Isto não é uma estátua  

Algo está muito errado em uma sociedade cuja polícia protege suas estátuas e ataca seus cidadãos. Ainda mais quando a polícia ataca os descendentes daqueles a quem a pessoa representada pela estátua escravizava.

Desde que a derrubada de estátuas de traficantes e escravocratas passou a integrar os protestos anti-racistas contra a violência policial na Inglaterra e nos Estados Unidos, a polícia de São Paulo vem protegendo a estátua de Manuel de Borba Gato (1649-1718), símbolo do bando que escravizava, estuprava e assassinava indígenas e negros.

O mais interessante é que, no contexto dos atuais protestos, nem a estátua de Borba Gato nem qualquer outra foi de fato ameaçada no Brasil. O que houve aqui foi um civilizado abaixo-assinado, demandando das autoridades a remoção da escultura. Mas só a possibilidade de que algo pudesse acontecer ao monumento gerou uma reação de tal monta que só pode ter sido causada pelo medo branco à simples ideia de uma onda negra entre nós.

Onda negra, medo branco é o título do livro de Celia Azevedo (Paz e Terra, 1987), cujo tema é o medo dos escravocratas brasileiros de que houvesse no Brasil uma rebelião de escravizados como a que houve na colônia francesa de Saint Domingue em 1791 e levou à independência do Haiti. Ao longo do século XIX, o pavor sentido pela elite brasileira foi usado como justificativa para a repressão desmedida contra qualquer ação de resistência da população escravizada. No pós-abolição, ele foi traduzido em políticas públicas excludentes e em violência racial.

Em geral, há dois argumentos usados por aqueles que defendem a  manutenção das estátuas nos espaços públicos. Uma é o seu valor como obra de arte. Convém lembrar, nesses casos, que  a prática de intervir em objetos, mesmo aqueles de indiscutível valor artístico, faz parte da própria dinâmica de constituição dos espaços públicos. Um exemplo: quem visita o Jardim Botânico do Rio de Janeiro tem a oportunidade de apreciar o portal da Real Academia de Belas Artes, projetado pelo arquiteto francês Grandjean de Montigny. Até 1908, o portal ficava no edifício da escola, próximo à praça Tiradentes, no centro da cidade. Com a demolição do prédio, ele foi removido e integrado à belíssima Aléia das Palmeiras, projetada no século anterior. Ficou lindo — mas totalmente descontextualizado de sua função original.

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O outro argumento contra a intervenção nas estátuas diz respeito ao seu suposto valor histórico. Remover uma estátua seria como apagar a História, argumentam alguns. Aqui é hora de lembrar que as estátuas são monumentos erigidos com a intenção explícita de homenagear pessoas ou acontecimentos do passado. Elas não são o passado.

A estátua que você vê na rua nunca é só uma estátua. No caso de esculturas que homenageiam pessoas, elas sempre remetem pelo menos a três tempos: ao tempo em que o homenageado viveu; ao tempo que o objeto foi elaborado; ao tempo presente, quando ele é cotidianamente ressignificado por aqueles que o vêem.

Quando uma estátua deixa de ser uma estátua e passa a ser objeto de disputas? Talvez todas sejam. Outro exemplo: bem no centro do calçadão da praia Vermelha, que eu frequentava quase diariamente antes do início da pandemia, jaz a escultura em bronze que representa o compositor polonês Frederic Chopin (1810-1849), de Augusto Zamoysky.  O monumento, inaugurado em 1944, foi transferido seis anos depois para a praça Floriano, de onde retornou em 1959. Pois outro dia descobri que o monumento foi um presente da Associação dos Poloneses do Rio de Janeiro em desagravo à destruição de uma estátua de Chopin em Varsóvia, quando a cidade foi invadida pelos nazistas. Símbolo do nacionalismo romântico polonês, a imagem do compositor já havia sido atacada pelos russos no século XIX, que proibiram suas músicas e até destruíram seu piano. O presente da comunidade polonesa à cidade do Rio de Janeiro não deixa de ser um protesto e uma afirmação da independência polonesa. Hoje em dia nós, frequentadores do local, sequer notamos a escultura.

