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O Conversas de Historiadoras pede passagem em 2023

Muito ocupadas (como de hábito) desde as eleições, voltamos agora para saudar o novo ano e a vitória da democracia. Não prometemos periodicidade, mas o blog continua ativo.

Aproveitamos para convidar todos que estiverem no Rio para uma conversa com Hebe Mattos e Mônica Lima na livraria da Travessa, em Botafogo, para o lançamento do livro Cartas de África, de André Rebouças, organizado por Hebe Mattos. Martha Abreu garantiu presença e Keila Grinberg fez uma linda resenha sobre a obra para o site da editora, que reproduzimos logo depois do convite. Vale a leitura.

O SOL AFRICANO DE ANDRÉ REBOUÇAS

Keila Grinberg

“Necessito de floresta virgem e de sol africano.” É assim que André Rebouças se despede de Antônio Júlio Machado, responsável pelo projeto de construção da estrada de ferro de Luanda a Ambaca, em Angola. André escrevia de Marselha, de onde tentava conseguir emprego para ir trabalhar na África. Era fevereiro de 1892, e d. Pedro ii falecera alguns meses antes, em Paris. Rebouças tinha saído do Brasil com a deposição da Monarquia, em novembro de 1889, e acompanhara a família imperial em seu exílio em Portugal e na França. A morte do imperador, por quem Rebouças devotava verdadeira veneração, havia sido um golpe duro, e ele nem cogitava retornar ao Brasil.

Na carta seguinte, endereçada ao seu grande amigo Taunay, explica seus planos: “Nada posso fazer de melhor do que ir à Africa: escrever um livro tolstoico — Em torno d’África — e esperar por lá que termine a expiação aguda dos seculares pecados do Brasil escravocrata e monopolizador de terras em latifúndios indefinidos”. Em fins de março, André embarca no navio Malange, de onde segue para Moçambique. Não retornaria ao Brasil. Desgostoso com o país, estava decidido a dar o resto de sua vida “ao continente de seus pré-avós africanos”.

Com organização de Hebe Mattos, Cartas da África: registro de correspondência, 1891-1893, de André Rebouças, é uma seleção de cartas, quase todas inéditas, escritas entre outubro de 1891 e julho de 1893. Conhecido por seus diários, André também guardava em cadernos cópias das cartas que enviava — de onde saiu o material publicado agora. Nem bem lançado, o livro, primeiro volume de uma série de cinco devotada aos escritos de André Rebouças, já estava entre os melhores lançamentos de 2022. Cartas da África não só é um dos lançamentos mais importantes de 2022, mas é livro para se tornar referência imediata para especialistas e interessados no tema.

Em primeiro lugar, por trazer novidades fundamentais para o estudo da vida e do pensamento de André Rebouças, um dos maiores intelectuais de seu tempo. Resultado de décadas de pesquisa, as cartas do exílio eram praticamente desconhecidas até mesmo dos estudiosos. Foram organizadas de forma a demonstrar o cotidiano, os percalços e, principalmente, as visões de André Rebouças. Ao lê-las, conhecemos um homem com saudade dos amigos, preocupadíssimo com os rumos do Brasil, atento ao que se passava nas repúblicas vizinhas da Argentina e do Chile e, principalmente, à sua volta. Não escaparam de seus olhos episódios de violência em Lourenço Marques, atual Maputo, em Moçambique, e principalmente em Barberton, na África do Sul, que Rebouças relaciona à violência racial e às práticas da escravização.

A escolha de iniciar o mergulho na correspondência de André antes de sua viagem à África foi particularmente feliz. As cartas do período da morte de d. Pedro ii mostram que a decisão de deixar a França e não retornar ao Brasil está relacionada à ausência de perspectivas que o falecimento do monarca significava para ele. Afinal, como escreve em agosto de 1892 a seu amigo Rangel da Costa, “o Brasil sem d. Pedro ii […] parece-me o vácuo, a venialidade”. Rebouças abominava o regime republicano como havia sido implantado no Brasil. Na mesma carta, continua: “E essa pobre gente? Ainda não compreendendo em que foram conquistados por militares ambiciosos e por politicantes e agiotas sem o mínimo exemplo? Se o Brasil pudesse ser república, desde muito o presidente seria Pedro ii e o secretário André Rebouças. Sair da senzala da escravidão e embarafundar pelo quartel da soldadesca sanguinária e bárbara, sem remorsos de fuzilar e bombardear, não é fazer república, é baixar ao último degrau da barbárie”. Cartas da África se encerra com a chegada de Rebouças a Funchal, onde viveria até sua morte, em 1898. As cartas desse período serão publicadas no último livro da série.

Tão importante quanto a organização e a divulgação das cartas de exílio é a belíssima leitura que Hebe Mattos faz no posfácio. O André Rebouças que ela apresenta não é o patrono da engenharia brasileira, título pelo qual ele e seu irmão Antônio Pereira Rebouças Filho são mais conhecidos, mas o abolicionista monarquista e sua aguda percepção racial. Mesmo desiludido com o Brasil, Rebouças não deixava de combater os interesses escravocratas onde os percebia, e via a si próprio cada vez mais como africano.

Hebe reflete sobre a trajetória dos Rebouças no contexto da institucionalização do racismo brasileiro e dos “dolorosos processos de branqueamento” que tanto ainda marcam a sociedade brasileira. Se, como Hebe argumenta, o próprio André não foi embranquecido pela memória coletiva posterior, a história de sua família foi comumente celebrada como prova da possibilidade de ascensão social dos negros livres no Império e, depois, como evidência da inexistência de racismo no Brasil. Mas a análise de Hebe mostra justamente o contrário.

Na década de 1890, o que André queria era encontrar a paz no sol africano e na floresta virgem — cuja obrigação de civilizar, aliás, cabia aos europeus, que tanto haviam lucrado com séculos de escravização. Vencido pela melancolia, viveu plenamente sua “dupla consciência”, expressão usada por Paul Gilroy em O Atlântico negro para definir o profundo dilema da modernidade, que, em larga medida, foi enfrentado por Rebouças em toda a sua existência: o do homem universal, crente na ciência e no potencial redentor da civilização ocidental e ao mesmo tempo profundamente consciente de sua negritude e de seu próprio passado africano. Impossível continuar a ver André Rebouças da mesma maneira depois de ler o posfácio de Hebe Mattos.

Devo concluir advertindo que sou mais do que suspeita para escrever sobre Cartas da África. Sou fã de carteirinha das edições da Chão, uma das iniciativas mais instigantes do meio editorial brasileiro e um presente para nós, historiadores. Além disso, estudo a família Rebouças há mais de vinte anos, e embora Hebe generosamente afirme que nós duas dividimos achados e reflexões sobre o tema, a verdade é que sou eu que sigo seus passos. Por isso, se fosse a leitora deste texto, eu desconfiaria e correria à livraria mais próxima para ler Cartas da África por conta própria.

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É Dia de Voto!

Vale a pena conferir o lindo painel da ANPUH nacional, no site HISTÓRIA ABERTA, com dezenas de depoimentos de “Como Vota a Comunidade Historiadora?

As historiadoras do blog atuaram ativamente no período eleitoral, com artigos de opinião em diversos veículos. Reproduzimos aqui o depoimento das coordenadoras do projeto Passados Presentes, que participaram da chamada da ANPUH NACIONAL, para registro aos que nos acompanham e na esperança de que a democracia vencerá a eleição mais decisiva da nossa história.

Sou Hebe Mattos. Historiadora. Professora da UFJF e da UFF. Meu voto é público e todos que me acompanham o conhecem. Voto Lula13, sobretudo e antes de tudo pelo futuro do planeta e da democracia no Brasil.

Como profissional de história que pesquisa sociedades escravistas e pós-escravistas no mundo atlântico, tornei-me ativista antirracista. Como avó de três netos de uma família homoafetiva, sou parceira em tempo integral da luta por direitos da comunidade LGBTQIA+. Como intelectual, os limites colocados pelo modelo de desenvolvimento capitalista em vigor à construção de uma sociedade menos desigual e ao futuro da vida no planeta são questões que considero centrais em qualquer eleição. Neste cenário, Lula sempre foi o meu candidato.

