A historiadora Laura de Oliveira, Professora do Departamento e do curso de Pós-Graduação em História da UFBA, nos escreveu solicitando publicar uma resposta à crítica ao seu livro “Guerra Fria e Política Editorial”, publicada no blog do jornalista José Nêumanne, no Estadão. Em defesa do debate intelectual aberto e de alto nível, Laura de Oliveira hoje é a historiadora do blog.
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Gumercindo Dórea: nem vilão, nem herói/ Resposta a José Nêumanne por Laura de Oliveira (contato Laura.oliveira@ufba.br)
No dia 03 de setembro, José Nêumanne publicou em seu blog “Direto ao assunto”, vinculado ao jornal O Estado de S.Paulo, matéria intitulada “Herói tratado como um vilão”, em que faz crítica direta ao meu livro “Guerra Fria e Política Editorial” (Maringá, PR: EDUEM, 2015). Entre outros adjetivos, o jornalista o qualifica como “stalinista”, “grotesco” e “sofrível”, que por si só justificam meu direito de resposta.
O livro é resultado de pesquisa de doutoramento que desenvolvi durante quatro anos na Universidade Federal de Goiás (UFG), sob orientação da professora Dra. Fabiana de Souza Fredrigo, com período de estágio na Georgetown University, nos Estados Unidos, onde contei com supervisão do professor Dr. Bryan McCann. Ao longo do período, realizei pesquisas em arquivos nos dois países, entre os quais o Arquivo Municipal de Rio Claro (SP), o Arquivo Nacional (RJ), a Mudd Manuscript Library da Princeton University (EUA) e a National Archives and Records Administration, NARA II (EUA). As pesquisas possibilitaram acesso a abundante documentação acerca da história da Edições GRD, fundada pelo Sr. Gumercindo Rocha Dórea em 1956 e objeto da pesquisa.
O rigor na coleta das fontes, a qualidade da análise e os méritos do texto historiográfico produzido a partir delas vêm sendo reconhecidos pela comunidade intelectual brasileira: em 2014, fui finalista do Prêmio de Teses CAPES/MEC e laureada com menção honrosa. No ano seguinte, venci o Prêmio Manoel Salgado de Teses, promovido pela Associação Nacional de História (ANPUH), o mais importante prêmio concedido a teses em História no Brasil. Em seguida, a ANPUH encaminhou o manuscrito à editora da Universidade Estadual de Maringá, filiada à Associação Brasileira de Editoras Universitárias (ABEU) e identificada pela qualidade científica e técnica dos seus títulos.
A recepção a “Guerra Fria e Política Editorial” tem sido positiva. Em 07 de novembro de 2015, o jornalista Claudio Leal publicou matéria (“Editor que revelou Rubem Fonseca combatia comunismo para os EUA”) no caderno Ilustrada, da Folha de S.Paulo, baseando-se em informações contidas no livro e em entrevista que fez comigo por e-mail. Em 2016, a historiadora Lucia Grimberg (UNIRIO) publicou resenha sobre o livro na Revista Brasileira de História, onde afirmou que “a historiadora Laura de Oliveira desenvolve uma reflexão relevante e atual sobre o campo das direitas políticas”.
A Edições GRD é reconhecida nos meios editorial e literário como a principal responsável pela instituição de um campo para a ficção científica no Brasil. Em seus mais de sessenta anos de atividade, ela foi responsável pela tradução pioneira de autores como Ray Bradbury, Robert Heinlein, Robert A. Lee, Ievgeny Zamiátin, Abram Tertz e outros, assim como pelo lançamento de nomes importantes da literatura nacional, como Rubem Fonseca, Dinah Silveira de Queiroz, Fausto Cunha, Nélida Pinõn, etc. Sua importância para a cena cultural brasileira é, portanto, indiscutível.
É do mesmo modo inquestionável que a literatura de ficção científica constitui um gênero plural, em que se encaixam subgêneros como ficção especulativa e fantasia, mas também uma gama de temas, como catástrofe ambiental, parapsicologia, inteligência artificial, vidas extraterrenas, etc. O tema “totalitarismo” e sua abordagem frequentemente distópica constitui uma dessas veias, cujo pioneirismo é atribuído ao emblemático livro do russo Zamiátin, We ou Nous autres (traduzido pela GRD como “A muralha verde”, em 1963).
A Edições GRD é, entretanto, bem mais do que isso. Gumercindo Rocha Dórea, com quem a editora se confunde, é um personagem central e instigante da história política brasileira. Sua trajetória atravessa a rearticulação do movimento Integralista após o fim do Estado Novo, os antecedentes imediatos do golpe civil-militar de 1964 e a presença dos Estados Unidos no Brasil (para usar a expressão emblematizada por Moniz Bandeira). Nesse sentido, diferentemente do que fizeram – com muita competência – autores como Mary Elizabeth Ginway, decidi investigar a história da editora focalizando a política e atribuindo à ficção científica um papel acessório, ao contrário do que o texto de Nêumanne faz parecer.
Em entrevista que realizei com o Sr. Gumercindo Dórea em sua casa, em São Paulo, em 2009, tomei conhecimento do convênio que ele estabeleceu, entre as décadas de 1950 e 1960, com uma agência de Estado norte-americana chamada United States Information Agency (USIA). A informação a mim confiada já havia constado em matéria jornalística assinada por Oswaldo Camargo no Jornal da Tarde, publicação de O Estado de S.Paulo, em 1986. A pesquisa documental confirmou não apenas o convênio da GRD com a USIA, mas o modo como o programa (Book Development Program) financiou mais de sessenta editoras brasileiras ao longo de vinte anos (1953-1973). No caso específico da GRD, o patrocínio fomentou dezenas de títulos de história, sociologia e ciência política cuja tônica fundamental era o anticomunismo.
