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A escravidão como problema moral e a presença africana nas Américas

Passados Presentes é o nome do projeto que estamos desenvolvendo em parceria com quilombolas e jongueiros do Rio de janeiro, mas também é o mote da rede de pesquisa de que participamos, com pesquisadores da Columbia University e outros colegas historiadores do Rio de Janeiro, discutindo a escravidão como problema moral no Ocidente e o legado da presença africana nas Américas. Em junho, recebemos no Rio o coordenador da rede de pesquisa na universidade de Nova York, o antropólogo jamaicano David Scott, que participou de workshop com os pesquisadores brasileiros e fez conferência sobre a escravidão como problema moral no Museu de Arte do Rio (MAR). Com o historiador Álvaro Nascimento, de UFRRJ, David também compôs a mesa de debates do V Festival Internacional do Filme de Pesquisa/ Memória da Escravidão no Brasil. Compartilhamos aqui, com nossos leitores, os emocionantes e inspiradores comentários de ambos ao filme Jogo de Corpo. Capoeira e Ancestralidade que encerrou, no auditório do MAR, a sessão Rio do festival 2015 e também o workshop Passados Presentes, ajudando-nos a refletir sobre dano moral e legado cultural na diápora africana nas Américas

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Eric Foner é um dos historiadores da Columbia University a fazer parte da rede de pesquisa e a entrevista que fizemos com ele em maio de 2014 foi tema de uma de nossas primeiras postagens. Um dos mais influentes historiadores sobre o pós-emancipação nos Estados Unidos, a íntegra da entrevista acaba de sair publicada, em português e inglês, no dossiê Pós-Abolição no Mundo Atlântico, da Revista Brasileira de História da ANPUH. O dossiê é o primeiro publicado na nova fase, bilíngue, da revista e atesta mais uma vez a consolidação dos estudos sobre o pós-abolição no Brasil. Confira mais uma vez a pequena parte filmada da entrevista transcrita no dossiê.

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revista

Dando sequencia às trocas frutíferas sobre a diáspora africana nas Américas com pesquisadores da Universidade de Columbia, convidamos também para a palestra do historiador Jose Moya, diretor do Instituto de Estudos Latinos Americanos daquela Universidade, sobre “La presencia africana en las Americas como una historia de immigración”,  no dia 8 de julho (quarta-feira), às 19 hs, na sala 140 na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) (Campus da Praia Vermelha – Av. Pasteur, 250 fundos). O evento é de entrada livre e gratuita  e a palestra será realizada em espanhol sem tradução. Trata-se de uma realização conjunta do Columbia Global Center, dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura (PPGCOM) e História Social (PPGHIS da UFRJ, do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Casa de Rui Barbosa (CRB). 

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Por fim, acontece esta semana na Universidade Federal Fluminense o XI Encontro Regional Sudeste da Associação Brasileira de História Oral, com o tema “Dimensões do Público: comunidades de sentido e narrativas políticas”. Hebe fará a conferência de abertura com o título Passados Presentes: comunidades de sentido e narrativas políticas sobre a diáspora africana no Brasil, também no dia 8 de julho, à 11 horas. Confira aqui a programação completa do evento.

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Da memória à reparação: filmes e workshop no Museu de Arte do Rio

Convidamos os amigos do conversadehistoriadoras para a sessão de encerramento do V Festival Internacional do Filme de Pesquisa, no sábado, dia 20 de junho, no auditório do Museu de Arte do Rio. A programação se abre às 11 horas,  com conferência de David Scott, antropólogo da Universidade de Columbia, com o título “On the moral justification of reparation for New World Slavery” (Sobre a justificação moral da reparação para a escravidão no novo mundo). Haverá tradução consecutiva.

Na parte da tarde, o celebrado filme de Matthias Assunção, Mestre Cobra Mansa e Richard Pakleppa Jogos de Corpo: Capoeira e Ancestralidade, precedido do belo curta A Mão e o Fogo: Louça e subjetividade entre artesãs de Itamatativa, de Raquel Noronha encerram a sessão Rio 2015 do festival, iniciada em maio. Confiram as sinopses na programação abaixo.

David Scott coordena com Hebe o projeto Passados Presentes, sobre memória da escravidão e políticas de reparação na área de educação no Brasil, com apoio do edital FAPERJ/COLUMBIA GLOBAL CENTER. Na sexta feira, o projeto realiza workshop sobre o tema, também nas dependências do MAR, que terá o inglês como língua de comunicação principal.

Divulgamos aqui a programação completa. 2Programacao_RFF_Edicao_Rio_Junho_20152Programacao_RFF_Edicao_Rio_Junho_2015

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Mais um Treze de Maio?

Já faz algum tempo que o mês de maio nos mobiliza. O 13 de maio, dia da abolição legal da escravidão no Brasil, desde 1988 é celebrado como dia nacional de luta contra a discriminação racial no país. O sentido inacabado da reforma então empreendida não deve apagar, entretanto, seu profundo significado.

Resultado do primeiro grande movimento social do país e de intensa movimentação de desobediência civil por parte dos últimos escravizados, a magnitude da mobilização social que possibilitou a aprovação da chamada lei Áurea ficou registrada em foto histórica da multidão presente à missa campal de 17 de maio do fotógrafo Antônio Luis Ferreira. Reportagem do Portal Brasiliana Fotográfica, neste 17 de maio, identifica a presença de Machado de Assis no palanque oficial, o que é uma interessantíssima novidade. Porém, é a imponência da multidão que mais uma vez buscamos registrar aqui no blog. Foi a mobilização social e a fuga em massa dos escravizados que surpreenderam os conservadores e tornaram possível que a Lei fosse aprovada sem indenização aos senhores e com expectativas, depois frustradas, de alguma compensação aos escravizados.