Não porque tenha respostas a todas as minhas demandas, mas porque ele e seu partido, o PT, quando governaram o Brasil, souberam canalizar, democraticamente, as divergências e potencialidades do país para implementar reformas possíveis e há muito demandadas pelos movimentos negro, ambientalista, de trabalhadores e pela igualdade de gênero.

A espiral reacionária que enfrentamos é resposta ao muito que avançamos. Sua força é a força do passado, avisamos nós, que participamos do movimento historiadores pela democracia em 2016.

Naquele momento, o Brasil dava o passo decisivo para quebrar o frágil equilíbrio da república de 1988. O atual presidente e todo o seu show de horrores são consequências lógicas do teatro macabro daquele 17 de abril, em que um então deputado votou em homenagem a um torturador e à ditadura militar e foi aplaudido no congresso nacional. A prisão ilegal de Lula e a eleição de um presidente de extrema direita foram desdobramentos da caixa de pandora então e ainda aberta.

Como historiadora, não subestimo a força do passado. Como democrata, procuro saídas para construir diálogo político com todos os eleitos no primeiro turno dessa eleição. Incluindo os representantes do movimento reacionário ora no poder. Lula é a pessoa certa no lugar certo. Precisamos de sua capacidade de diálogo e escuta.

Esta eleição tem a força de um plebiscito entre democracia e autocracia, entre cidadania para todos e a institucionalização do ethos colonial que informa a história profunda do país. Um país que gere a maior reserva verde do planeta. Estou preocupada e, ao mesmo tempo, esperançosa. Não temos plano B, mas temos Lula.

Faço parte de uma geração que não lutou diretamente contra ditadura. Éramos muito jovens. Minha geração lutou mesmo pela redemocratização, pelas Diretas já e por uma Constituição que garantisse direitos a todos. Ditadura nunca mais!!! A partir do final dos anos 1970 e ao longo dos anos 1980, participamos do renascimento do movimento estudantil, do movimento de bairros, de mulheres, de professores, do movimento dos meninos de rua e das lutas pelas Diretas Já! Para quem era professor nos anos 1980, foi com muita esperança que vivemos a política dos CIEPS no Rio de Janeiro, que conseguimos acabar com o famigerado Estudos Sociais implantados na ditadura, que ajudamos a construir o Estatuto da Criança e do Adolescente e que aprendemos a importância da memória para as lutas políticas. Acompanhamos o nascimento do PT, do MST e do movimento LGBT, assim como o crescimento dos movimentos negro e indígena. Nos anos 1980, sentíamos que era possível mudar, transformar, construir e sonhar.

Estamos de novo num momento de ter esperança de um tempo melhor e de reconstruir o que foi violentamente interrompido e despedaçado. Voltar a sonhar para mim é também não esquecer! Não esquecer tudo o que vivi e vivemos como professores, como professores de história, entre 2003 e 2016: as políticas educacionais, tão visíveis no investimento em pesquisa, distribuição de livros didáticos, Leis como 11635, ampliação do número de universidades, institutos federais e ações afirmativas; e as políticas culturais inclusivas, que ampliaram a cidadania e a distribuição de renda, ao reconhecerem os patrimônios das culturas negras, indígenas e populares.

Nós não vamos esquecer! O voto em Lula é para mantermos e ampliarmos os direitos conquistados, para continuarmos a ter esperança em um Brasil diverso, antirracista e inclusivo, onde tenhamos direito à história, uma história justa para todxs.

Voltar a sonhar é votar em Lula 2022!

Martha Abreu é professora do programa de pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense.

Nesse domingo eu não vou votar. Morando nos Estados Unidos, tive que fazer a escolha – esta sim, muito difícil — entre o primeiro e o segundo turnos. Apostei no primeiro, ajudei a eleger duas deputadas, perdi no senado e no governo do Estado do Rio de Janeiro, e como faço desde 1989, votei no PT para presidente.

Como historiadora da escravidão e do direito, não concebo que seja possível votar em outro candidato que não o Lula. Quando se trata da luta por direitos, a prioridade máxima é a da luta antirracista. É claro que há ainda um longuíssimo caminho a percorrer para romper de vez com o privilégio branco; mas não podemos admitir nenhum retrocesso, nem compactuar com falas e práticas racistas pregadas pelo atual governo.

Voto em defesa das famílias brasileiras. Famílias com mães e avós solteiras, dois pais, duas mães, um pai e uma mãe, e qualquer outra configuração gerada pelo amor. A minha é composta por duas mulheres, duas filhas, três enteados e um ex-marido. Não há lugar para ela no Brasil do atual presidente.

Voto também em defesa das religiões. A batalha pelo reconhecimento da diversidade religiosa será longa, e não avançaremos se não reconhecermos a legitimidade de todas as crenças e descrenças da nossa sociedade. Eu, judia descrente, defendo até mais não poder o direito de cada um poder ir à sua igreja, ao seu terreiro, à sua sinagoga. É como judia também que voto no Lula, assim como votaria em qualquer candidato que se contrapusesse ao fascismo; e hoje nenhum de nós pode dizer que não sabia que o atual governo tem o fascismo como princípio. Os judeus que se aliam à extrema direita dão as costas para a História. Zombam dos seus antepassados.

Por fim, voto como cidadã deste planeta. Voto pela Amazônia. Com o Lula lá, talvez, quem sabe, ainda haja uma possibilidade de revertermos o fim da maior floresta do mundo. É a nossa única chance de deixar algum legado para nossos filhos e netos.

No domingo, estarei com o coração no Brasil, acompanhando a apuração com ansiedade e esperança. Será difícil. Mas desde quando foi fácil?

Keila Grinberg é professora titular licenciada do Departamento de História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e professora titular do Departamento de História e Diretora do Center for Latin American Studies da Universidade de Pittsburgh.

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NOTA DE REPÚDIO

PUBLICAMOS A SEGUIR NOTA DE REPÚDIO à Resolução nº 11 de 20 de março de 2020 do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República. Em plena crise mundial da pandemia do Corona Vírus, não podemos deixar passar em branco um ataque dessa monta aos direitos constitucionais dos quilombolas de Alcântara.

O Sindicato dos Trabalhadores Agricultores e Agricultoras Familiares de Alcântara (STTR), o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar do Município de Alcântara (SINTRAF), a Associação do Território Quilombola de Alcântara (ATEQUILA), o Movimento de Mulheres Trabalhadoras de Alcântara e o Movimento dos Atingidos pela Base Espacial (MABE) e as instituições abaixo subscritas, cientes da Resolução nº 11 de 20 de março de 2020 do Gabinete de Segurança Institucional a Presidência da República publicada no Diário Oficial da União em 27.03.2020 vem a publico repudiar veementemente o teor da referida Resolução que buscar estabelecer ao arrepio de leis nacionais e internacionais as diretrizes para a expulsão das comunidades quilombolas de Alcântara de seus territórios.
Consideramos a medida arbitrária e totalmente ilegal, uma vez que afronta diversos dispositivos legais de proteção dos direitos das comunidades remanescentes de quilombo, bem como, tratados e convenções internacionais referidos aos direitos destas comunidades.
Por fim, não admitimos quaisquer possibilidades de deslocamentos reafirmamos nossa irrestrita e ampla defesa às comunidades quilombolas de Alcântara no direito de permanecer no seu território tradicional na sua inteireza e plenitude. Acionaremos todos os meios e medidas possíveis para resguardá-las.
Atenciosamente.
Sindicato dos Trabalhadores Agricultores e Agricultoras Familiares de Alcântara (STTR).
Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar do Município de Alcântara (SINTRAF).
Associação do Território Quilombola de Alcântara (ATEQUILA).
Movimento de Mulheres Trabalhadoras de Alcântara e o Movimento dos Atingidos pela Base Espacial (MABE)

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Referência da imagem.

