(martha abreu e hebe mattos / 14 de março de 2014)
Para todos os amantes da cultura negra tradicional do Rio de Janeiro, foi emocionante o desfile do Império Serrano neste carnaval de 2014. E não só por ser o Império uma escola de samba muito importante para o Carnaval, para a história e fundação do samba carioca e para o povo de Madureira. O Império homenageava “Angra com os Reis”, mas não a Angra dos poderosos e colunáveis da Ilha de Caras. Ao lado de suas belezas naturais também presentes, desfilou na Avenida uma Angra pouco visível e nada valorizada, embora exuberante para quem quer ver a cultura popular. Era a Angra dos Reis Negros, com seus palhaços e reis magos da folia; era a Angra dos africanos escravizados, que, com suas mãos, cortavam a cana para alimentar o tráfico negreiro e batiam o tambor para não esquecer o passado. Era a Angra do jongo, patrimônio cultural do Brasil; era a Angra do Quilombo do Bracuí, guardião da memória dos que não sobreviveram à travessia da Calunga, era a Angra dos Pretos Velhos. Era também uma Angra que encontrava pontos em comum com Madureira e homenageava jongueiros irmãos do morro da Serrinha, onde foi fundado o Grêmio Recreativo Escola de Samba Império Serrano. Foi mesmo arrepiante ver em destaque no carro do Quilombo, com um enorme Preto Velho ao centro, Tia Maria do jongo da Serrinha, comandando a festa e as homenagens.
Poucos sabem que pelo porto clandestino do Bracuí, em Angra dos Reis, no século XIX, entraram ilegalmente alguns milhares de africanos transformados em escravos no Vale do Paraíba para o trabalho nas fazendas de café, então principal produto da pauta de exportação do Brasil. O último desembarque ali, de mais de 500 negros de Moçambique, em 1853, foi alvo da repressão do estado imperial e ficou conhecido na imprensa como “O caso do Bracuí”. Ao todo, pelo menos 750.000 africanos embarcaram para serem escravizados ilegalmente no Brasil entre 1831 (data da primeira lei brasileira de proibição do tráfico atlântico de escravos) e 1850 (data da segunda lei que finalmente “pegou”). O local de chegada era também um local de horrores. Ali, os que não sobreviviam à terrível travessia do Atlântico ganhavam, sem maiores ritos, sua última morada, enquanto os que logravam se recuperar aprendiam rudimentos da língua portuguesa e a trabalhar e agir como “escravos”.
Muitos dos que sobreviveram não subiram a serra e ficaram em Angra e no Bracuí, no trabalho forçado de recepção dos novos africanos recém-chegados. Seus descendentes herdaram a terra abandonada após o fim do tráfico negreiro e resistiram por todo o século XX a inúmeras tentativas de expulsão. Ainda hoje, apesar do seu reconhecimento oficial como remanescentes de quilombo, não receberam a titulação das terras. E disso depende a sobrevivência do grupo e de sua poderosa tradição oral. Grandes jongueiros, os negros do Bracuí não esqueceram nem a cultura herdada nem as tragédias testemunhadas por seus antepassados. É a memória do nosso holocausto particular, nas belas praias de Angra, que os negros do Bracuí inconfortavelmente nos trazem. “É filho quilombola, é negro guerreiro de Bracuí”. Assim o samba do Império homenageava a sua saga de lutas. Bela homenagem dos dois Eduardos que assinaram o enredo, o carnavalesco Eduardo Gonçalves e o historiador Eduardo Nunes.
Mas os negros do Bracuí não estavam na Sapucaí. Nem a prefeitura de Angra nem a Escola de Samba ofereceram condições para que o grupo, famoso por seu jongo, participasse do desfile. O povo do Bracuí não foi convidado para a festa e não desfilou. A cobertura da imprensa também não registrou a homenagem. Apesar das informações enviadas pelo carnavalesco, os comentários sobre o Bracuí real, e até mesmo sobre o jongo da Serrinha, foram breves e superficiais. Para a maior parte dos formadores de opinião em atuação no carnaval, o jongo e os jongueiros só são reverenciados como vaga herança do passado.
Mas eles estão bem vivos, fazem parte do presente, e trazem na cultura e tradição oral a memória da tragédia e da riqueza herdada dos mais de 20 anos de contrabando de africanos escravizados no litoral fluminense. No mesmo fim de semana que um filme como “12 anos de escravidão” ganhava o Oscar nos Estados Unidos, os herdeiros vivos dos africanos escravizados ilegalmente no Brasil eram mais uma vez invisibilizados, em plena Sapucaí, apesar das homenagens aos seus antepassados. Eles assistiram decepcionados, de casa, o desfile. No dia seguinte, a sede do Quilombo de Santa Rita do Bracuí, erguida num duro trabalho de mutirão e não concluída, por falta de apoio técnico de agencias do Iphan e da Prefeitura de Angra dos Reis, caiu. A luta do povo guerreiro do Bracuí, tão cantada na Avenida, parece não ter fim.
foto enviada por Eduardo Nunes, “O reencontro na roda de jongo – O Quilombo da História em Santa Rita do Bracuí e o Quilombo do Samba no morro da Serrinha”