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Nos cursos que ministramos, em seminários, entrevistas ou nas festas do quilombo de São José da Serra, sempre em data próxima ao 13 de maio, avaliar o legado da abolição com mais atenção e profundidade tem se tornado bastante comum. Entretanto, nesse último 13 de maio, tivemos a impressão que de que o reconhecimento do legado de sofrimento e racismo deixado pela violência do tráfico negreiro e da escravização para a população negra do país ganhou importância e visibilidade em diferentes veículos de comunicação.

A começar pala primeira página de O Globo do dia 13 de maio com uma matéria sobre Luis Pinto Jr do Quilombo do Sacopã que participou do projeto “Brasil: DNA África”, da produtora Cine Group. Para além de desmentir perspectivas biológicas de raça, que não possuem qualquer sentido científico, as pesquisas de DNA têm sido usadas para remontar o trajeto de grandes deslocamentos populacionais no espaço global, como o produzido pelo tráfico forcado de africanos escravizados. Por meio de exames feitos em um laboratório em Washington, Luis teve a origem de seus antepassados africanos identificada no território atual da Nigéria. Ao lado de outros escolhidos, participará de uma séria de documentários sobre o que os produtores definiram como o “resgate dos laços interrompidos pela escravidão”. Trata-se assim de discutir, de forma pública, o trauma e a violência da ruptura provocada pelo tráfico negreiro e pela escravização no Brasil.

Também chamou atenção o ótimo documentário produzido pela TV Brasil, com o título Ecos da Escravidão, para o programa Caminhos da Reportagem (TV Brasil, 54:31), apresentado pelos jornalistas Debora Brito e Carlos Molinari. Desenvolvido a partir do mote da criação da Comissão da Verdade Sobre a Escravidão Negra da OAB, o programa provou, como ressaltou Ana Flávia Magalhães Pinto, uma das historiadoras entrevistadas, “que um bom diálogo entre jornalistas, acadêmicos e ativistas é possível”. Alvíssaras! Com a participação de inúmeros historiadores, contou também com entrevistas importantes com militantes e lideranças quilombolas, como Toninho do Quilombo de São José, buscando registrar a escravidão e seu legado, do tráfico de escravizados até as ações de reparação nos dias de hoje.

Da mesma forma, ocorreram vários debates na UFF sobre os limites da liberdade e a continuidade do racismo, com destaque para a participação na campanha #AhBrancoDaUmTempo. As polêmicas daí resultantes são boa medida da urgência da discussão. Os alunos da História, do Coletivo Negro na Escola, organizaram belo evento no nosso prédio, na escola pública Guilherme Briggs e no Colégio Estadual Raul Vidal, com a Participação dos Professores Elaine Monteiro e Jonis Freire.

Com a Fogueira da Festa de 16 de maio no Quilombo São José, finalmente de posse do título de seu território, celebramos mais um 13 de maio. Dia dos Pretos Velhos e da Abolição Legal da Escravidão no Brasil.

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De volta às conversas…

Como foram de férias? Viajamos ambas por este mundo a fora, renovamos as energias e estamos de volta às nossas conversas. Retomamos com uma pequena nota, mas com a firme intenção de voltar ao nosso papo (sempre que possível) semanal.

Durante o recesso do blog, em 6 de fevereiro, tomou posse em Brasília, a Comissão da Verdade da Escravidão Negra da OAB. Muitos historiadores perguntaram, como assim? Diante da extensa e complexa historiografia sobre tema, o que seria a “verdade” sobre a escravidão negra? Nós, historiadores, sabemos bem o quanto as respostas podem variar conforme a pergunta que fazemos. E que formular questões não é tarefa nada simples, desde a abordagem da questão mais básica – a da relação entre escravidão e racismo. Mas não é de uma comissão de historiadores que se trata. A iniciativa é da Ordem dos Advogados do Brasil e a inspiração é claramente a Comissão da Verdade relativa aos crimes da ditadura militar. Sua metodologia de trabalho ainda está sendo discutida, mas como já desenvolvemos por aqui, a questão da reparação a injustiças históricas de caráter sistêmico, como a escravidão atlântica, é tema em discussão em todo mundo, desde a Conferência de Durban, 2001. Hebe foi convidada a participar como consultora da comissão da OAB. É uma discussão complexa, antes de tudo legal e ética, que em boa hora a iniciativa da OAB traz para o Brasil e na qual, consideramos, os historiadores devem participar. Em 8 de janeiro, em Paris, aconteceu uma jornada de estudos, organizada pelo CIRESC/EHESS, na qual historiadores discutiram as perspectivas internacionais das demandas de reparação relativas à escravidão atlântica e o seu papel nos debates em curso. Entre os participantes, o grupo “Reparative History” da Inglaterra (Universidade de Kent e Universidade de Londres). Com certeza, as estratégias de trabalho da comissão da OAB estarão no nosso cardápio de conversas para 2015.

Primeiro de março, 450 anos da “mui leal e heroica cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro”. Linda cidade. Nossa cidade. Nesse aniversário do Rio, celebramos também a oficialização da candidatura do complexo do cais do Valongo à patrimônio da humanidade da UNESCO. O Memorial dos Pretos Novos, mantido por Merced Guimarães sobre o antigo cemitério dos africanos que morriam imediatamente após a travessia do Atlântico, faz parte do conjunto. Não esquecer a tragédia da travessia é nossa maneira de celebrar o legado cultural deixado pelos que sobreviveram, absolutamente fundamental para construir a cidade como a vivemos hoje, com suas histórias, lutas e milagres.