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LIBERDADE DE EXPRESSÃO, LIBERDADE ACADÊMICA … por Sidney Chalhoub

Reina a balbúrdia nas universidades da Bruzundanga. Ou ao menos é o que pensam sobre elas algumas autoridades governamentais. É preciso respeitar a liberdade de expressão. A bronca é livre, assim como a desinformação e a ignorância. Quase toda a pesquisa científica feita no país acontece em universidades particulares. O presidente e seus comandados podem ordenar o fim da sociologia, da filosofia, da astrologia e do que mais houver que lhes der na veneta. Pesquisas mostram que cigarro não faz mal à saúde. O aquecimento global é engodo marxista (Gramsci) para frear o desenvolvimento do capitalismo. O evolucionismo é uma hipótese tão plausível quanto Adão, Eva, o paraíso e a maçã. Nunca houve ditadura na América Latina. Na Bruzundanga, nem ditabranda. A Terra é plana.

Ó vida, ó céus, ó azar! Explicar tudo cansa, mas vamos lá, começando pelo começo (sic). Liberdade de expressão e liberdade acadêmica são conceitos diferentes. A segunda depende da primeira, mas é cousa doutro naipe. A liberdade de expressão se exerce no espaço público de forma ampla. É o direito de deitar falação sobre aquilo que se sabe ou não, que se ama ou odeia, sobre aquilo do qual pouco se lhe dá, que se deseja, que dá paúra, e assim por diante. Direito robusto, coqueluche do nosso tempo, defendido com galhardia por todos, mais eficazmente ainda por grandes empresas que exploram certos serviços tecnológicos globais. Algumas democracias do mundo impõem restrições a esse direito nosso de cada dia, para evitar que se berre em alto e bom som o desejo de exterminar outra raça, ou fiéis doutra religião, ou gente de orientação sexual diferente da nossa, etc. Mas a exceção não faz a regra. O que mais vale em democracias é o direito de cada um dizer o que lhe vem à cachola.

Liberdade acadêmica é o conjunto de condições institucionais que garantem a pesquisadores, professores e estudantes a produção de conhecimento com autonomia e independência –quer dizer, livre da ingerência do Estado e de outros grupos de interesse existentes na sociedade. É um ideal, um objetivo em permanente construção, um direito que se defende no dia a dia das instituições de ensino e pesquisa. A liberdade acadêmica diz respeito a enunciados de conhecimento, à prerrogativa de exprimir livremente o resultado de pesquisas científicas submetidas a critérios de demonstração e prova aceitos pelas comunidades de pesquisadores de cada disciplina, sujeitas à crítica dos pares, aos erros, às correções e acréscimos que estão no centro desse tipo de atividade. Há um mundo de regras e exigências que precisam ser satisfeitas para que se chegue a dizer algo cientificamente relevante. Não se chega lá sem a formação adequada obtida em cursos de graduação, mestrado, doutorado. Sem lidar com as questões feitas por bancas de titulação e de concurso; sem enfrentar o crivo de pareceristas de periódicos especializados, de editoras.

Como se vê, liberdade de expressão e liberdade acadêmica são cousas muito diversas. As universidades são espaços que, por sua natureza, acolhem e abraçam a livre expressão de ideias. A liberdade de expressão é valor crucial da vida universitária. Todavia, o exercício de tal direito nas universidades não cria prerrogativas que são decorrentes apenas da liberdade acadêmica. Achar que a Terra é plana não ajudará ninguém a se tornar bacharel em geografia. Não há biólogo que derive do criacionismo hipóteses a serem testadas nos laboratórios universitários. Ninguém será aprovado num concurso público a uma cadeira na área de história negando o fato de haverem ocorrido ditaduras militares na América Latina durante a chamada Guerra Fria. E assim por diante. A liberdade de expressão, por si só, não senta nos bancos universitários. O valor central nesses espaços é o conhecimento produzido em ambiente de liberdade acadêmica.

Os extremismos de direita, mundo afora, ignoram a diferença básica entre liberdade de expressão e liberdade acadêmica. Por malícia ou desconhecimento, o governo da Bruzundanga parece pensar que pode ditar o que se ensinará nas escolas e universidades do país. Não pode. Não passarão. Instituições de ensino e pesquisa são lugares de conhecimento e formação –exigem tempo, paciência, determinação, obedecem a regras e protocolos rigorosos. As universidades públicas brasileiras pertencem à sociedade. Foram construídas em décadas de trabalho por cientistas, professores, estudantes e funcionários. Expandiram-se nos últimos anos. Existem em maior número, estão maiores e melhores. Na medida do possível, tornaram-se mais inclusivas, trouxeram a sociedade para dentro delas. Tem muito a melhorar, como tem de ser, como é da natureza delas. Serão defendidas pela sociedade brasileira. E contarão com ampla e irrestrita solidariedade da comunidade acadêmica internacional.

Sidney Chalhoub

Professor of History, Harvard University

Professor Titular Colaborador, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)

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#DitaduraNuncaMais

55557267_10205677916183655_7468210411276337152_nSobre o tema, recomendamos a leitura do texto do historiador Daniel Aarão Reis, na Ilustríssima de hoje, o artigo do The Intercept Brasil sobre o número de presos nos primeiros dias do Golpe de 1964,  o depoimento de Paulo Coelho no Washington Post e a reportagem do El Pais sobre documento da CIA  sobre ”Decisão do presidente brasileiro, Ernesto Geisel, de continuar com as execuções sumárias de subversivos perigosos, sob certas condições”. Recomendamos também a reportagem de Carlos Madeiro para o UOL sobre a repressão da ditadura aos movimentos negros antiracistas e, ainda, a a reportagem da Midia Ninja sobre os dados da Comissão Nacional da Verdade sobre o holocausto Indígena nos anos de chumbo.

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À guisa de retrospectiva …

Terminou ontem o mandato de Dilma Rousseff.

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A  vitória eleitoral da extrema direita se deve em grande parte à força dessa imagem. Para o machismo e a misoginia ainda predominantes em nossa sociedade, uma posse sem o gênero masculino no carro presidencial foi da ordem do intolerável. Mas não podemos esquecer que a posse da primeira mulher presidente do Brasil aconteceu, ainda que não a tenham deixado completar o segundo mandato. Assim como a do presidente operário que  tirou o Brasil do mapa da fome. Resistir é também dever de memória.

Recupero aqui, como restrospectiva e forma de arquivamento, os artigos que publiquei na sessão de opinião da Folha de São Paulo, desde o golpe branco que destituiu a presidenta eleita. Aos que quiserem se aventurar, acredito que a leitura em sequência deles acrescenta algo à compreensão do processo que estamos vivendo.

Agora, é preciso dar tempo ao tempo.  Mesmo que a vitória eleitoral da extrema direita seja, em grande parte, resultado de mais de dois anos de golpe, ainda assim o novo governo volta a ter a legitimidade das urnas. Apesar de ter, nas primeiras 24 horas, extinto a secretaria da diversidade e inclusão do MEC, passado a demarcação das terras quilombolas e indígenas para o Ministério da Agricultura e retirado os direitos da população LGBT da pauta dos direitos humanos, o novo presidente jurou respeitar a constituição. Que assim seja.

O blog sai de férias, como de hábito. Em março vamos avaliar se teremos fôlego para continuar as conversas.

Convidamos Magnoli a vir dançar a quadrilha da democracia

publicado em 27/06/2016  02h00 (reproduzido sem alterações)

Em tempos de festa junina, Demétrio Magnoli acusa o movimento Historiadores Pela Democracia de “formação de quadrilha”, em texto publicado na Folha em 25/6.

O artigo começa com o meu nome, honrando-me com a companhia de renomadíssimos colegas de ofício que, estando no exterior, só puderam participar da iniciativa com depoimentos em vídeo ou por escrito.

Esses e outros depoimentos e vídeos podem ser consultados no tumblr “Historiadores pela Democracia”. Convido todos a fazerem isso.

Como não é historiador, Demétrio Magnoli não consultou tais documentos. Se o fez, omite isso, mas ainda assim afirma que nossa iniciativa “viola os princípios que regem o ofício do historiador”, que temos “vocação totalitária” e que queremos escrever versão da história útil para o “Partido”, com P maiúsculo.

