Vazante, novo filme de Daniela Thomas, é obra de longa maturação. Há cerca de 15 anos organizei, com Mariza Soares e Sheila de Castro Faria, uma primeira consultoria de pesquisa histórica para o roteiro então em elaboração. Perdi o contato com a cineasta, ex-colega dos primeiros semestres de minha graduação em história na UFF, depois disso. Só fui reencontrá-la ao aceitar o convite para assistir o corte final, em 2016, pouco antes da estreia no festival de Berlim.
Difícil descrever o impacto que tive ao me deparar com as imagens do filme. O mundo claustrofóbico, violento e intimamente segregado da escravidão das Minas Gerais oitocentista parecia ter saído dos velhos manuscritos com os quais comumente trabalhávamos – inventários post-mortem, processos criminais, registros paroquiais, iconografia de época… e se transformado em cinema, sob o ponto de vista de Antônio, tropeiro/traficante de escravos, português de meia idade e de sua segunda esposa, a menina Beatriz, obrigada a casar com o viúvo de sua tia, 40 anos mais velho, antes de completar 12 anos de idade.
Antônio decide se servir sexualmente de Beatriz apenas depois da primeira menstruação. Com o dote recebido pelo casamento, a família da menina, que vivia em um sítio dentro da propriedade de Antônio, muda-se para a cidade do Serro. Beatriz, sua avó e Antônio tornam-se os únicos brancos na fazenda. Vivem em meio de africanos recém-chegados do tráfico transatlântico, conduzidos a ferros para serem vendidos como escravos na região, que por vezes fugiam e se aquilombavam nas redondezas, de escravizados e libertos tropeiros, que vigiavam os recém-chegados e conduziam os comboios de mercadorias, e em meio à comunidade de senzala da fazenda – formada por cativos e libertos que administravam o dia a dia da propriedade na ausência do senhor.
A primeira metade do filme é contada sob a perspectiva de Antônio, como um Casa_ Grande_e_Senzala no qual o comércio de mercadorias e de cativos ocupa lugar central. Antônio é uma “ilha branca” cercada de corpos negros que, a maior parte do tempo, o obedecem. Por que? É na branquitude de Antonio e no seu poder de trazer as mercadorias que chegam dos portos do novo país até aqueles sertões, do sal a trabalhadores africanos escravizados, que se encontram as chaves do seu poder. O filme coloca o espectador no ponto de vista do senhor/traficante de escravos, buscando uma quase empatia, o que provoca angústia e mal-estar.
Antônio não é sádico, mas se mostra funcionalmente cruel. Obriga sexualmente a africana Feliciana, mãe do jovem Virgílio, representada pela atriz Jai Baptista, em atuação soberba, em um estupro continuado e regular. Depende do casal Joana e Porfírio para administração da fazenda nas suas muitas ausências, incluindo os cuidados com sua sogra e a menina/esposa, proporcionando um poder específico e uma relativa autonomia para a comunidade de senzala – o que efetivamente acontecia nas fazendas escravistas dos sertões. O preço pago era a naturalização da tortura, dos ferros e dos açoites, administrados pelos próprios feitores negros, cativos ou libertos, como o personagem Jeremias, sobretudo para fazer dos africanos novos, trabalhadores escravos. Neste jogo de ambiguidades, os personagens negros são defendidos por atuações vigorosas, que fazem o espectador vislumbrar um mundo negro de hierarquias e tensões, mas também de solidariedades e segredos – que, como o branco Antônio, o espectador não conhece nem consegue alcançar. Talvez se o roteiro do filme avançasse um pouco mais neste mundo apenas sugerido, fosse menos doloroso como experiência, sobretudo para plateias negras. Por outro lado, se o fizesse, romperia com a opção de contar a fazenda escravista a partir do olhar branco, raiz do mal-estar que a narrativa provoca.
A partir de um determinado ponto da história, o foco narrativo se desloca de Antonio para a menina Beatriz, que com a avó enlouquecida desde a morte da filha, durante as longas viagens do tropeiro, cresce sob a proteção e os cuidados da comunidade de senzala. A ingenuidade do olhar de Beatriz, um olhar quase infantil, feminino e também subalterno, nos deixa ver um pouco mais do mundo negro que a envolve e nos permite acompanhar sua aproximação com Virgílio. Os dois jovens conseguem viver a paixão que os une antes de se consumar o casamento dela. O quarteto Antônio, Feliciana, Beatriz e Virgílio é o condutor do filme até o seu final trágico e alegórico: a mestiçagem brasileira como filha da violência e do estupro, o genocídio negro como consequência e a possibilidade de empretecimento como redenção.
