Arquivo da categoria: Patrimônio Cultural

De Moçambique ao Moçambique!

Há muito tempo não fazia um texto solo neste Conversa de Historiadoras, que nasceu a quatro mãos e depois virou obra ainda mais coletiva.

Neste domingo, porém, ele é necessário, porque quero saudar algumas das companheiras de blog, que estão fazendo a diferença neste início de ano e contar de um novo projeto de pesquisa, coletivo, é claro, que estou coordenando na UFJF.  

Pensar a história como ciência social que propõe questões sobre os seres humanos no tempo e, por conta disso, impacta e condiciona a produção de narrativas sobre o passado, é premissa que tem orientado meu trabalho de historiadora neste século XXI. Formular novas questões de pesquisa, a partir de novos lugares sociais de observação, que possam levar a novas narrativas e abordagens da história do Brasil, é também fio condutor deste blog e de suas conversas e norteou nossa última iniciativa coletiva, o curso Emancipações e Pós-abolição: por uma outra história do Brasil.

Uma outra história do Brasil em relação a qual história? Tentei responder esta questão na primeira aula daquele curso. Não vou repetir por aqui tudo que falei por lá, mas entre as instituições de memória que surgiram com a emergência dos estados nacionais no contexto das independências americanas, os Arquivos Nacionais ocupavam lugar de destaque. Entre eles, o Arquivo Nacional Brasileiro, criado pelo estado imperial, “pelo regulamento n. 2, de 2 de janeiro de 1838, com o nome de Arquivo Público do Império, visando a guarda dos documentos relativos à memória nacional e à administração do Estado”. Desde então, a política do que deve ser guardado para a história e o que deve ser esquecido na experiência de gestão política do país passa por essa instituição.

Neste contexto, o anúncio para a direção do AN da nossa colega de blog Ana Flávia Magalhães Pinto, autora de uma vigorosa reflexão historiográfica com novas e iluminadoras questões sobre a experiência negra no Brasil, para além do trauma escravista, é notícia para ser celebrada. Depois de quatro anos de obscurantismo, ela é garantia não apenas de uma gestão acadêmica e profissional, mas também de um olhar inovador e corajoso a frente de uma instituição chave na produção da memória nacional e do racismo institucional que ainda a condiciona.

Ana Flávia Magalhães Pinto nomeada nova diretora do Arquivo Nacional. Foto de Divulgação.

O Blog está com tudo e está prosa. Novas histórias do Brasil, abraçando todos os brasileiros, parecem ainda mais possíveis e mais próximas.

Enquanto isso, na virada do ano, Martha Abreu associava nossa experiência de pesquisa sobre a história e memória do tráfico ilegal de escravizados no atual quilombo do Bracuí, às lideranças do próprio quilombo, ao Laboratório de Arqueologia de Ambientes Aquáticos da UFSE e à equipe de cineastas da Aventura Produções e Edições Educativas, em parceria com o Slave Wrecks Project do Smithsonian Institution National Museum of African American History and Culture, para criar o projeto Afrorigens: dos naufrágios ao quilombos, que já ganhou teaser e página na internet.

O projeto de história e arqueologia públicas revisita o naufrágio criminoso do brigue escravagista Camargo, por seu comandante, o estadunidense Capitão Gordon, após o desembarque ilegal de 503 africanos vindos de Moçambique nas praias da antiga fazenda do Bracuí. Em colaboração com a comunidade quilombola e sua tradição oral, Afrorigens busca registros do passado para alcançar um futuro mais inclusivo. Vale a pena conferir:

Martha Abreu, Marilda de Souza, liderança quilombola e a equipe de arqueólogos e mergulhadores do projeto Afrorigens.

Por fim, como coordenadora do grupo de pesquisa emancipações e pós-abolição em Minas Gerais (GETP-MG), em parceria com a Rede de Patrimônios Imateriais Afroameríndios e Políticas Públicas na América Latina (IRD-FR) e mais cerca de 40 pesquisadores de diferentes universidades, também atuantes no chão da escola, terminei 2022 com a alegria de ver aprovado, no edital Humanidades de CNPq, o projeto Passados Presentes: patrimônios e memórias negras e afro-indígenas em Minas Gerais.

Dos egressos de Moçambique que deram origem ao Quilombo do Bracuí ao vigor do Moçambique, signo maior de africanidade do patrimônio negro de Minas Gerais, delineia-se uma nova etapa do projeto transnacional Passados Presentes (LABHOI/ UFJF/UFF e CLAS/PITT). Propomos dessa vez, como problema de pesquisa, estudar as interações afro-indígenas na história e na memória de quilombolas e de detentores de patrimônios negros como reizados, congadas, moçambiques, jongos e folias de reis, nas Minas Gerais a leste da Mantiqueira, bem como as relações dessas manifestações e de seus sujeitos com a história da África, do associativismo negro e das religiões de matriz africana na região.