Como já tive oportunidade de escrever no blog “Conversa de historiadoras”, sobre editorial de teor semelhante publicado no jornal “O Estado de S. Paulo”, a utilização desse tipo de lógica maniqueísta por órgãos de imprensa é surpreendente e muito preocupante.

Os depoimentos individuais foram feitos por alguns dos mais importantes historiadores do país, mas também por jovens profissionais e estudantes de história, englobando uma enorme diversidade de orientações políticas, bem como de escolas historiográficas e teóricas.

Juntos, formam uma narrativa polifônica e plural, que vem se somar ao alentado movimento da sociedade civil em defesa da Constituição de 1988 e de resistência ao governo interino, ao programa que tem desenvolvido sem o amparo das urnas e à forma como chegou ao poder.

Em comum, têm a preocupação com os sentidos republicanos e democráticos da ordem política brasileira, ameaçados desde a votação da Câmara dos Deputados de 17 de abril, de triste memória.

“A Força do Passado” é o título do arquivo de textos do tumblr, com exercícios de história imediata publicados ao longo dos últimos meses, que servirão de base para a organização de um livro.

A tese de que há um golpe branco em andamento, como reação conservadora às mudanças da sociedade brasileira produzidas desde a adoção da Constituição de 1988, é hipótese que defendo, junto a outros colegas e, por enquanto, inspirou o título da coletânea.

Para os que discordam que um golpe branco à democracia brasileira está em curso, basta escolher dialogar com alguns dos muitos e diferenciados argumentos dos depoimentos e textos arquivados no tumblr “Historiadores pela Democracia”. As autorias individuais estão bem assinaladas e os autores têm tradição democrática.

Por fim, para não parecer que só tenho discordância com o artigo de Magnoli, gostaria de me solidarizar com a sua defesa dos cinco jornalistas da “Gazeta do Povo” processados por juízes paranaenses.

Quanto ao título do seu artigo, não pretendemos processá-lo, e aqui falo pelos colegas citados. Temos certeza de que eram as festas juninas que Magnoli tinha em mente quando falou em formação de quadrilha.

Nós o convidamos a deixar de lado o maniqueísmo e o discurso de intolerância e a vir dançar conosco a quadrilha da democracia.

Os historiadores e a democracia

Publicado em 31/08/2016  02h00 (reproduzido sem alterações)

Em plena votação final do processo de impeachment no Senado, o livro “Historiadores pela Democracia: o Golpe de 2016 e a Força do Passado” vem a público, pela Alameda Editorial, organizado por mim, Tânia Bessone e Beatriz Mamigonian.

Escritos no calor do processo da atual crise política brasileira, os textos reunidos são um exercício de história imediata, organizados em ordem cronológica, a partir de uma proposta de periodização do processo político em curso, um dos campos mais clássicos de atuação do historiador profissional.

O livro é também uma resposta às críticas ao movimento Historiadores pela Democracia, veiculadas nas páginas de opinião de jornais e revistas e nas redes sociais após o lançamento do vídeo-manifesto do movimento.

Essas críticas, no que apresentavam de substantivo, são similares às formuladas a um movimento que surgiu pouco depois nos EUA, Historians Against Trump (historiadores contra Trump). Alegam que os autores poderiam se manifestar politicamente enquanto cidadãos, mas não como historiadores profissionais.

Aqui, como lá, tal juízo se estrutura a partir de uma visão antiquada e autoritária do ofício do historiador.

A historiografia contemporânea não supõe a construção de versões unívocas da história, mas um conhecimento sobre o passado que está sempre se transformando a partir da formulação de novas questões. É o rigor metodológico, com diversidade teórica e multiplicidade de abordagens, o que define nossa formação profissional.

No livro, a partir de um olhar historiográfico, os autores tomam por base problemas de pesquisa específicos para interpretar os acontecimentos políticos recentes. A força do legado do passado escravista, ainda atuante na sociedade brasileira, é a chave de algumas abordagens.

Uma discussão do campo de possibilidades em cada contexto analisado informa muitos dos textos. Se há algo que o conjunto reunido sugere é uma surpreendente e, na maioria das vezes, indesejada capacidade de previsão.

“Os Riscos do Vice-presidencialismo”, de 2009, de Luiz Felipe Alencastro, abre a narrativa do volume. Na sequência, os textos nos fazem reviver as eleições de 2014, a continuada contestação ao resultado eleitoral em 2015 e a força da cultura política da hipocrisia nos acontecimentos recentes.

No conjunto, os artigos constroem uma narrativa com final aberto do golpe institucional de 2016.

Os lançamentos em Brasília e em São Paulo, durante o simulacro de julgamento no Senado da presidente eleita, Dilma Rousseff, colocam o livro e seus autores também como atores da história, que, afinal, todos fazemos.

E continuaremos a fazer, em qualquer cenário futuro, em defesa da democracia e dos direitos inscritos na Constituição de 1988.

A velha democracia

Publicado em 27/09/2016  02h00 (reproduzido sem alterações)

A crise política que vivemos é em parte tipicamente brasileira (ou latino-americana), com suas velhas elites sempre dispostas ao golpe contra a vontade política das maiorias, mas é também reflexo da crise global da democracia representativa. A discussão sobre os limites da legalidade democrática e o estado de exceção está na ordem do dia.

O uso do termo “estado de exceção” -inspirado no livro homônimo do filósofo Giorgio Agamben- para caracterizar a ordem de prisão decretada pelo juiz Sergio Moro contra o ex-ministro Guido Mantega causou celeuma entre alguns acadêmicos.

Como de hábito, não faltou quem lembrasse que a comoção com a prisão sem motivos claros, em um hospital em que ele acompanhava a mulher doente, seria exagerada. Pareceria sugerir que se inaugurava algo novo na Justiça brasileira, quando a prática seria de fato corriqueira nas periferias.

A afirmação é verdadeira e coloca em foco um limite fundamental da experiência democrática brasileira. Mas é também problemática, pois, levada às últimas consequências do ponto de vista lógico, acaba por tornar indistintas as fronteiras entre estado de exceção e Estado de Direito.

No limite, torna possível afirmar, por exemplo, não ter havido propriamente um golpe contra o regime democrático brasileiro em 1964, simplesmente porque não tínhamos um regime democrático na ocasião. Afinal, como poderia existir democracia de fato em um país em que os analfabetos não votavam e o Partido Comunista estava cassado?

Continuando com o mesmo raciocínio, também o Estado Novo não teria sido um golpe à ordem democrática, pois sob as Constituições de 1824, 1891 e 1934 havia fraude eleitoral, práticas de tortura, inúmeras rupturas políticas e restrições aos direitos de voto.

Uma baixa adesão aos valores democráticos é um pré-requisito contextual para qualquer golpe contra a democracia. As experiências democráticas concretas têm zonas de exceção mais ou menos amplas, delimitadas por fronteiras culturais e hierarquias socioeconômicas.

No Brasil, tais espaços de exceção continuam especialmente amplos e fortemente marcados pelo racismo. O Estado democrático de Direito é formado, entretanto, pela presunção da ilegalidade de tais práticas. Desvalorizar as fronteiras formais entre Estado de Direito e estado de exceção deslegitima a defesa dos direitos democráticos efetivamente existentes.

A democracia dos Estados Unidos conviveu com a legalidade da escravidão, seguida da segregação racial e depois do encarceramento negro em massa. Os Estados liberais europeus não têm história muito mais edificante. Isso não retira a importância dos valores democráticos na história dessas sociedades.

Como bem sinalizou a presidente eleita Dilma Rousseff, a divulgação ilegal de conversas da Presidência da República rompeu a fronteira entre Estado de Direito e estado de exceção, construindo as condições para o golpe parlamentar que a tirou do poder. A seletividade política crescente de membros do Judiciário brasileiro é mais um passo em direção ao abismo.