Em tempos de “Django Unchained” explodindo a plantation, Vazante escancara o absurdo de imaginar a escravidão como mito fundador de uma nacionalidade brasileira racialmente “democrática”, como ainda faz a leitura canônica de Casa Grande e Senzala de Gilberto Freyre. É um filme sobre patriarcalismo e racismo, que constrói sua narrativa do ponto de vista da sinhazinha branca “vendida” como esposa aos 12 anos. Apesar ou por causa disso, tem sido quase insuportável para as primeiras plateias negras que o assistiram. Crítica de Juliano Gomes, na revista CINETICA, fala da angústia que o filme suscita e o acusa indignado de reforçar imagens coloniais ao se limitar à velha “impotência da superconsciência branca”. Têm razões desse ponto de vista, Vazante não descoloniza o olhar, pelo menos como leitura imediata.
A crítica de Juliano é, porém, dilacerada, desenvolvida a partir de uma dupla possibilidade de recepção da obra. Muito do que escrevi aqui me foi suscitado por ela. Ao assumir como título “A nova fita branca”, que suponho referir-se ao filme “A Fita Branca“, de Michael Haneke, que sugere, como raízes do Mal que possibilitou a ascensão do nazismo, as relações familiares da Alemanha de início do século XX, me ofereceu a chave de leitura que busquei desenvolver neste texto: o racismo íntimo como Mal que está na raiz da brasilidade. Os comentários sobre a catarse coletiva durante a discussão do filme no festival de Brasília têm esquecido de se referir sobre o silêncio branco na sala de debates.
Vazante mobiliza passados sensíveis. Quebra com a ética do silêncio sobre nossas identidades racializadas e nos faz brancos ou negros quando o assistimos. Foi desenvolvido em co-produção com Portugal, em um momento em que setores da sociedade portuguesa tentam romper o silêncio racial para combater o mito do bom colonialismo, como a recente série de reportagens do jornal O Público, sobre o tema, ilustra. Com imediata reação de intelectuais conservadores brancos, brasileiros e portugueses. É um filme que fala sobre racismo e patriarcalismo de um ponto de vista eticamente crítico, mas sociologicamente compreensivo. Vem produzindo reações vigorosas das sensibilidades e plateias negras felizmente presentes e ativas no século 21. Entre o ressurgimento do conservadorismo branco e as demandas de protagonismo dos movimentos negros, os debates e silêncios na recepção da obra são parte integrante da potência do filme.
Vazante desnuda o racismo e o papel fundamental do tráfico de escravizados no colonialismo português e no Estado brasileiro que o sucedeu. No filme, os cativos da África foram interpretados por novos imigrantes africanos, cada vez mais presentes no Brasil de hoje, e os integrantes da comunidade de senzala por moradores dos quilombos das cercanias das locações, sem dúvida remanescentes dos cativos que interpretam e do continuum de comunidades de senzala, camponeses negros livres e quilombolas históricos que, então, formavam o mundo negro das Minas Gerais.
Vazante é uma experiência estética deslumbrante que provoca mal-estar. Um mal-estar a ser enfrentado. Precisamos falar do trauma da escravidão na sociedade brasileira e das identidades diferentemente racializadas que produziu. Dos passados de violência em cada família, negras ou brancas. Da violência das mestiçagens que nos constituíram e se reinventaram nas imigrações europeias que se seguiram. De racismo e privilégio. De dor e ressentimentos.
Só por sua excelente exposição e seus comentários, esse filme parece muito difícil de ver, tanto para brancos, quanto para negros – e, ao fim e ao cabo, para brasileiros e brasileiras hoje, que vivemos um momento político de tensão entre o que fomos, o que poderíamos ter sido como nação e o presente político-social assustador. Mas parece claro também que uma chaga de nosso atraso democrático abissal foi escancarada e todos pudemos nos ver – o que esse filme também parece fazer de modo forte, como será sempre necessário à arte que deseja tocar firme o espectador. Mas confesso que receio vê-lo – porque sou branca e a culpa vai cobrir-me de vergonha, talvez? Não sei, mas vai doer. Vera Queiroz
Veja, estreia em breve nos cinema. O filme é esteticamente deslumbrante e o debate que suscita, politicamente necessário.