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Para encerrar o ano…

Para encerrar o ano, nada melhor do que comemorar o lançamento, on line e totalmente gratuito, dos três volumes de “Histórias do Pós-abolição no Mundo Atlântico” (vol 1, vol 2, vol 3), organizado por Martha, Hebe, Carolina Vianna, Karl Monsma e Beatriz Loner. Fruto de um seminário com o mesmo nome, organizado em maio de 2012, a obra tem como objetivo aprofundar os estudos sobre experiências de ex-escravos e seus descendentes entre a abolição e os dias de hoje. Os textos procuram investigar os processos de racialização ligados à memória da escravidão em seus aspectos econômicos, políticos, sociais, identitários, culturais e educacionais. Complementarmente, buscam investigar as estratégias de recriação das práticas culturais e das formas de organização dos descendentes de africanos escravizados nas Américas.

O primeiro volume enfoca variados projetos políticos e questões de identidade; o segundo, as experiências ligadas ao mundo do trabalho e a luta pela liberdade, e o terceiro – cultura, relações raciais e cidadania – preocupa-se com dinâmica cultural em seus mais variados aspectos.

Os 3 volumes são um exemplo contundente da consolidação de um novo campo de estudos sobre o Pós-abolição no Brasil. Se pode ser relacionado diretamente com o período escravista nas Américas e seu legado, a prioridade para o Pós-abolição chama a atenção para novas questões, envolvidas diretamente nas disputas sobre as memórias do cativeiro e pela própria escrita da história da escravidão e abolição, sem deixar de levar em conta a reconstrução das hierarquias raciais e lutas antirracistas ao longo dos séculos XX e XXI.

Torna-se evidente ainda que as pesquisas agora reunidas em 3 volumes constituem uma importante contribuição para a revisão da história do negro no Brasil e, nesse sentido, fazem parte de ações de reparação, que visam contribuir para o fortalecimento das “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana”.

Por fim, com essa obra, também fazemos uma homenagem à historiadora e amiga Ana Lugão Rios, que finaliza, com texto inédito e surpreendente, o volume 1. Ana foi pioneira e grande mestra nos estudos sobre o Pós-Abolição no Brasil. Aliás, a proposta de um seminário do porte que organizamos em 2012 havia sido ideia sua, ao lado de Karl Monsma e Beatriz Loner. Suas reflexões continuam bem vivas e abrindo novos caminhos para todos nós.

Neste final de 2014, encerramos hoje nosso blog, felizes por termos levado até o fim nossa iniciativa. De inicio, devemos confessar, as dúvidas eram grandes e o medo do cansaço também era significativo. Prometemos voltar em 2015, mas depois de renovarmos nossas energias, até depois do carnaval.

A todos que nos acompanharam, nossos votos de Boas Festas e de um feliz 2015!

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Direitos Humanos e Escravidão Negra no Brasil

Terminou ontem o mês da consciência negra. Uma data cívica que definitivamente pegou. Não se trata apenas da celebração de Zumbi dos Palmares no 20 de novembro, que deve se tornar em breve feriado nacional. Todo o mês de novembro se transformou em tempo de celebração da identidade negra. Um tempo, cada vez mais oficialmente instituído, para os negros brasileiros celebrarem o orgulho de si e de seu legado ao país. Uma decisão da sociedade brasileira que é também forma de pedir perdão pela tragédia humanitária sobre a qual se alicerçou a história do país e, ao mesmo tempo, de agradecer o riquíssimo legado cultural resultante da diáspora forçada de escravizados africanos no Brasil – rompendo um silêncio cruel e secular.

No final de março de 2014, publicamos, aqui no blog, o texto Repare Bem. Ele associava os trabalhos das Comissões de Verdade sobre os crimes da ditadura que estavam então instaladas no Brasil, e galvanizavam os debates sobre os 50 anos do golpe de 1964, com a aprovação da lei que reservava 20% de vagas a pretos e pardos no funcionalismo público. A associação não foi só nossa. Por sugestão da Comissão de Igualdade Racial da Ordem dos Advogados do Brasil e de instâncias do movimento negro, o Conselho Federal da OAB propôs, neste novembro, a criação de uma Comissão da Verdade sobre a Escravidão Negra no Brasil.

A proposta pode parecer estranha para quem acompanha a historiografia brasileira. Poucos campos de pesquisa avançaram tanto nos últimos 30 anos quanto o da história da escravidão negra, em estreito diálogo com a pesquisa internacional sobre história da África e da escravidão atlântica. Mas apesar dos resultados alcançados, o silêncio sobre o tema ainda prevalece na memória coletiva. E as narrativas que chegam aos públicos mais amplos refletem, sobretudo, as disputas contemporâneas sobre os legados de desigualdade, preconceito e dor da experiência escravista. A lei 10639, que tornou obrigatório o ensino de história da África e da cultura afro-brasileira, tem mais de 10 anos e gerou inúmeras iniciativas em todos os níveis do sistema educacional brasileiro, mas sua implementação se fez desde sempre sob pressões e conflitos. Em 2005, o Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (IARA) chegou a entrar com um mandato de segurança para forçar o cumprimento da lei nas Instituições de Ensino Superior e nos órgãos de Controle e Avaliação de Políticas públicas no Brasil.

De todo modo, desde a Conferência Mundial contra o racismo e a intolerância de 2001, em Durban na África do Sul, a questão de como reparar a pesada herança da escravidão negra começou a ser discutida no Brasil, seguindo tendência presente em todo o mundo atlântico. Atualmente, os países do Caribe estudam processos legais para pedir indenizações às antigas metrópoles europeias. O estado francês criou oficialmente um Comité National pour la Mémoire et l’Histoire de l’Esclavage (Comitê Nacional para a Memória e História da Escravidão), presidido pela historiadora Myriam Cottias. Na Inglaterra, um projeto coletivo de pesquisa calcula o papel do tráfico negreiro na formação das fortunas inglesas contemporâneas. No Brasil, uma série de medidas, como a cláusula sobre reconhecimento das terras quilombolas na constituição de 1988, a instituição legal de cotas para pretos e pardos nas universidades federais e no funcionalismo público federal, bem como iniciativas memoriais, como o reconhecimento da capoeira como patrimônio da humanidade e a candidatura em curso do Cais do Valongo ao mesmo título, refletindo sobre o papel do Rio de Janeiro como maior porto negreiro do século XIX, podem ser assim interpretadas. As reparações se tornaram agenda prioritária do Movimento Negro brasileiro no século XXI, e foram assim abordadas pela antropóloga canadense Francine Saillant, em livro publicado também neste mês de novembro, no Quebec – Le mouvement noir au Brésil, 2000-2010. Réparations, droits, citoyenneté (O Movimento Negro no Brasil, 2000-2010. Reparações, direitos, cidadania).