A tentativa de aprovação de uma reforma educacional profunda por medida provisória, também. A prisão de Mantega, abortada pela reação da opinião pública, era parte do processo. Ou damos os nomes aos bois agora ou em breve não poderemos mais gritar para saber onde está o Amarildo.

Sem esperança, não há democracia

Publicado em 01/08/2017  02h00 (reproduzido sem alterações)

Em uma recente roda de conversa da qual participei no Centro Ruth Cardoso, em São Paulo, Marcelo Ridente nos fez a todos constatar que, pela primeira vez desde o final dos anos 1970, olhávamos com pessimismo para o futuro do Brasil.

Tentei me consolar da triste realidade refletindo sobre o caráter internacional da crise que vivemos, mas logo me lembrei de que o pessimismo à brasileira estava fundado em algo mais do que o sentido reacionário dos eventos sociais que estão na base da onda conservadora que assola o mundo.

O avanço reacionário no Brasil tem um travo mais amargo. Ele vem junto com a nostalgia de um ordenamento estamental de sociedade, inscrito sobretudo no desrespeito à soberania popular.

Um desrespeito naturalizado na velha formulação de que o povo não sabe votar, o que torna possível aprovar, sem qualquer constrangimento, um programa de reformas, em muitos aspectos inconstitucional e contrário a direitos humanos fundamentais dos quais o Brasil é signatário, derrotado nas urnas.

O avanço reacionário no Brasil está inscrito também, e principalmente, na dificuldade de nosso Judiciário, quase todo recrutado nas classes médias e altas tradicionais, em julgar de forma imparcial integrantes de seu grupo racial e social.

Nossas instituições jurídicas, ainda que funcionando livremente, não foram capazes de impedir o golpe parlamentar de 2016, perpetrado por congressistas quase todos acusados da prática de atos ilícitos.

Representantes das mais diferentes instâncias do Judiciário brasileiro podem condenar, sem provas concretas e a penas exorbitantes, jovens negros que ousam sair às ruas em manifestações políticas ou ex-operários que ousaram ser presidente da República e tirar o Brasil do mapa da fome.

No entanto, mantêm livres e exercendo mandato parlamentar, com base em noções aristocráticas de reputação e honra, senadores de famílias de elite denunciados pelo Ministério Público por corrupção passiva e obstrução à Justiça.

Golpes parlamentares podem derrubar presidentes de forma ilegítima; a Justiça pode legalmente produzir injustiças, mas nada é mais grave do que a perda de confiança nas instituições democráticas. Alguém ainda espera que o Congresso vá autorizar a investigação das gravíssimas denúncias contra Michel Temer? Sem esperança, não há democracia.

Desde a primeira eleição de Lula, em 2002, tem havido comparações de seu papel histórico no Brasil ao de Abraham Lincoln nos Estados Unidos.

Pode-se dizer, no mínimo, que a emergência política de ambos foi consequência das chamadas revoluções de mercado, ocorridas nos dois países nas décadas que precederam seus governos.

Lincoln e Lula buscaram aprofundar o que percebiam ser frutos positivos da generalização da economia de mercado, mas também tentaram democratizar os seus efeitos.

Lincoln nunca foi um abolicionista radical, Lula tampouco um socialista, como sempre registraram seus críticos à esquerda. Mas as sociedades estamentais que eles desafiaram não os puderam perdoar.

Como a velha elite sulista derrotada nos EUA, os golpistas brasileiros estão à procura de seu John Wilkes Booth. O medo às vezes mata a esperança. Sergio Moro se apresenta para o papel, trocando a pistola pela toga.

Sobre o crime comum de Lula

Publicado em 9.abr.2018 às 2h00 (reproduzido com pequenas atualizações)

Foi manchete nesta FolhaLula é o primeiro presidente da República brasileiro condenado por crime comum. As fragilidades das acusações ao ex-presidente me parecem suficientes para fundamentar a convicção da perseguição política em qualquer observador imparcial. Mas, infelizmente, é um fato.

Esse fato revela o sentido mais profundo do golpe iniciado em 2016, processo sem direção política específica, resultado de um inusitado consenso elitista e antidemocrático envolvendo os principais formadores de opinião do Brasil.

Boa parte das convicções da Lava Jato, exemplificada sobretudo no famoso Powerpoint apresentado por alguns procuradores, está baseada em uma interpretação da história brasileira recente. Essa interpretação guarda inquietante analogia com um episódio da história dos Estados Unidos: o processo de desqualificação política da chamada reconstrução radical, após a guerra de secessão que aboliu a escravidão naquele país, um dos meus temas recentes de pesquisa.

Para os que não conhecem a história, eu conto. Nos EUA, no antigo sul escravista derrotado, o período conhecido como “Reconstrução Radical” (1865-1877) foi pioneiro em reconhecer direitos civis e políticos aos ex-cativos tornados livres com a vitória da União.

Muitos tiveram acesso à educação, participaram politicamente em seus locais de moradia, votando e sendo eleitos, junto aos políticos republicanos abolicionistas oriundos do norte do país. As conquistas sociais realizadas nesse curto espaço de tempo preenchem as melhores páginas da história social e política sobre o pós-emancipação estadunidense.

No entanto, o movimento foi, ao longo dos anos seguintes, totalmente desmoralizado, com base em denúncias seletivas de corrupção, a partir das quais se afirmava que toda a ação política dos negros sulistas e o idealismo republicano eram uma simples fachada para a ação criminosa de um grupo de aventureiros corruptos que enganavam libertos desinformados.

Tal interpretação foi celebrizada em um dos filmes pioneiros da indústria do cinema americano, “O Nascimento de Uma Nação” (Griffith, 1915), no qual os cavaleiros da Ku Klux Klan são os mocinhos da história. A estreia recente e polêmica de “O Mecanismo“, de José Padilha, na Netflix, com a mesma chave maniqueísta, me levou, mais uma vez, a me impressionar com os paralelos entre os dois processos.

A Constituição de 1988 foi o primeiro texto constitucional brasileiro a reconhecer o direito de voto universal e a pluralidade racial e cultural da sociedade brasileira.

O espetáculo de humilhação pública da prisão do ex-presidente operário por “crime comum” não afetou em nada a percepção da corrupção no país, que só faz aumentar, mas tem potencial para destruir a autoestima e a autoconfiança política de milhões de brasileiros.

A capacidade política de Lula de controlar a narrativa de sua própria prisão atenuou, pelo menos por algum tempo, esta possibilidade. O ataque aos ideais democráticos da Constituição de 1988, iniciado com o golpe parlamentar de 2016, sofreu ali um revés. Como sugeriu seu inspirado discurso, por mais longo que seja, o inverno não pode impedir a primavera.

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A derrota do golpe de 2016

Publicado em 30.set.2018 às 2h00 (reproduzido parcialmente)

A paranoia contra o inexistente “kit gay” (2011/2013) e a reação à PEC do serviço doméstico (2013), episódios do primeiro governo de Dilma Rousseff, foram sintomas pioneiros do movimento reativo –pois se trata do desejo de desfazer o que já está feito– que hoje toma forma concreta e assustadora na sociedade brasileira.

A reação à presença de uma mulher, só, no Palácio do Planalto, não ocupou lugar menor no processo, mas dois outros vetores reativos precipitaram a liberação dos demônios que, desde então, vieram do porão à luz.

O primeiro é o sentimento estamental, típico de sociedades pós-escravistas. Os antigos setores médios da sociedade brasileira continuam a aspirar por um estilo de vida quase colonial: com serviços domésticos baratos e acesso diferenciado à saúde e à educação.

Apesar de um salutar movimento de pressão pela melhoria do serviço público, a maior parte da “velha classe média” simplesmente não tolerou as consequências do sufrágio universal, sobretudo a ampliação da sociedade de mercado –que trouxe mais concorrência pelos melhores empregos e vagas nas universidades e tornou os serviços privados de qualidade cada vez mais elitizados.

O segundo vetor tem mais sintonia com o mundo globalizado. Milhões adentraram à economia de mercado na era Lula, fazendo emergir, na esfera pública, uma religiosidade militante e conservadora, que se vinha afirmando desde os anos 1980 no seio das classes populares economicamente ascendentes, com setores intolerantes e fundamentalistas.

