matriz africana. Apesar do discurso oficial, que persiste, de afirmação de uma cubanidade revolucionária que nega a existência de racismo, a presença dos movimentos negros no simpósio e a discussão aberta do tema nos pareceram sinais de novos tempos.

Como participantes do colóquio, fomos levadas a visitar o Pueblo de Regla, sede de importantes irmandades e organizações religiosas negras, que fica do outro lado da baía de Havana, em frente ao porto. Ali, tomamos contato com a Nossa Senhora de Regra, Virgem Negra, com um menino Jesus mestiço em seu colo, objeto de intensa devoção da população local. A história da imagem é controversa, mas sua riqueza e possibilidades simbólicas quase dispensam comentários. Em Regla, pudemos visitar também um dos muitos museus de história local existente no país, com ênfase na identidade e história das associações religiosas de matriz africanas locais (além da história cívica da revolução cubana, é claro).

Em Havana, como qualquer visitante, andamos de bicicleta-taxi e ouvimos do jazz ao tecno-salsa, embaladas em alguns mojitos e daiquiris. Na Cidade Velha, patrimônio da humanidade, com grande parte magnificamente restaurada, fomos surpreendidas por uma multidão de turistas de todas as partes do mundo convivendo intensamente com a população local. Nesses 6 dias no país, nossa impressão de viagem foi de uma sociedade otimista com o futuro, buscando conciliar modernidade, mercado e orgulho revolucionário.

Apesar disso, o acesso a internet ainda é precário. Se começamos a escrever no aeroporto José Marti, postamos este blog já em casa, no Brasil.

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Mais um Treze de Maio?

Já faz algum tempo que o mês de maio nos mobiliza. O 13 de maio, dia da abolição legal da escravidão no Brasil, desde 1988 é celebrado como dia nacional de luta contra a discriminação racial no país. O sentido inacabado da reforma então empreendida não deve apagar, entretanto, seu profundo significado.

Resultado do primeiro grande movimento social do país e de intensa movimentação de desobediência civil por parte dos últimos escravizados, a magnitude da mobilização social que possibilitou a aprovação da chamada lei Áurea ficou registrada em foto histórica da multidão presente à missa campal de 17 de maio do fotógrafo Antônio Luis Ferreira. Reportagem do Portal Brasiliana Fotográfica, neste 17 de maio, identifica a presença de Machado de Assis no palanque oficial, o que é uma interessantíssima novidade. Porém, é a imponência da multidão que mais uma vez buscamos registrar aqui no blog. Foi a mobilização social e a fuga em massa dos escravizados que surpreenderam os conservadores e tornaram possível que a Lei fosse aprovada sem indenização aos senhores e com expectativas, depois frustradas, de alguma compensação aos escravizados.

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Nos cursos que ministramos, em seminários, entrevistas ou nas festas do quilombo de São José da Serra, sempre em data próxima ao 13 de maio, avaliar o legado da abolição com mais atenção e profundidade tem se tornado bastante comum. Entretanto, nesse último 13 de maio, tivemos a impressão que de que o reconhecimento do legado de sofrimento e racismo deixado pela violência do tráfico negreiro e da escravização para a população negra do país ganhou importância e visibilidade em diferentes veículos de comunicação.

A começar pala primeira página de O Globo do dia 13 de maio com uma matéria sobre Luis Pinto Jr do Quilombo do Sacopã que participou do projeto “Brasil: DNA África”, da produtora Cine Group. Para além de desmentir perspectivas biológicas de raça, que não possuem qualquer sentido científico, as pesquisas de DNA têm sido usadas para remontar o trajeto de grandes deslocamentos populacionais no espaço global, como o produzido pelo tráfico forcado de africanos escravizados. Por meio de exames feitos em um laboratório em Washington, Luis teve a origem de seus antepassados africanos identificada no território atual da Nigéria. Ao lado de outros escolhidos, participará de uma séria de documentários sobre o que os produtores definiram como o “resgate dos laços interrompidos pela escravidão”. Trata-se assim de discutir, de forma pública, o trauma e a violência da ruptura provocada pelo tráfico negreiro e pela escravização no Brasil.

Também chamou atenção o ótimo documentário produzido pela TV Brasil, com o título Ecos da Escravidão, para o programa Caminhos da Reportagem (TV Brasil, 54:31), apresentado pelos jornalistas Debora Brito e Carlos Molinari. Desenvolvido a partir do mote da criação da Comissão da Verdade Sobre a Escravidão Negra da OAB, o programa provou, como ressaltou Ana Flávia Magalhães Pinto, uma das historiadoras entrevistadas, “que um bom diálogo entre jornalistas, acadêmicos e ativistas é possível”. Alvíssaras! Com a participação de inúmeros historiadores, contou também com entrevistas importantes com militantes e lideranças quilombolas, como Toninho do Quilombo de São José, buscando registrar a escravidão e seu legado, do tráfico de escravizados até as ações de reparação nos dias de hoje.

Da mesma forma, ocorreram vários debates na UFF sobre os limites da liberdade e a continuidade do racismo, com destaque para a participação na campanha #AhBrancoDaUmTempo. As polêmicas daí resultantes são boa medida da urgência da discussão. Os alunos da História, do Coletivo Negro na Escola, organizaram belo evento no nosso prédio, na escola pública Guilherme Briggs e no Colégio Estadual Raul Vidal, com a Participação dos Professores Elaine Monteiro e Jonis Freire.

Com a Fogueira da Festa de 16 de maio no Quilombo São José, finalmente de posse do título de seu território, celebramos mais um 13 de maio. Dia dos Pretos Velhos e da Abolição Legal da Escravidão no Brasil.

fogueira quilombo 16 de maio 2015

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