Como temos tentado colocar em evidência no blog, pesquisas sobre o tráfico ilegal de cativos na formação do estado nacional brasileiro foram responsáveis pela principais inovações na historiografia da escravidão na última década. Nossa parceira de muitos projetos, Keila Grinberg tem diretamente associado a história dos direitos humanos no Ocidente com o combate ao tráfico ilegal de cativos africanos. A importância de pensar em conjunto historiografia acadêmica, história pública e memória da escravidão é questão que está hoje na agenda da sociedade brasileira e de seus historiadores profissionais. A nossa dobradinha vem participando desde 2005 de iniciativas e redes de pesquisa transnacionais sobre o tema, entre as quais destacamos o Festival Internacional do Filme de Pesquisa Cultura, Diáspora e Cidadania, que está até janeiro com uma nova chamada de filmes em aberto, para a edição 2015, a ser inaugurada no mês de maio, em Paris.

Em colaboração com antropólogos e historiadores da Columbia University, e com colegas historiadores da UNRIO, da UFRJ e da UFRRJ, começamos neste mês de novembro um projeto específico sobre o tema das reparações para a escravidão atlântica, com suporte do Edital FAPERJ/Columbia Global Center, de título Passados Presentes: Memória da Escravidão e Políticas de Reparação nas Políticas Públicas na Área de Educação no Brasil. O projeto visa contribuir para o debate em curso em torno do tema das reparações para o passado escravista no Novo Mundo, buscando aprofundar o diálogo entre pesquisadores da história e da memória da escravidão no Brasil, no Caribe e nos Estados Unidos.

Segundo David Scott, coordenador do projeto na Columbia University, que estará no Brasil em abril de 2015 para o primeiro seminário da rede de pesquisa: “a questão da escravidão no tempo presente é parcialmente (e talvez crescentemente) uma questão de justiça, uma discussão sobre a reparação pelos crimes do passado. A emergência das discussões sobre justiça reparatória, como parte de um debate mais amplo sobre a resolução de injustiças históricas relativas a genocídio, tortura, limpeza étnica, entre outros crimes coletivos, renovou a discussão contemporânea sobre a escravidão no Novo Mundo, para além das abordagens mais correntes sobre diáspora, racismo, memória e identidade. A questão fundamental da possibilidade de reparação – moral, política, cultural, e também econômica – também ocorre para injustiças históricas de caráter “sistêmico”, como a captura e escravização de africanos no Brasil, Caribe e Estados Unidos. Uma instituição de injustiça não apenas perpetrada e usufruída por indivíduos ou mesmo um Estado isoladamente por algumas décadas, mas perpetrada por centenas de anos por vários estados europeus ou americanos ilustrados ou baseados em constituições liberais. Uma instituição de injustiça que ajudou a criar a riqueza que deu origem às estruturas fundadoras do mundo contemporâneo”.

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Sobre as ruínas do Sahy

Ninguém esquece um elefante. Nossa querida amiga e colega, a saudosa Ana Lugão Rios, assim intitulou um de seus textos abordando a demografia e a memória do tráfico ilegal de escravos no litoral fluminense na primeira metade do século XIX.  Estávamos então surpresas com a descoberta de uma muito viva tradição oral sobre a chegada ilegal de africanos escravizados na região, durante o desenvolvimento do projeto de história oral Jongos, Calangos e Folias, em 2007. No artigo, Ana revisitava a demografia do tráfico ilegal, centenas de milhares de pessoas chegadas em cerca de 20 anos no Rio de Janeiro, numa estreita faixa de terra entre o mar e a montanha.

Mas apesar da força da tradição oral, até muito recentemente, só a memória local parecia querer lembrar do acontecido, sem que historiadores ou outros formadores de opinião se interessassem em parar para ouvir o que os moradores da região tinham a dizer. É impressionante o silêncio na historiografia e na memória oficial sobre o tema por todo o século XX. Já na primeira metade do século XIX, apesar da atividade negreira envolver enormes estruturas e milhares de pessoas, os que a ela se dedicavam intencionalmente não deixaram registros escritos. Quase todas as fontes históricas mencionando a atividade são produtos das tentativas de repressão, realizadas logo após a aprovação da primeira lei de abolição do tráfico em 1831 e, principalmente, ao longo da primeira metade da década de 1850, após a lei que finalmente “pegou”. Elas nos dão notícias de 500, 800 e até mil pessoas em um só desembarque.

As ruínas na praia do Sahy, em Mangaratiba, bem em frente à Restinga da Marambaia, são um testemunho eloquente da envergadura desse silêncio e do tamanho daquilo que se tentou esconder. Formadas por extensas paredes de pedra protegidas por densa vegetação, há muito tempo elas estão ali para serem vistas por quem tem olhos para ver, sem que historiadores ou documentos oficiais consigam precisar do que se trata. O que vemos hoje é uma enorme área murada com laterais de cerca de 100 metros, com indícios de um cais, um cemitério e possivelmente de um pequeno canal em seu interior. Tudo isso ligado a uma segundo complexo retangular ou quadrado, menor, com laterais de cerca de 30 metros. Para olhos leigos, as ruínas passam a impressão de uma pequena vila fortificada, bem perto do mar.