Por que ninguém ataca a escultura de Chopin aqui no Rio? Por que tanto pavor é  suscitado pela mera discussão sobre o destino dos monumentos que representam assassinos, escravizadores, traficantes? Porque é este o passado que nós precisamos, aqui no Brasil, confrontar. Porque este é o passado do nosso desconforto, aquele que ainda não passou.

Ao invés de lidar com os nossos traumas, nós reforçamos os mitos da ausência de conflito em nossa história: fomos os únicos a proclamar a independência sem guerra; nossa escravidão foi abolida sem sangue, no Parlamento; nossa ditadura militar começou a ser finda com uma lei que anistiava resistentes e torturadores. Enquanto negamos os conflitos, convivemos com o racismo, com a violência, com a sombra do autoritarismo.

Confrontar o passado exige que reconheçamos seus horrores. Para começar, podemos deixar de homenagear ditadores e escravistas em nomes de ruas, praças, escolas. Talvez assim consigamos ver o dia em que a polícia vai deixar de proteger as estátuas e se dedicar a seus cidadãos.

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crédito da foto.

9 Comentários

Arquivado em antiracismo, história e memória

9 Respostas para “Isto não é uma estátua  

  1. Emanoel Germano

    Como disse o historiador Chinês Yan Jisheng (publicou ‘Tombstone’, em 2008), dentre outros grandes historiadores e historiadoras: “Se uma nação não pode encarar a sua história, ela não terá futuro”. Essa frase bastante elucidativa diante de toda sua reflexão.

  2. Pingback: Dossiê: Estátuas!!!!! | conversa de historiadoras

  3. Onete Lopes

    Eu tinha dúvidas quanto à destruição. Para mim destruir as estátuas não apaga a história mas edita a barbárie que elas representam, como escreveu Walter Benjamin. Entretanto, talvez não seja mesmo necessário preservá-las, visto ser necessário construir o novo. O devir deve ser marcado pela destruição dos erros do passado. Então abaixo as estátuas que homenageiam tiranias e tiramos.

  4. Gertrude

    Professora, a sra. poderia comentar sobre a escultura em homenagem a Zumbi, no Rio, que é na verdade uma ampliação da cabeça do Obá de Benin (col. British Museum), que participava do tráfico Atlântico de escravizados. Acha que isso deveria ser motivo de um debate público? Uma placa no local esclarecendo o engodo? Substituir por uma estátua do Prata preta?

    • Há muitos equívocos na sua informação. Há um belo artigo acadêmico sobre a história da construção da estátua de Zumbi no Rio de Janeiro: Mariza Soares. Nos atalhos da memória. In: KNAUSS, Paulo. (Org.). A cidade Vaidosa. Imagens urbanas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999, v. 1, p. 117-135. Não deixe de ler. Quanto à escultura do antigo Benin ali reproduzida representando Zumbi, ela é anterior ao tráfico atlântico. Sobre a participação do antigo reino do Benin no tráfico europeu de escravizados no atlântico, informo que, dos reinos da costa da África ocidental, ele foi o que teve menor participação (lembrando que o antigo reino do Benin não está no mesmo território do atual país com o mesmo nome, antigo Daomé). Sobre o tema, veja o livro de Paul Lovejoy, que tem tradução em português, A escravidão na África. Uma história de suas transformações.

      • Aristóteles Amândio Coelho

        A escultura em homenagem a Zumbi, uma ampliação da cabeça do Obá de Benin, é um exemplo do mito escroto da superioridade yoruba-nago que a academia branca brasileira tanto força. Zumbi não era nago nenhum, era bantu! E nem creio que havia yoruba-nagos naquele tempo.

  5. Vilma Maria Azevedo

    Ótimo comentário. Aplausos.

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