Parabéns, Hebe, seu texto contribui muito para a compreensão e o debate sobre o filme e, também, para ajudar a refletir, sob uma perspectiva crítica, uma espécie de “onda negra e medo branco” que emergiu a partir dos debates do Festival de Cinema de Brasília. Parabéns, mais uma vez.
Republicou isso em Na savana do Alto Rio Branco.
Não vi o filme, mas fiquei indignada com a reação da pessoas e com a ausência de defesa da Daniela no debate, pois provavelmente haviam pessoas contra a fúria. O filme propõe uma crítica ao nosso passado escravagista e racista. Um filme de época que retrata como eram as coisas. As pessoas não estão entendendo a crítica ali contida, apenas o vêem com olhar de hoje.
Muito boa resenha. Esclarecedora e lúcida.
O filme tem força, é bem realizado e muito incômodo como obra. Eu gostei. Obrigada pela leitura. Cristina Aragão
interessante o texto. ainda não vi o filme, mas venho acompanhando os debates suscitados. gosto dessa abordagem da discussão que decorre do filme; de como é importante perceber que ela é parte daquilo que o filme levanta, neste momento. gosto também dessa oposição da reação das plateias negras, tão criticada em umas coberturas, ao “silêncio branco na sala de debates”. confesso, contudo, que fique esperando um pouco mais sobre esse silêncio – sobretudo sobre o silêncio inicial da diretora (e sobre sua posterior fala, dizendo-se, em oposição, silenciada).
Debate, conversas, falas, polêmicas,discussões? A estratégia de dominação é muito complexa e muitas vezes é ubuesca (o poder se dá a largueza de ser objeto de risos). Não há polêmica, nem debate, nem discussão.. O questionamento mais agudo em Brasília, me parece, tem por imagem a cifra de seis milhões. Isto. Seis milhões para fazer o filme. Depois de pensarmos (quem?) sobre isso aí talvez podemos habitar a narrativa. A ordem do discurso fílmico é brutal. O problema, me parece, não é “somente” a narrativa – digo-o a partir do debate pois não vi o filme – apresentar negros autômatos, máquinas ocas. A coisa está em outro lugar: o Um que, sempre e em todos os espaços de poder, pode habitar o discurso. Estamos, ao que parece, na era da elite intelectual branca engajada em causas minoritárias. E por vezes, neste movimento, ela vai se autocriticar ou pseudoimalor (cito como exemplos o inacreditável curta Babás, de Consuelo Lins, e o Aguarius, do Kleber). E o que se vê aí é a velha mania de Adão (aquele mesmo do Éden), o privilégio de nomear os mundos (como ocorre também na academia, nas artes, na literatura etc). E aí dentro tem desde os “neoconservadores” aos simpatizantes e militantes de esquerda, enfim ambos conservadores da ordem colonial do discurso. No festival os negros diziam, “vamos assinar um contrato agora.” A ordem do discurso e seus controles afiadíssimos não se deslocam: o branco produz as imagens. Todo mundo sabe que isto é um procedimento de dominação colonial, os textos do filósofo sul-africano Magobe Ramose sobre a soberania branca da nomeação estão online. Quando uma cineasta ou cineasta negros receberem seis milhões (ou três, ficaria meio a meio) para fazer um filme sobre escravidão, quando o corpo docente e discente acadêmico for, no mínimo, formado por 50% de gente “subalterna” aí talvez possamos ter diálogo e discussão. Por hora, não sejamos hipócritas, há quem está estatutariamente habilitado a narrar (sabemos a procedência cromática, geográfica e de classe desses sujeitos), e os outros, aqueles que não podem mais do que emitir ruídos e zumbidos. Longo monólogo branco. A diretora se por como objeto de silenciamentos é um gesto, no mínimo, debochado e vergonhoso vindo de alguém que participa de uma elite que pode se fartar das regiões mais açucaradas (seis milhões) do discurso. Escreveu uma vez o filósofo M. Foucault (pra não me desviar da francofilia do nosso eurocentrismo intelectual), “se é necessário o silêncio da razão (sabemos bem quem sempre tem “razão” no Mundo Novo) para curar os monstros (sabemos quem são os monstros apartados do discurso que tem valor), basta que o silêncio esteja alerta, e eis que a separação permanece.” Seis Milhões.