Não se conformaram, sobretudo, com a afirmação de direitos para a comunidade LGBT, inclusive ao casamento e à adoção, com base na Constituição de 1988, que hoje ampara milhares de novas famílias legalmente constituídas.

A representação política desses dois mundos reativos é legítima como qualquer outra, mas sua junção nos abriu a porta do inferno quando deixamos romper-se o tênue equilíbrio de forças que a sabedoria do voto popular conseguira garantir. Na ópera-bufa da sessão parlamentar de 17 de abril de 2016, exibida em cadeia nacional de TV, o tema da corrupção política já tinha se tornado a cereja do bolo.

O cruzamento do ethos estamental com o ethos patriarcal, unindo velhas e novas classes médias, alavancou a falsa ideia de uma “ditadura do politicamente correto”, colocando em xeque a própria noção de direitos humanos.

A ascensão de uma candidatura simplesmente fascista junto a parte expressiva do eleitorado, capaz de colocar em risco a ordem democrática, é expressão disso.

A lição mais clara dessa campanha, até agora, é a derrota eleitoral das elites políticas –parlamentares, jurídicas e midiáticas– que, ao não aceitarem os resultados das urnas, capitanearam o impeachment sem crime de responsabilidade da presidenta eleita e a impediram de governar.

A vontade elitista e antidemocrática, mas legal, de desrespeitar a vontade popular permanece. A cassação de mais de 3 milhões de títulos eleitorais pela maioria do STF foi sua mais recente expressão, mas o substrato de ódio reativo que emprestou base social à empreitada se deslocou dos seus mentores originais e hoje caminha com as próprias pernas.

E o Brasil escolheu…

Publicado em 15.nov.2018 às 2h00 (reproduzido sem alterações)

Após o golpe parlamentar de 2016, anti-intelectualismo e fundamentalismos diversos, que estão na base de uma nova extrema direita de abrangência global, rapidamente tornaram-se preponderantes na base de apoio do governo Temer.

Desde antes disso, vinham-se mostrando presentes em setores do Judiciário, numa preocupante politização dos operadores de Justiça, exemplarmente ilustrada pelas ações de cerceamento às universidades que precederam o segundo turno das eleições, a tempo declaradas inconstitucionais pelo STF.

O crescimento da extrema direita foi a grande surpresa eleitoral do primeiro turno, que se confirmou com a vitória do atual presidente eleito, no segundo. Como explicá-lo?

Facebook e WhatsApp assumiram que houve roubo de dados e uso de robôs em suas plataformas no primeiro turno das eleições no Brasil. Podem ter amplificado preconceitos que ajudaram a reverter tendências históricas de parte do eleitorado, sobretudo das classes populares. Mas não os inventaram.

Muitos apontam a circulação de notícias falsas em aplicativos e redes sociais como sintoma de nossa entrada na era da pós-verdade, caldo de cultura no qual o chamado novo “populismo de direita” seria criador e criatura. O fenômeno é mais complexo. As redes sociais democratizam as comunicações. As chamadas fake news apenas amplificam preconceitos, antes invisíveis, que passam a ter espaço no debate público.

Se houve suposto impulsionamento ilegal e direcionado dessas mensagens, o problema a se combater, nas redes ou na imprensa tradicional, é o mesmo: monopólio da informação e abuso de poder econômico.

Mais surpreendente, para mim, foi ver quase a totalidade das classes médias brancas e letradas do centro-sul do Brasil abraçar, com entusiasmo, a violência como valor (o gesto de atirar no inimigo, como símbolo).

Desde o surgimento do país como monarquia liberal e escravista, a hipocrisia, entendida como o elogio que o vício presta à virtude, constituiu-se como principal alicerce do nosso preconceito de ter preconceito e do mito da democracia racial entre nós, como nos ensinou Florestan Fernandes.

As transformações socioculturais dos últimos 30 anos parecem ter provocado uma mudança nesse traço essencial da cultura política brasileira, de consequências imprevisíveis.

É sempre importante ouvir a voz das urnas. Mesmo quando o voto do vizinho nos causa horror. Em um país racista, ainda profundamente marcado pela herança escravista nas relações sociais, que sempre autorizou o genocídio cotidiano de jovens pretos e da população LGBT nas periferias, uma parte expressiva do eleitorado das classes privilegiadas assumir o ódio como bandeira política faz sentido, ainda que seja absolutamente assustador.

Preconceito e cinismo emergiram vitoriosos e sem véus dessa eleição. Para superá-los, será preciso encarar feridas abertas, sempre presentes em nossa sociedade, que insistimos em não olhar. Será arriscado e doloroso, muito se pode avançar no autoritarismo dentro da ordem democrática, mas precisamos acreditar que a sociedade brasileira e os valores fundamentais da República de 1988 serão capazes de resistir e dar conta da tarefa.

Feliz 2019!

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Cartas aos amigos que decidiram votar B.

Martha Abreu

Ao longo de décadas, muitos afetos e muitas conversas, risos e momentos inesquecíveis nos aproximaram, mas hoje não consigo fazê-los entender que o candidato B. é um mal muito maior (Essa carta é mais uma tentativa). Até certo ponto, seguimos juntos na avaliação das gestões do PT e suas perigosas relações com os mecanismos da corrupção e com os políticos que representavam as velhas oligarquias de poder. A partir daí, mais nada em comum: vocês me apresentam uma lista de medos de que tudo vai piorar, de que vamos nos tornar a Venezuela, de que Lula vai governar o país e de que o PT precisa aprender que não pode tudo…

Será que é só isso que importa nesta eleição? Será que isso é suficiente para justificar o voto de vocês em um candidato que já defendeu teses contrárias à dignidade humana e aos valores civilizacionais, que não respeita os acordos universais sobre o meio ambiente, que nega acontecimentos históricos mais do que provados e documentados, que não vê importância na defesa dos povos indígenas e quilombolas, que apresenta um programa educacional de governo baseado nos valores militares, no controle e diminuição da importância dos professores, na desvalorização do sentido público da educação e no ensino à distância desde a escola básica? Pergunto a vocês como, com essa perspectiva, iremos combater o desemprego e formar trabalhadores e cidadãos preparados para os desafios do mundo globalizado?

Eu gostaria muito que vocês não passassem por cima de tudo isso somente para derrotar o PT na eleição para Presidente (as derrotas do partido já são inúmeras pelo Brasil em todos os níveis). Mas caso seja derrotado o PT, com o que ficaremos? Que ministros teremos nas pastas de educação, cultura, meio ambiente e trabalho? Como continuaremos a fazer parte da comunidade mundial que preza os valores da humanidade e da civilização democrática? Para que mundo melhor vamos poder contribuir e sonhar?

Nunca fui filiada ao PT e sempre valorizei minha postura crítica em relação a suas políticas e posições. Mas não posso deixar de registrar minha experiência nesses últimos 15 anos, como professora e pesquisadora da Universidade Federal Fluminense, ao acompanhar de perto várias importantes políticas educacionais e culturais implementadas pelos seus últimos governos – muitas delas sob o Ministério da Educação de Haddad. Entre essas inúmeras políticas, destaco, no campo que mais conheço, a ampliação das universidades, institutos federais e escolas técnicas em todo o país; a ampliação dos financiamentos para pesquisa, ensino e apoio a alunos de baixa renda; o crescimento dos programas de pós-graduação, a política de cotas, o programa nacional de distribuição (e avaliação) de livros didáticos, a distribuição de livros para a formação do professor e de literatura para todas as escolas do país; o apoio ao aumento do piso dos professores e a implementação de vários programas de melhoria da qualidade de ensino (em todas as áreas e na matemática especialmente!!); a valorização e apoio financeiro para as culturas populares e negras através de editais e pontos de cultura, entra várias outras.