Para quem tem ouvidos para ouvir, talvez o mistério não seja tão grande. Segundo os moradores da região, trata-se de um mercado e armazem de escravos, ligados à área de “engorda” de africanos recém chegados na restinga da Marambaia. Um informante se referiu explicitamente a um “cemitério de pretos novos” em um dos limites externos das ruínas e há registros da existência de um calabouço, relatado pela primeira tentativa de trabalho arqueológico na área. Os moradores contam ainda, com graça, antigas lendas que percorrem quase todo sítio com forte memória ligada à escravidão atlântica, como por exemplo a história de um conjunto de escravos que teriam se atirado para a morte da Pedra da Conquista, “após um banquete com coisas roubadas de seus senhores”. O relato evoca fortemente a narrativa de Rocha Pitta, no século XVIII, sobre a possível morte de Zumbi dos Palmares, atirando-se com seus seguidores de um penhasco, que durante anos prevaleceu como verdade histórica e foi registrada nos primeiros livros didáticos brasileiros do século XIX. Cercada de tão forte tradição oral, a área das ruínas do Sahy tem hoje extenso uso religioso, como local para rituais e oferendas de cultos afro-brasileiros.

A arqueóloga e historiadora Camilla Agostini, com autorização do IPHAN e apoio da Fundação Mario Peixoto da Prefeitura de Mangaratiba, do CNPq e da FAPERJ, está começando a pesquisar o sítio arqueológico, em um projeto baseado no LABHOI-UFF, do qual participamos como co-proponentes junto ao CNPq e à FAPERJ.

Estivemos no sítio na última quarta feira, quando registramos um primeiro relatório audiovisual das hipóteses de Camilla sobre os antigos usos da área. A beleza das ruínas e a envergadura do trabalho que a arqueóloga começa a desenvolver podem ser acompanhados no pequeno trecho de filme abaixo. No dia seguinte, seguimos viagem para o Quilombo do Bracuí, em Angra dos Reis, local onde ouvimos pela primeira vez a forte tradição oral sobre o tráfico ilegal. Nessa segunda parte da viagem, nosso objetivo era apresentar um projeto de exposição permamente, voltada para o turismo de memória, para a qual contamos com o  apoio do último Edital Petrobras Cultural de Patrimônio Imaterial. Em breve daremos mais notícias sobre esse projeto

A visita às ruínas do Sahy não nos evocou apenas a tradição oral com a qual temos convivido desde 2007, mas também a necessária releitura dos nossos dados de pesquisa sobre a primeira metade do século XIX. Hebe, por exemplo, juntamente com Keila Grinberg, há muito vem trabalhando com alguns escritos do jurista autodidata Antônio Rebouças, por diversas vezes deputado na assembléia legislativa brasileira pela província da Bahia nas décadas que se seguiram à independência política. A renovação do conhecimento sobre o funcionamento do tráfico ilegal abriu novas perspectivas para a interpretacão de alguns de seus escritos. Homem pardo, nos termos de época, ele era ativo combatente pela extinção do tráfico negreiro. Em face da aprovação no Senado de uma proposição para revogar a lei de abolição do tráfico de 1831, em 1837, defendeu na Câmara, naquele mesmo ano, a revogação paralela de uma outra lei, de 1830, que proibia a entrada de africanos livres no país. Segundo ele, respeitáveis chefes de família estariam envolvidos nos desembarques e nas compras dos africanos contrabandeados, o que comprovava serem os trabalhadores africanos desejáveis e impossível a repressão à sua entrada no país. Em vista disso, defendia a continuidade do comércio com a África, sob a fiscalização das autoridades brasileiras, como já acontecia nas Antilhas francesas, e a incorporação dos recém-chegados desde 1828 [data dos primeiros acordos com a Inglaterra] com o estatuto de africanos livres. Sintetizando seu pensamento, podemos afirmar que ele considerava urgente conter a crescente tragédia humanitária que se configurava com o aumento da mortalidade dos cativos sob o égide da ilegalidade, o que, em suas palavras, resultava por vezes na “perda de carregações inteiras”, ao mesmo tempo em que se mostrava contrário a adoção de políticas de branqueamento da população livre. Não teve sucesso em revogar a lei que proibia a imigração de africanos livres, de 1830, mas talvez por temor de que sua proposição fosse aprovada, a revogação da lei de extinção do tráfico de 1831 também não foi confirmada na Câmara. Continuou em vigor e a ser escandalosamente descumprida, transformando as lindas praias da Costa Verde em um espetáculo de horror, até meados da década de 1850.

Hoje, quase ninguém se lembra das proposições de Antônio Rebouças, apesar dele ter publicado em livro todos os seus principais discursos parlamentares. Os sentidos de sua defesa da revogação da lei de 1830, juntamente com a lei de extinção do tráfico de 1831, simplesmente perderam-se com o apagamemto da memória dos efeitos cotidianos de mais de 20 anos de tráfico ilegal.  Em pleno século XXI, do Cais do Valongo ao Sahy, passando pelas memórias dos quilombolas do Bracuí, as iniciativas de memorialização do tema significam uma inflexão importante na forma como até recentemente foi construída a narrativa nacional brasileira.  Ainda que tarde, o Brasil como nação começa a falar sobre nosso esquecido holocausto particular e a tentar reparar as feridas por ele deixadas em nossa sociedade.