Nêumanne menciona a trajetória de Gumercindo como integralista, assim como as relações entre a GRD e a Livraria Clássica Brasileira (LCB), de Plínio Salgado (que também foi financiada pela USIA para a produção da coleção “Estrela do Ocidente”), objetos do capítulo 1 do livro. No entanto, não menciona o conteúdo dos capítulos 2 e 3, que se referem, respectivamente, ao comprovado envolvimento de Gumercindo Dórea no golpe civil-militar de 1964 e às suas relações com a chamada Guerra Fria cultural travada pelo governo norte-americano.
O capítulo 2 demonstra as relações entre a GRD e o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPÊS), instituição carioca detentora de vínculos com o governo e com empresas norte-americanas, responsável pelas principais articulações políticas que presidiram o golpe em 1964. O instituto possuía um núcleo específico para a produção e a circulação de livros anticomunistas, onde a editora GRD cumpriu papel central, conforme já indicaram historiadores como René Armand Dreifuss, Laurence Hallewell e Martina Spohr Gonçalves.
No capítulo 3, baseio-me em farta documentação para descrever o funcionamento do programa da USIA, demonstrando como a publicação de livros sem identificação do financiamento pelo Departamento de Estado constituiu-se como estratégia de propaganda largamente utilizada pelos Estados Unidos durante a Guerra Fria. Entre 1964 e 1967, a divulgação dessas práticas pela imprensa norte-americana gerou alarde naquele país, com jornalistas e parlamentares (da oposição, republicana, e da situação, democrata) bradando contra a propaganda ideológica subterrânea empregada pelo presidente Lyndon Johnson – algo que havia começado durante o governo Eisenhower e que se manteria, pelo menos, até o governo Nixon. A imprensa norte-americana chegou a dizer que eles estavam se comparando ao “ardil do inimigo soviético”. Ironicamente, a capa do meu livro, que Nêumanne qualifica como “grotesca”, foi extraída do caderno Book Week, do The Washington Post de 05 de fevereiro de 1967, que produziu uma das matérias em questão. Uma leitura atenta do livro não deixaria escapar essa informação.
Capa do caderno “Book Week”, do The Washington Post, reproduzida em “Guerra Fria e Política Editorial”. National Archives and Records Administration (NARA). USIA Records.
A celeuma instaurada nos Estados Unidos demonstra que aquele país, como o Brasil, é eivado de contradições. De um lado, a história da sua política externa, particularmente aquela dirigida à América Latina, remonta ao apoio a regimes ditatoriais, bem como à utilização de práticas escusas de propaganda para influenciar o jogo político. Esse fato já foi amplamente anunciado, inclusive, por historiadores norte-americanos da importância de Thomas Skidmore e James Green. De outro lado, a democracia continua sendo inegociável para considerável parte do povo norte-americano, que não hesita em questionar as contradições de seu governo quando explicitado o uso do argumento democrático para fins outros que não assegurar a soberania e a emancipação de todos os povos. Não por acaso, naquele país, meu trabalho também tem obtido reconhecimento no ambiente acadêmico dos chamados “brasilianistas”.
Com efeito, o capítulo 4 do livro dedica-se ao universo da ficção científica, subsidiando a tese de que o anticomunismo se constituiu na veia central do programa editorial da GRD, assumindo contornos específicos na linguagem da literatura distópica. A análise rigorosa de romances como “A muralha verde” (Zamiátin), “Balada de Estrelas” (Altov e Juravleva), “Começa o julgamento” (Abram Tertz), “A 7ª. Questão” (Robert A. Lee) e outros, assim como dos seus paratextos editoriais (orelhas, prefácios e posfácios escritos por Dórea), não deixa dúvidas a esse respeito. A realidade soviética era afirmada pelo editor como uma ameaça que rondava o Brasil, o que convocava os leitores brasileiros à reação política encarnada naquilo que as direitas brasileiras convencionaram chamar de “Revolução de 1964”.
É, no mínimo, simplória a interpretação de que Gumercindo Dórea seja um vilão na história do Brasil, tampouco vassalo dos Estados Unidos. Ele foi um ator importante, que ocupou diversos espaços associados às elites políticas brasileiras ao longo do século XX. Se, em sua atuação, envolveu-se em estratégias pouco democráticas, como a da propaganda subterrânea norte-americana, essa é a questão central que o livro tematiza e problematiza. Gumercindo Dórea não é tampouco herói, e o livro lhe faz justiça quando reconstrói sua trajetória com honestidade intelectual e baseado nos procedimentos mais caros à prática historiográfica: análise rigorosa das fontes, interpretação e narrativa acurada.
Engana-se quem pensa que a Guerra Fria cultural não tenha existido, ou que seus estratagemas tenham ficado no passado. No momento político atual, depois que a Câmara e o Senado norte-americanos aprovaram leis de criação de uma agência de propaganda nos moldes da USIA (Strategic Communications Acts de 2008 e 2009), dez anos depois de ela ter sido extinta pelo presidente Bill Clinton, o debate sobre o tema faz-se mais do que necessário. Nesse sentido, na contramão do argumento, sublinho que José Nêumanne acaba por fazer propaganda de “Guerra Fria e Política Editorial”, embora, em nenhum momento, lhe tenha feito justiça.
De acordo, acabei lendo todo o texto por causa da parcialidade conhecida do Sr. Nêumanne.
Parabéns pelo Trabalho!