Meus amigos, vivemos nesses últimos 15 anos uma vigorosa transformação silenciosa no campo da inclusão educacional e cultural que foi pouco divulgada e é pouco conhecida. Embora isso tudo esteja ameaçado de ruir, vou apostar que todo esse esforço não será perdido ou esquecido. Milhares de jovens, adultos e suas famílias foram atingidos por políticas que transformaram suas vidas. E é nisso que vou votar!!

Hebe Mattos

Como todo mundo no Brasil, tenho familiares e amigos que pensam em votar nulo ou em Bolsonaro no segundo turno. Dirijo-me a eles. Queria primeiramente que soubessem que nunca fui filiada ao PT e que votei muitas vezes por, mas também muitas vezes contra o partido, em diferentes ocasiões. Tornei-me defensora entusiasta do mandato da presidenta Dilma, em defesa da legalidade democrática e como forma de reação ao “antipetismo”, um sentimento que começava a transformar os defensores do partido em objeto de ódio coletivo, como o “judeu” de Hitler ou o “negro” da Ku Klux Klan nos Estados Unidos. Na contramão da corrente, vesti a camisa do PT, resgatando sua história republicana e democrática, a despeito dos erros de muitos dos seus quadros, erros compartilhados com todos os demais partidos políticos e que remontavam a tradições políticas brasileiras do século 19. Escrevi muitos textos sobre o tema, que vocês podem não ter lido ou que talvez não os tenham convencido.

Muitos como eu fizeram o mesmo gesto, apoiando explicitamente as virtudes do PT, apesar de seus erros, contando que nossa reputação intelectual e política acabaria por diminuir o sentimento de ódio que crescia e envenenava o ambiente social. Qual a surpresa ao nos vermos imediatamente estigmatizados como “petralhas”, “comunistas”, “feminazi” ou “esquerdopatas”. E tem sido sempre assim, cada nova pessoa que percebe o perigo e o denuncia é imediatamente rotulado. O neofascismo é hoje uma força política mundial que se baseia em fundamentalismos diversos que guardam em comum a vontade de eliminação do outro político do qual discordam. Hordas fascistas já cantam nas ruas que vão matar gays, feministas e ativistas em geral. Em nome disso, topam um candidato sabidamente corrompido, com um assessor econômico envolvido em denúncias, com um programa político simplesmente inexistente, mas que, e acho que isso é o essencial, fez apologia da tortura de seus inimigos políticos da tribuna do Congresso Nacional. Se vocês concordam com o elogio público feito por Bolsonaro ao torturador Carlos Brilhante Ulstra, a quem chamou de “o terror de Dilma Rousseff”, não precisam continuar a leitura. Sinceramente, espero que ninguém concorde.

Eu estou convencida de que a maioria dos eleitores de Bolsonaro no primeiro turno não é neofascista, e que muitos que pensam em votar nele ou nulo no segundo turno o fazem por subestimar o risco à democracia que ele representa. São democratas liberais ou conservadores, na maioria das vezes cristãos, que se tornaram antipetistas, justificando este antipetismo a partir dos muitos erros do partido e com argumentos específicos. Se este for o caso, peço que pelo menos escutem o Haddad e acompanhem os debates (se o outro candidato não fugir deles). Haddad é um político com trajetória impecável, de grande comprometimento com a democracia e com o sentimento republicano, que acredita na importância do equilíbrio das contas públicas, bem como na possibilidade de fazer da ampliação do acesso à educação e ao mercado de consumo de massas ferramentas efetivas de inclusão social, que acredita na liberdade de imprensa e nos direitos humanos universais e que, sobretudo, será capaz de conversar com o congresso tão diverso que se elegeu e buscar um governo que consiga restabelecer o equilíbrio democrático que perdemos desde o impeachment.

Queridos amigos e parentes, vivo no Rio de Janeiro, já ouvi os novos fascistas cantarem nas ruas pregando a morte e tive medo. A avalanche de notícias falsas que antecedeu o primeiro turno exemplifica bem sua forma de ação. Quem apoia publicamente torturadores não tem limites. A violência começa com os eleitores de esquerda, com LGBTs, com os pretos, com as feministas, 1/3 da população já está na linha de tiro e eles prometem armar a população, mas não se enganem, a lista de quem são os outros vai crescer se não mudarmos o rumo dessas eleições. Ninguém está a salvo.

Se detestam tanto o que ocorre na Venezuela, lembro que Bolsonaro e a extrema-direita brasileira são o que temos de mais parecido com o que se passa por lá. O problema não é o programa econômico que apresentam, aparentemente opostos, mas a forma com que organizam sua prática política. Sobre isso, sugiro a todos a leitura do texto de Steven Levitsky, da Universidade de Harvard, autor do livro “Como morrem as democracias”. Ele compara a Alemanha de Hitler, a Venezuela do chavismo e o risco da eleição de Bolsonaro.

Para além de qualquer argumento lógico, pela felicidade e segurança dos nossos filhos e netos,  que merecem crescer juntos num Brasil com escola pública para todos, sem racismo e sem homofobia, peço que neste segundo turno votem pela vida, pela democracia, pela civilização, votem Haddad presidente.

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Saia da Mesa

Existe um ditado alemão que diz: ‘Se há dez pessoas numa mesa, um nazista chega e se senta, e nenhuma pessoa se levanta, então existem onze nazistas numa mesa”. Não se pode tolerar o intolerável. Saia da Mesa. (Ynaê Lopes dos Santos)

Durante vários anos, fui professora de História Judaica em uma escola judaica do Rio, a mesma onde estudei minha vida toda. Dei aulas para todas as séries. Todo ano eu ensinava sobre o nazismo; todo ano recebíamos visitas de sobreviventes, acendíamos velas no Yom Hashoá (Dia do Holocausto), repetíamos que atrocidades como aquelas nunca mais poderiam ser repetidas, nunca mais.

Estas aulas eram difíceis. Durante todo este tempo, meu maior desafio não era exatamente explicar o antissemitismo de alguns, mas a indiferença da maioria. Meus alunos não entendiam por que, ao presenciar a escalada da violência que se seguiu à eleição de Hitler, a sociedade alemã não se organizou para conter a disseminação do ódio e da violência. Eu tentava explicar mas no fundo, no fundo, também não entendia.

Agora entendi.

O candidato do PSL não é Hitler. Mas seu discurso de ódio às minorias é perigosamente semelhante ao do ditador eleito pelo voto na Alemanha dos anos 1930. Também naquela época, o seu discurso tinha como alvo a corrupção. E, também naquela época, muitos caíram na falácia de que, para lutar contra a corrupção, é preciso apoiar o extremismo.

Vejo horrorizada as manifestações de apoio — ou de isenção, o que neste caso dá no mesmo — de alguns judeus ao candidato da extrema direita. Não acredito que todos sejam racistas e homofóbicos como o discurso daquele que, fosse a eleição hoje, seria o novo presidente do Brasil. Mas são indiferentes à violência que acham que não os atinge. Indiferentes como aqueles que testemunharam a escalada de ódio aos judeus na Europa e não fizeram nada. Os violentos só atacam se os indiferentes permitirem. Estaremos permitindo?

Os judeus não são alvo preferencial da atual campanha de ódio disseminada pelos seguidores do candidato da extrema direita. Mas seria interessante perguntar a eles o que sabem sobre o Holocausto. Não será surpresa se muitos forem negacionistas. Basta ver a onda de suásticas que proliferam por aí após o primeiro turno das eleições presidenciais. Um dia na UERJ. Outro na igreja de São Pedro da Serra. Na porta do apartamento de uma amiga. Na carne de uma moça. A História mostra que onde há extremismo, há antissemitismo. Queremos mesmo estas companhias?

Às vésperas do dia do professor, só consigo pensar que falhamos. Serviram para alguma coisa as aulas de História Judaica? Transmitimos valores judaicos? Onde deveria haver empatia, há indiferença. No lugar da memória, esquecimento. Para uma tradição fundada no estudo e na memória dos nossos antepassados, estamos mal, bem mal.

Keila Grinberg.