Camilla está em trabalho de campo na região, com uma equipe de voluntários de altíssimo nível, formada por Fernanda Codevilla / Pós-doutoranda em Arqueologia pela UFMG; Jimena Cruz / Mestre em Arqueologia pela UFMG; Thiago Campos Pessoa / Doutorando em História pela UFF; Pedro Gil Mendonça / Graduando em Arqueologia pela PUC/GO; Suzana Correa Barbosa / Jornalista, Graduanda e Mestranda em História pela UFF; Iran Maia / Graduando em História pela UFF; Alana Verani/ Graduanda em História pela UFF; e Renata Anunciação da Silva Borges / Graduanda em História CEDERJ. O trabalho de campo conta ainda com a consultoria de Ximena Villagran / Geoarqueóloga, Pós-doutoranda Universitat Tubingen e com o apoio de Raquel Terto / Graduanda em História pela UFF, enviando documentos de arquivos via internet.  O trabalho de campo conta com o apoio da Secretaria de Meio Ambiente / Prefeitura de Mangaratiba; da Fundação Mário Peixoto; da Associação dos Pescadores Maricultores Lazer do Sahy e da Associação de Moradores do Sahy. É o segundo trabalho de campo no sítio sob a coordenação de Camilla. O projeto contou, em sua primeira fase,  com o a colaboração especial de Mirian Bondim (da Fundação Mario Peixoto).  A todos, muito obrigada!

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Memória e Cidadania no Complexo do Valongo

Levar uma turma de alunos de graduação para visitar locais de memória do trafico atlântico e da escravidão é sempre uma ótima oportunidade para discutirmos como a história está sendo contada em lugares públicos e memoriais. A abertura da visitação do cais do Valongo, há dois anos, faz parte do Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana,  organizado pela Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, para também dinamizar em termos culturais o projeto de reforma urbana da área portuária.

Sem entrarmos nas  discussões e polêmicas sobre a  reforma do Porto, vale destacar a importância da iniciativa e a divulgação do circuito, em grande parte resultado da renovada presença das demandas dos movimentos sociais, e do movimento negro em especial, na cena pública brasileira. Organizado pela Prefeitura, ele percorre um conjunto de locais marcantes para a memória da cultura afro-brasileira e inclui o Cais do Valongo, os Jardins do Valongo, a Pedra do Sal, o Largo do Depósito e o Instituto Pretos Novos.

Os verbetes sobre o complexo do Valongo, no Inventário dos Lugares de Memória do Tráfico Atlântico de Escravos e da História dos Africanos Escravizados no Brasil, organizado pelo LABHOI-UFF, permitem uma primeira aproximação com a importância do percurso.  É possível percorrê-lo com apoio de guias, ou mesmo individualmente. Há placas indicadoras e explicativas em cada um dos locais de memória.  Destacamos, especialmente, as visitas guiadas organizadas pelo Cemitério dos Pretos Novos (25167089), sob coordenação do historiador Claudio Honorato.

O Cais do Valongo foi o principal porto de entrada de escravizados africanos, em um Rio de Janeiro que era a maior cidade escravista do Atlântico, na primeira metade do século XIX. É, portanto, extremamente significativa a iniciativa de recuperação e reconstrução da Herança Africana no seu entorno, ainda mais diante do silêncio que sobre ele recaiu desde que foi encoberto, ainda no século XIX, para dar lugar ao Cais da Imperatriz e às reformas de Pereira Passos.  Voltaremos a ele neste blog ao longo das próximas semanas.

Mas, após uma visita de Martha com uma turma de alunos ao circuito, o que primeiro chamou nossa atenção foi o que ainda está pouco valorizado e esquecido. Há ainda muito mais para ser lembrado, visitado e divulgado.  Por exemplo, em contraste com a centralidade do cais do Valongo, o Cemitério dos Pretos Novos está mantido, em grande parte, pelos esforços dos proprietários da casa da Rua Pedro Ernesto, 36, Gamboa, Merced e Petroccio. Na Pedra do Sal, já há uma rápida referência ao local de nascimento do samba e, desde dia 23 de maio, uma placa reconhecendo o Quilombo da Pedra do Sal como patrimônio cultural carioca, mas haveria muito mais histórias para contar.  Nos Jardins do Valongo, muito bem restaurados, não há qualquer referência à memória negra, apenas às obras do então Prefeito Pereira Passos, em 1906.

Há muitas outras marcas sobre a vivência de africanos escravizados e seus descendentes na região. Circuitos criativos, como os que Claudio Honorato tem feito, em torno do complexo do Valongo, podem recriar a memória de vivências da velha “Pequena África”, como a denominou Heitor dos Prazeres em princípios do século XX. Dos Jardins do Valongo, por exemplo, é possível avistar o Largo do Depósito, hoje Praça dos Estivadores; a Rua Barão de São Felix, local de muitos cortiços e do mais famoso deles  – O Cabeça de Porco – espaço de encontro de libertos e imigrantes pobres, que deixariam profundas marcas culturais na história da cidade e que foi destruído por Barata Ribeiro, no início da República. Na Barão de São Felix também se localizava o destacado candomblé de João Alabá, frequentado pelas baianas da Praça Onze e por sambistas como João da Baiana.

Na Pedra do Sal, na base do Morro da Conceição e Largo da Prainha ainda era possível encontrar sedes de cordões e ranchos, casas de zungus, rodas de capoeira e associações e sindicatos de trabalhadores do porto, na sua grande maioria formada por afrodescendentes. Sem muito esforço, podemos usar a imaginação para pensar nas andanças de Elói Antero Dias, o Mano Elói, fundador da Império Serrano, nas primeiras décadas do século XX, visitando blocos carnavalescos, participando de candomblés e das politizadas reuniões da “Sociedade de Resistência dos Trabalhadores em Trapiche e Café”, depois de um longo dia de trabalho de estivador no porto.

