Os deuses gregos e o Valongo: um caso exemplar de estátuas fora do lugar

Quem visita o Cais do Valongo hoje, local de chegada de aproximadamente 1 milhão de africanos escravizados,  tem dificuldades para imaginar quantas transformações aquele espaço já passou para esconder  um dos maiores crimes contra a humanidade, como tão bem demonstrou José Pessoa.  Da antiga praça do mercado, onde se localizava o Cais da imperatriz, projetada  por importantes engenheiros e arquitetos da Corte para mostrar a civilização do Império do Brasil,  só restou mesmo, e não sei bem os motivos, o obelisco, outrora um chafariz (um dos muitos destinados ao abastecimento da cidade).  A coluna de granito, bem visível, ficava ao centro de um tanque regular, não mais existente, e ainda sustenta uma esfera armilar e três setas de bronze, símbolo das armas da cidade.

Mas como o assunto são as estátuas, vou me ater ao sumiço de quatro estátuas de deuses gregos (ou romanos?) que lá tinham sido colocados em 1843 para receber (e impressionar?) a princesa napolitana Teresa Cristina, futura esposa de D. Pedro II e imperatriz do Brasil. Quem teria tirado as estátuas dos deuses gregos?  Foram arrancadas, destruídas ou foram para algum museu? Alguém protestou ou fez algum movimento para que permanecessem no local?

Ironias a parte, ficamos sabendo que as estátuas atravessaram o século 19 e dali só foram retiradas em função das obras de reforma do porto, empreendidas pelo então prefeito Pereira Passos, no início do século 20.  Não satisfeito de enterrar mais uma vez o passado africano, Pereira Passos enterrava também o passado imperial com a construção do porto moderno (e republicano) e com a retirada das estátuas do Cais.

Mas se o visitante seguir pelo Circuito da Herança Africana, idealizado quase 100 anos depois pela prefeitura de Eduardo Paes, encontrará as estátuas dos deuses gregos!!!  Elas estão muito bem conservadas e imponentes no Jardim Suspenso do Valongo, um jardim elevado alguns metros da rua, construído por Pereira Passos (simbolicamente associado aos jardins da babilônia), em 1906, quando da abertura da velha rua do Valongo (hoje Camerino). A ideia do arquiteto Luis Rei era um jardim para deleite e passeio em lugar aprazível, bem de acordo com a política municipal de embelezamento – e branqueamento – da cidade de acordo com o gosto europeu. Mas logo ali?

Pouco se sabe da origem ou autoria das estátuas de mármore que representam os deuses Minerva, Marte, Ceres e Mercúrio.  Mas, muito diferente dos marcos da presença africana na região, como o Cemitério dos Pretos Novos (IPN) e a Pedra do Sal, foram muito bem cuidadas e protegidas –  não tenho dúvidas.  Junto com o Jardim, as estátuas receberam proteção do IPHAN através do tombamento realizado em 1938. Na década de 1990 teriam saído dali para um apurado trabalho de restauração. Em 2014, quando das reformas do “porto maravilha” e do próprio Jardim Suspenso por Eduardo Paes, as estátuas teriam retornado ao Jardim por decisão do prefeito, pelo que pude apurar (não consegui descobrir ao certo se as que ali se encontram são as originais, ou não, posto que foram feitas cópias para garantir total proteção). Era o “porto maravilha”.

foto guilherme

Foto Guilherme Hoffmann. Projeto Passados Presentes.

Com certeza, é bom saber que estátuas da primeira metade do século 19, peças decorativas de um cais para receber uma princesa europeia, tenham sido tão consideradas e valorizadas.  A municipalidade pagou por elas, são obras artísticas e patrimônios tombados. Perfeito! O que não é nada perfeito é só elas terem recebido tratamento e destaque especial, quando vemos que o patrimônio afro-brasileiro na região só com enorme mobilização dos movimentos sociais mantém presença e visibilidade.

A pergunta que não pode calar é: Qual o sentido de visitarmos o Jardim Suspenso hoje e seus deuses gregos, se não sabemos o que suas estátuas realmente significaram quando foram colocadas no Cais e depois transferidas para o Jardim? Preciso confessar que não defendo a remoção das estátuas para algum museu, muito menos que sejam derrubadas ou destruídas, até porque todos os deuses merecem respeito. Esses, por sinal, não têm responsabilidade alguma com a história do tráfico, muito menos com as políticas racistas e de branqueamento da primeira república. MAS ELAS NÃO PODEM FICAR ALI SOZINHAS, registrando só um lado da história – esse é o ponto!!!!!