Ainda não vi o filme, sei que será um momento duríssimo vê-lo, pois vai trazer à tona as dores que estão encerradas no meu dna, na minha alma, mais acho muito importante trazer esse debate e grito à tona, o ideal seria 50% de possibilidades e de chances de elaboração de um filme de 6 milhões tanto para negros, brancos, índios… mais esta não é a realidade atual e não vai ser por muitas décadas (séculos) , o que nós precisamos é olhar para o preconceito e para a nossa hipocrisia, seja ela de qual cor for…acho super válida a opinião de todos e o apoio e NÃO apoio ao filme. mesmo que não seja O ideal ele está gerando debates, discussão, gritos, precisamos sair da nossa zona de conforto, seja ela de qq cor, eu sou e não sou vítima, e sou fruto, assim como todos os brasileiros do nosso passado…a escravidão e a colonização do Brasil está presente em cada um dos 200milhoes de habitantes, não existe um ganhador, todos perdemos com ela… e nem e falar sobre as dores, a nossa dita colonização foi muito ímpar, gerou um Brasil que está a beira da loucura, sem saída, pelo menos a médio prazo, na realidade estamos sendo desmascarados…estamos sendo obrigados a crescer, a analisarmos a nossa hipocrisia e mediocridade. Está e a nossa única saída, no meu humilde ponto de vista. Amo o meu país e a minha gente.
Pingback: Escravidão é estrutura (ainda sobre Vazante) | conversa de historiadoras
Boa tarde a todos!
Adorei o tema que o filme Vazante retrata, e o que mais chamou a minha atenção no debate sobre a escravidão é que todos buscam justificar a escravidão de forma justa ou injusta. Porém, sinto a grande indiferença da sociedade brasileira em relação ao tráfico negreiro, onde seres humanos foram transformados em mercadorias, como animais, sem sentimentos ou racionalidade. Sua cultura, religião, origem, núcleo familiar, língua…As mortes vividas e as vidas assassinadas neste comércio são muitas das questões sem respostas a escravidão negra principalmente no Brasil no interior de sua colonização, de sua riqueza e pobreza, das relações de amor/ódio, da proteção de seus filhos e demais familiares. O negro lutou contra a escravidão com as armas que possuía. O filme retrata as relações entre brancos e negros dentro de uma sociedade que usava a violência e o poder de influência na manutenção do trabalho escravo. Dentro desta relação entre brancos e negros, sem romantizar, havia a violência sim, mas em alguns casos, brancos e negros criavam uma sintonia de amizade e respeito, sem, porém, extinguir a escravidão e o trabalho forçado. Esse tema deveria ser mais debatido, veiculado pelas mídias ao interior das sociedades, em locais onde as pessoas não se percebem dentro do preconceito, da ofensa, da chacota.
Dizer que no filme existem duas histórias paralelas é descrever as relações pessoas dentro das fazendas e das grandes plantações ou minas. Entre brancos e negros, elas aconteciam de forma desalinhada como uma experiência social, e o elemento que transformava essas relações estava dentro de cada homem ou mulher que viveram esse tempo, que transformou e construiu a sociedade que conhecemos hoje, e continua a ser construída dentro das relações pessoais e culturais de nosso tempo. Esse debate deveria estar dentro dos muros das escolas, colocando o tema para debate entre as crianças, tirando o véu que esconde essa vergonha que foi a escravidão no Brasil, e trazendo mais luz e conhecimento para se tentar mudar a lógica colonial que ainda se encontra dentro de nossa sociedade.
Assisti hoje, dia da consciência negra, e fiquei encantada. Um filme que me fez ter empatia com praticamente todos os personagens, incluindo aí o feitor, o negro forro que entrega a arma ao senhor… estou agora lendo todas as críticas que guardei para ler depois de assistir o filme, e a sua é a que mais contempla o meu olhar.