Para o bom conhecedor da região, mesmo que a população negra, aparentemente, já não seja mais majoritária, sabemos que muito desse passado ainda está presente nas casas de cômodo, que teimam em permanecer,  nas sedes de antigos sindicatos de estivadores, que perdem importância, e até mesmo na sede do Afoxé Filhos de Gandhi, que, situado bem ao  lado do restaurado Jardim do Valongo, segue sem telhado e praticamente destruído.

Contar a História desses locais em visitas ou nas nossas salas de aula  parece ser uma das melhores formas para esse passado não ser esquecido…. Ainda voltaremos a essas visitas em outras conversas. Por enquanto, vale destacar como foi emocionante para todos nós, no momento da visita à Pedra do Sal, a leitura do depoimento recolhido por Roberto Moura, na década de 1980, de Carmem Teixeira da Conceição, mais conhecida como Tia Carmem.  Iniciativa inspirada nos roteiros históricos desenvolvidos pelo projeto Santa Afro Catarina, as frases de Tia Carmem bem que mereciam uma bela placa em uma das paredes das antigas construções que cercam a Pedra do Sal:

Tinha na Pedra do Sal, lá na Saúde, ali que era uma casa de baianos e africanos, quando chegavam da África ou da Bahia. Da casa deles se via o navio, aí já tinha o sinal de que vinha chegando gente de lá. (…) Era uma bandeira branca, sinal de Oxalá, avisando que vinha chegando gente. A casa era no morro, era de um africano, ela chamava Tia Dada e ele Tio Ossum, eles davam agasalho, davam tudo até a pessoa se aprumar. (…) Tinha primeira classe, era gente graúda, a baianada veio de qualquer maneira, a gente veio com a nossa roupa de pobre, e cada um juntou sua trouxa: “vamos embora para o Rio porque lá no Rio a gente vai ganhar dinheiro, lá vai ser um lugar muito bom (…)

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foto3.1 (1)Foto 1: Encontro da turma com o grupo liderado pelo historiador Claudio Honorato na Pedra do Sal.

Foto 2: Dos Jardins do Valongo, vista da Barão de São Felix, da Central do Brasil e, no primeiro plano, da Praça dos Estivadores, antigo Largo do Depósito (local de lojas de traficantes de escravos, no inicio do século XIX, e local de encontro dos estivadores, no final do século XIX e início do XX, na União dos Operários Estivadores).

Foto 3: Do Jardim do Valongo, vista do Morro da Providência, chamado de Morro da Favela no início do século XX, e a rua Barão de São Felix, logo em frente.

Fotos Rachel Terto e Luisy Andrade

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Estranhos Costumes Ilegais

Nas três primeiras décadas após a independência do Brasil, mais de 750 mil africanos foram forçados a atravessar o Atlântico e  tornaram-se escravizados no país, apesar da legislação da então jovem monarquia constitucional proibir formalmente o tráfico negreiro desde 1831. Todo o processo de montagem e consolidação do estado imperial brasileiro se fez assentado nessa gigantesca ilegalidade, com um saldo imensurável de vidas perdidas na travessia do Atlântico e de violência fisica e simbólica sobre aqueles que sobreviveram e, no Brasil, foram forçados a aprender a viver “escravo”.

Até bem pouco tempo, porém, esta informação aparecia quase sempre com uma naturalidade desconcertante nas mais diversas narrativas da história do Brasil. Mesmo os especialistas em história social da escravidão não costumavam dar muita atenção para a montagem das atividades ilegais que permitiram a continuidade do tráfico negreiro no país, entre 1831 e 1850, e seus desdobramentos do ponto de vista político e ético. Subestimavam também, via de regra, a consciência dos atores da época sobre os direitos daqueles que chegavam ao país ilegalmente escravizados e o constrangimento que causava trazer a público tal tema.

Recentemente, porém, a temática do tráfico ilegal emergiu  com força na pesquisa histórica e pode ter importantes desdobramentos no ensino de história. Talvez seja hoje o campo da historiografia da escravidão que mais tem se renovado. Tem trazido importantes contribuições para nossa compreensão sobre a “força da escravidão” – título do último livro de Sidney Chalhoub;  sobre  envolvimento da população local de Pernambuco na organização do tráfico ilegal – tema de pesquisa de Marcus Carvalho; e sobre a dimensão nacional da atividade ilegal – que pode ser avaliada pelas evidências no sul do Brasil, registradas no site do Santa Afro Catarina, coordenado por Beatriz Mamigonian e Andrea Ferreira Delgado.

Mais uma vez a história responde  questões formuladas pela memória e o tempo presente. Parece-nos extremamente significativo para a democratização da sociedade brasileira que finalmente tenhamos conseguido olhar com estranhamentos a “costumes” baseados no racismo e no desrespeito aos direitos humanos. A ilegalidade do tráfico e da escravidão, após 1831, foi o argumento central na defesa apresentada por Luiz Felipe Alencastro, em 2011, para a aprovação das ações afirmativas para pretos e pardos no Supremo Tribunal.

De nossa parte, também encontramos registros importantes sobre o tráfico ilegal através da memória dos descendentes de escravos do Quilombo da Rasa,  Quilombo da Marambaia e do Quilombo do Bracui, analisados no livro coletivo Diáspora Negra e Lugares de Memória (2013).  Se já tínhamos conhecimento de desembarques ilegais na região de Angra dos Reis, e havíamos trabalhado com o assunto, no porto do Bracui, na coletânea Resgate, uma janela para o oitocentos, na década de 1990, foi impressionante ouvir o  mesmo caso nas narrativas orais dos atuais moradores do Quilombo do Bracui.  São essas narrativas que hoje identificam sua luta pelo reconhecimento da terra e da identidade quilombola.