 

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Dançando na corda bamba…

Estive no encontro de artistas e intelectuais com Lula, em um hotel do Rio de Janeiro, no último sábado. Admiro muitíssimo o ex-Presidente Lula e tudo que simboliza, mas nunca pensei que defenderia sua candidatura a um terceiro mandato. É o que faço sem sombra de dúvidas e com entusiasmo neste momento. Lula com sua capacidade de diálogo democrático me parece hoje a mais forte esperança para que o estado de exceção colocado em marcha desde a sua condução coercitiva em março de 2016 possa ser revertido, restabelecendo o estado democrático de direito no país.

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Na mesa do evento, o ex-chanceler Celso Amorim, que espero ver candidato a governador do Rio de Janeiro, lembrou um velho dito popular que bem sintetiza o estado policial em que estamos vivendo desde 2016: sabemos que estamos numa ditadura quando tocam a campanhia de casa às 6 horas da manhã e temos medo de que não seja o leiteiro. O abuso das conduções coercitivas de pessoas sobre as quais não pesa acusação alguma, com endereço conhecido, que não foram previamente intimadas a depor, é prova de que o uso do aparato policial e jurídico para pura e simples intimidação política infelizmente virou rotina. O caso da verdadeira invasão policial da UFMG é só o mais recente exemplo disso. Mas é também um pouco mais.

Colocar em suspeita sem provas contundentes uma proposta da envergadura moral do Memorial da Anistia, sob direção acadêmica de uma das mais respeitadas historiadoras brasileiras, Heloisa Starling, é simplesmente inadmissível. Batizar uma operação policial de combate à suposta malversação de verbas públicas com um dos mais pungentes versos da música de João Bosco e Aldir Blanc, que se tornou símbolo do movimento pela anistia, é um ataque direto à memória das lutas democráticas no Brasil.

Diante do medo, do susto e do desencanto só resta voltar aos versos de “O Bêbado e a Equilibrista”.  Mais de trinta anos depois, a esperança continua a dançar na corda bamba de sombrinha, sabendo que em cada passo dessa linha pode se machucar.

Azar! A esperança equilibrista sabe que o show de todo artista tem que continuar!

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Cores e lugares do Novembro Negro

“É minha força, é nossa energia
Que vem de longe pra nos fazer companhia”
Raça, Milton Nascimento e Fernando Brant, 1976

 

E novembro chegou novamente! Para boa parte das pessoas com quem convivo, é chegada a hora de viver o Novembro Negro, o mês Nacional da Consciência Negra! Tempo de rememorar e celebrar a saga de Palmares e outras tantas lutas pela liberdade protagonizadas por descendentes de africanas/os escravizadas/os no Brasil. Há ainda quem associe outras cores a esses dias: o Novembro Azul, da mobilização pela prevenção do câncer de próstata; o Novembro Laranja, da campanha nacional de alerta ao zumbido no ouvido, sendo também laranja o 25, Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres. Não podemos esquecer da possibilidade de acrescentar as cores do arco-íris ao 20, também reivindicado como Dia Internacional da Memória Transgênera.

Curiosamente, todas essas apropriações mantêm estreito diálogo com a saúde, o direito à vida, reivindicam o existir com dignidade. Com um pouco de sensibilidade, é fácil entender como o racismo, o machismo, a homofobia/transfobia adoecem quem é atingida/o e quem atinge também, prejudicando homens e mulheres, surdas/os, ouvintes, etc. E nisso comprometem até mesmo a nossa capacidade de enxergar as possíveis articulações entre as diferentes perspectivas de luta. Assim, logo de cara, a tendência é tomar essas práticas de apropriação do tempo como mero ensejo para rivalidades e disputas por visibilidade no presente.

Zumbido

Imagem utilizada pela empresa Direito de Ouvir para ilustrar um informe sobre o Novembro Laranja

Mas, tentando ir além do conflito que afasta, façamos um exercício de aproximação. Vivemos num país de maioria negra, certo?! Certo! 54% da população, segundo dados do IBGE para 2014. Por que razão, então, nos limitamos a pensar apenas o Novembro Negro como negro? Por que o azul, o laranja ou o multicolorido não são prontamente entendidos como negros também? Por que esses outros falam da população em geral? Um instante! Somos a maioria da população e, mesmo assim, não podemos dar a medida do que é o “em geral”? Olha aí o alcance do racismo engolfando e indo além da linguagem.

Sem gerar prejuízo a qualquer outro grupo, novembro, em suas múltiplas cores, muito bem poderia e deveria ser um momento de esforço concentrado para a defesa do respeito às pessoas de todos os sexos, identidade de gênero, orientação sexual, variedade de deficiências, etc., por partir justamente da experiência da população negra. Alterar as matrizes de pensamento de uma sociedade em que o “racismo por denegação”*, citando Lélia Gonzalez, gerou um dos quadros mais complexos de desigualdade racial do mundo passa por fazer com que as pessoas adquiram a habilidade de sentirem à vontade em ser medidas pela régua da existência da gente negra, sem que isso signifique limitação da sua humanidade. Romper com a violência naturalizada contra tanta gente, talvez faça até mesmo com que no futuro as experiências de pessoas surdas não gerem tanta estranheza ao aparecerem em concursos públicos, como aconteceu na prova de redação do Enem 2017.

Reconhecer a importância do Novembro Negro, em suas múltiplas cores associadas, é, portanto, romper com os vícios gerados pelo mito fundador das três raças que esteve e está a serviço do elogio à dominação do homem-branco-europeu-heterossexual-agente-da-colonização-e-da-civilização-vitoriosa, por muito tempo considerado como o sujeito universal por excelência.

Atravessando a fronteira nacional brasileira, vale lembrar que esse, aliás, tem também sido o esforço da Comisión Organizadora 8 de Noviembre, uma ampla frente de entidades afro-argentinas, em torno da afirmação do Dia Nacional dos/as Afro-Argentinos/as e da Cultura Afro, reconhecido oficialmente em 2013 por meio da Lei n. 26.852. A data foi construída a partir da memória de María Remedios del Valle, uma mulher negra que combateu no exército pela independência argentina no início do século XIX e se tornou posteriormente conhecida como a “Madre de la Patria”. Uma das várias pessoas negras que sobreviveram aos combates, María Remedios é uma personagem emblemática para se desmontar o mito do desaparecimento negro na Argentina ao longo do século XIX. Sua trajetória e a de outras personalidades e grupos têm sido, então, acionadas pelas organizações afro em suas atividades em vários momentos do ano, com o intuito de criar condições para que as violências cometidas contra a população afro não passem em branco.

8 de Novembro

A lei corresponde, portanto, ao encaminhamento de uma agenda política maior e está estreitamente associada a uma conquista anterior: a inclusão do quesito cor/raça no censo populacional de 2010, por meio do que tem se objetivado identificar não apenas os indivíduos fenotipicamente negros, mas também aqueles/as de origem afro. Além de buscar a visibilidade no agora, trata-se de uma ação interessada em fazer um contraponto à construção de que os argentinos de hoje são descendentes apenas de europeus e de povos originários com os quais o vínculo é cada vez mais distante.

Diferentemente do Brasil, os/as afro-argentinos/as estão longe de ser maioria populacional em seu país. Todavia, pensando nos relatos compartilhados, podemos dizer que o racismo e a discriminação não se fazem mais ou menos perversos a depender da quantidade de pessoas contra as quais são imprimidos. O grande problema segue sendo a violação do status de Ser Humano dessas mulheres e homens em ambas as sociedades, e outras tantas pelas Américas e o restante do mundo.

De tal sorte, embora os problemas associados ao subregistro não tenham sido superados nem mesmo aqui, as mobilizações de lá, ao avançarem, merecem nossa solidariedade, tal como precisamos em outros tempos para alcançar a legitimação do 20 de novembro e toda a agenda política vinculada a ele. Disso efetivamente depende a viabilidade de termos respeitados os muitos sentidos de liberdade nos próximos Novembros Negros que faremos.

Ley Afro

*GONZALEZ, Lélia. A categoria cultural da amefricanidade. Revista Tempo Brasileiro, n. 92-93, Rio de Janeiro, jan.-jun. 1988, p. 69-82.

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