Ao longo do século XIX, essas estátuas ajudaram a esquecer o local de entrada de africanos escravizados. Ao longo do século XX pousaram com “olhar de paisagem”, certamente sem entenderem nada, no coração da Pequena África, onde os descendentes de africanos escravizados construíram um Brasil negro e antirracista com seus orixás, sambas, carnavais, associações dançantes, religiosas e de trabalhadores. Sua presença ali, sozinhas, indica a vitória de uma única memória, passado e história. Basta. É hora de mudança no sentido de construção de uma história pública que registre a presença negra no espaço urbano.

Mas ainda cabe uma pergunta: o que fazer com as estátuas agora?  Já ouvi ótimas e criativas respostas de alunos e visitantes (como por exemplo, pintá-las de preto, cobri-las com um pano preto). Vale talvez uma ampla discussão e consulta com a população e movimentos sociais da Pequena África, mas meu voto será para deixá-las ali mesmo como testemunhas do racismo na decoração do espaço urbano. Por outro lado, todos os deuses podem ajudar na reconstrução do passado e no fim do silenciamento da história dos afro-brasileiros.

Podemos começar com a sugestão de mudança do nome do próprio Jardim Suspenso para Mirante da Pequena África, proposta que eu e Monica Lima desenvolvemos no Museu da História e Cultura Afro-Brasileira (MUCHAB), já que dali se avistam a Praça dos Estivadores, a Rua Barão de São Felix, o morro da Providência, a Central do Brasil, os morros das primeiras Escolas de Samba e a velha Praça Onze, locais de memória da história negra na cidade do Rio de Janeiro.  Outra possibilidade é invadirmos o velho espaço de Pereira Passos com estátuas de deuses africanos e personalidades negras que protagonizaram a história da região e do Brasil, como Tia Ciata, que, aliás, já está ali, a Rainha Mandinga, Mãe Aninha, Monteiro Lopes, Mano Eloi, Pixinguinha e muitos outros. Só desta forma os deuses gregos, ou melhor, as estátuas dos deuses gregos, podem permanecer na Pequena África.

Foto Alexandre Macieira - Riotur

Foto Alexandre Macieira, Riotur.

11 Comentários

Arquivado em antiracismo, história e memória

11 Respostas para “Os deuses gregos e o Valongo: um caso exemplar de estátuas fora do lugar

  1. Emanoel Germano

    Professora Martha Abreu, sempre quando visitei, e revisito, a Pequena África, com alunos e alunas do pré-vestibular social Samora Machel (UFRJ) apontei (e aponto…) essa contradição e discrepância da presença dos monumentos gregos, nesse local ricamente construído e marcado pelas lutas e liberdade do povo negro.

    As memórias desses monumentos gregos são, ao meu ver, uma ofensa cruel e escancarada da parte dos sucessivos governos e do Estado para com a população negra do Rio do Janeiro e do país. Faço coro com a sua análise de uma “ampla discussão e consulta com a população e movimentos sociais da Pequena África” para legitimarem ás escolhas dos nomes dos locais e quais monumentos lhes representam, tendo em vista, o persistente racismo que o Estado brasileiro procura (e aos poucos vem procurando superar), invisibilizando sua historicidade e ativismos do povo negro na construção da história brasileira.

    Excelente texto! Me fez refletir sobre meu papel enquanto professor de história na leitura desses locais de memórias, em diálogo com as lutas do tempo presente.

  2. Pingback: Dossiê: Estátuas!!!!! | conversa de historiadoras

  3. Rita Montezuma

    Gostei da sugestão. E digo mais: marcar presença com os principais orixás reverenciando as religiões de matriz africana, abençoando e protegendo nosso solo sagrado.

  4. Helenice Rocha

    Olá, Martha.
    Gostei muito de sua reflexão. O conceito de interferência na arte pode ajudar a resolver essa questão. Esse jardim, como sugere, pode promover uma conversa entre divindades que são icônicas para diferentes civilizações. Pode ficar um belo trabalho de interferência e ajudar a promover debates instigantes como o que coloca aqui.

  5. MARTHA CAMPOS ABREU

    obrigadão Emanuel Germano. Tamu Juntu!

    • Prezado Dra. Martha, você é o historiadora com publicações sobre o último navio negreiro no Brasil? Minha vó me disse quando eu tinha uns 12 ou 13 anos, que o pai dela meu bisavô havia chegado no último navio negreiro no Brasil no Rio de Janeiro. Caso seja você a historiadora gostaria de conversar contigo sobre o tema.

  6. JOSE PESSOA

    Oi Martha,
    Gostei muito do texto e da sugestão dos seus alunos de pintar as estatuas de preto. As estátuas no Jardim são cópias feitas depois que o então prefeito Conde levou os originais para o jardim do Palácio da Prefeitura, onde estão até hoje.

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s