Os eventos e locais do tráfico ilegal, silenciados no passado e nos poucos vestígios que deixaram pela natureza da própria atividade,  podem hoje também ser conhecidos e visitados pelo Inventário dos Lugares de Memória do Tráfico Atlântico de Escravos e da História dos Africanos Escravizados no Brasil. Entre 2012 e 2013, organizamos o Inventário, sob a batuta de Milton Guran, representante  do Projeto da UNESCO “Rota do Escravo: Resistência, Herança e Liberdade”.   O  trabalho foi construído a partir da indicação e contribuição de diversos historiadores, antropólogos e geógrafos do país, após consultas e intensas trocas de informações por e-mail. Depois de muitas negociações quanto ao número de indicações, chegamos a 100 Lugares de Memória, dando prioridade às evidências documentais, escritas ou orais, da presença histórica e cultural dos africanos. Entre os diferentes tipos de Lugares de Memória selecionados, destacamos neste texto os lugares de desembarque ilegal.  São 15 lugares de desembarque ilegais assinalados, marcando para a posteridade  eventos que não podem mais ser esquecidos.

INVENTÁRIO DOS LUGARES DE MEMÓRIA DO TRÁFICO ATLÂNTICO DE ESCRAVOS E DA HISTÓRIA DOS AFRICANOS ESCRAVIZADOS NO BRASIL

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Repare Bem…

A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais … Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-de-flandres. … Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não cuidemos de máscaras. (Machado de Assis, Pai contra a Mãe, 1906).

 

Repare bem é o título do bonito documentário da atriz e cineasta portuguesa Maria de Medeiros sobre Denise Crispim, viúva do jovem guerrilheiro brasileiro Eduardo Leite, o Bacury, morto pela última ditadura brasileira, depois de 109 dias de tortura. O documentário foi uma iniciativa do projeto Marcas da Memória da Comissão de Anistia e Reparação do Ministério da Justiça do Brasil. O título e o filme são um bom mote para colocarmos a questão que queremos discutir neste artigo, as iniciativas  e demandas de reparação de males cometidos no passado – e as disputas que suscitam. Afinal escrevemos em pleno aniversário do golpe civil-militar de 1964, de triste memória.

Também esta semana, repare bem, foi aprovada pela câmara dos deputados, por expressiva maioria, lei que determina, por dez anos, uma cota de 20% de vagas para pretos e pardos no funcionalismo público. É o racismo como legado da escravidão que está na base da justificativa da nova lei.  É possível reparar o passado?

Como bem nos ensinou Hannah Arendt, as situações de extrema opressão em geral se estabelecem em meio a enormes cumplicidades das sociedades e frequentemente colocam suas vítimas em situações que geram humilhação e vergonha. E esta é, talvez, a maior violência, retirar às vítimas o direito ao passado. Pois para se lidar com um passado de opressão,  é mais confortável falar de honra, orgulho e resistência heroica, e essas virtudes, apesar de existirem, raramente prevalecem integralmente em situações em que estão em jogo a vida e a experiência da dor.

Uma vez passada a situação opressiva, também aqueles que conviveram com o horror sem incomodarem-se com ele, muitas vezes querem esquecer que o fizeram. Calam ou reconstroem suas relações com o passado.

Passaram-se quase 25 anos da Constituição de 1988 para que o Brasil conseguisse falar dos crimes e das cumplicidades na ditatura civil militar com a amplitude que está fazendo agora. É importante que o faça. A explosão de livros sobre o tema dá bem a medida de como a agenda historiográfica se faz  em diálogo direto com a politização das disputas de sentido sobre o passado. As perguntas dos historiadores são sempre alimentadas pela memória. História e Memória não são antagônicas, são formas diferentes e legítimas de se lidar com o passado, para que se possam estabelecer novos consensos sociais sobre o que é intolerável – e o horror não mais se repita.

Não apenas a reflexão sobre o passado recente pode ajudar a conseguir este intento. A nosso ver, no cerne dos crimes do regime instaurado em 1964, estão duas heranças culturais da sociedade brasileira: o elitismo, que faz uma minoria acreditar que “o povo não sabe votar” e a conivência com a tortura, comum a sociedades que conheceram a escravidão como instituição legítima, como bem nos lembrou Machado de Assis. Ela era praticada em quase todas as casas do Brasil oitocentista, de forma corriqueira, contra corpos pretos e pardos.

Nos últimos 30 anos, a pesquisa histórica muito avançou na compreensão da sociedade escravista e sobre o papel essencial dos homens e mulheres escravizados no seu devir. Sabemos como a vida se reinventava a cada dia,  engendrando a cumplicidade dos livres (independentemente da cor) e a resistência dos escravizados (mesmo quando limitados pelo teatro da subserviência). Sabemos também o quanto essas situações eram intercambiantes, fazendo da alforria, um objetivo dos cativos, e do temor da reescravização, um fantasma para os livres de cor. A linguagem racial fazia de escravos e forros, pretos e pardos, e da maioria dos livres, homens e mulheres que se queriam sem cor – e sem memória.

Mas os movimentos negros, finalmente, parecem ter conseguido voz no espaço público para não nos deixar esquecer. No Brasil, a memória da escravidão também está na ordem do dia. Na verdade, políticas de reparação em relação à escravidão atlântica estão em pauta em todo mundo e exigem romper o silêncio sobre os milhares de mortos e desaparecidos antes, durante e depois da travessia do Atlântico e sobre a herança racializada do estigma da escravização.

Também nesse tema, a agenda historiográfica se produz em diálogo com a memória e a politização do passado. Que a polifonia seja bem vinda. Não por acaso, a violência, problemática clássica dos estudos da escravidão, volta à pauta, reexaminada sob novas luzes, abrindo-se a novos debates e interpretações. Neste 31 de março, de muitas vozes e muitas polêmicas, em que a câmara dos deputados acaba de aprovar mais uma lei de ação afirmativa para pretos e pardos, agora no serviço público, fazemos um brinde ao ofício do historiador e à democracia brasileira.

Viva!

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