A partir de dezenas de pesquisas já em andamento, a ideia é explorar a memória das relações afro-indígena como elemento constituinte da negritude mineira contemporânea em diferentes espaços e temporalidade, com destaque para: 1) a região histórica da mineração, alvo do impacto da imigração maciça de colonizadores portugueses e escravizados africanos sobre áreas indígenas no século XVIII, em torno de Ouro Preto e Mariana, 2) as regiões que se conectaram mais diretamente com a imigração forçada da última geração de africanos e com o processo de etnocídio e desterritorializacão das populações originárias que ainda ocupavam as áreas de ligação entre a região do ouro e os portos do Rio de Janeiro e de Salvador, no século XIX, como o Sul de Minas, o Campo das Vertentes, a Zona da Mata e os Vales do Mucuri e do Jequitinhonha e 3) as cidades que receberam migrações negras no pós-abolição, com destaque para a capital, Belo Horizonte e a cidade de Juiz de Fora.

Os resultados da pesquisa de base vão alimentar o arquivo oral colaborativo Memórias do Cativeiro (LABHOI/UFF/UFJF)/ Afro-Brazilian Heritage (CLAS/PITT) e o banco de dados Passados Presentes: memória da escravidão no Brasil, alargando possibilidades de análises comparadas em novas pesquisas. Serão também divulgados na Plataforma Digital do projeto, tornando-se acessíveis aos detentores dos patrimônios culturais estudados, alguns deles pesquisadores do grupo, permitindo sua utilização na produção de material paradidático, em museus de território, em exposições e aplicativos de memória. O diálogo epistemológico entre saberes se coloca como ferramenta metodológica e desafio teórico do trabalho.

Divulgo, com alegria, a equipe completa do projeto. Enquanto não colocamos no ar nossa plataforma digital, vamos dar notícias do projeto e de sua equipe por aqui.

Para todos nós!

Bom trabalho!

PROJETO: PASSADOS PRESENTES – PATRIMÔNIOS E MEMÓRIAS AFRO-INDÍGENAS EM MINAS GERAIS.

Coordenação Geral: Hebe Mattos (Grupo de Pesquisa Emancipações e Pós-Abolição e LABHOi/Afrikas, UFJF) – hebe.mattos@gmail.com

Coordenação Associada: (PROJETO E BANCO DE DADOS Passados Presentes)

Martha Campos Abreu (LABHOI-UFF) – marthacabreu@gmail.com

Keila Grinberg (CLAS-PITT – UNIVERSITY OF PITTSBURGH) keila.grinberg@gmail.com

Coordenação Executiva (Pesquisa – MG):

Ana Luzia Morais – analuziadasilvamorais@gmail.com (Detentora)

João Paulo Lopes – jopalop@gmail.com (IFSULDEMINAS)

Lívia Nascimento Monteiro – livia.monteiro@unifal-mg.edu.br (UNIFAL-MG)

Jonatas Roque – jonatasroque4@gmail.com, jonatashistoria2010@hotmail.com

Josemeire Alves Pereira – josemeire.hist@gmail.com (FLACSO)

Mariana Bracks Fonseca – marianabracks@academico.ufs.br (UFS)

Pesquisa de arquivo/campo – produção de conteúdo:

Ana Luzia Morais – analuziadasilvamorais@gmail.com

Aline Guerra da Costa – agcosta@id.uff.br

Amanda Lira – amandalira2166@gmail.com

André Luiz Ribeiro de Araújo – andreclassrock@hotmail.com

Carolina dos Santos Bezerra-Perez – carolinaacoesafirmativas@gmail.com

Cleo Souza – cleosouzalh@gmail.com

Daniele Neves – danieleneves1793@gmail.com

Dayana Oliveira – dayanaoliveira01ufjf@gmail.com

Giovana Castro – racinacastro@gmail.com

Isaac Cassemiro Ribeiro – – isaac.ribeiro7@gmail.com

João Paulo Lopes – jopalop@gmail.com

Janete Flor de Maio Fonseca – flormaio@ufop.edu.br

Jéssica Mendes – JESSICAMENDESHIST@gmail.com

Jonatas Roque – jonatasroque4@gmail.com, jonatashistoria2010@hotmail.com

Josemeire Alves Pereira – josemeire.hist@gmail.com

Lívia Nascimento Monteiro – livia.monteiro@unifal-mg.edu.br

Luciano Magela Roza – luciano.roza@ufop.edu.br

Luis Roberto Cruz – luis.cruz@engenharia.ufjf.br

Luiz Gustavo Cota – luiz.g.cota@ufv.br

Luan Pedretti (UFJF) – luanpredetti@gmail.com

Mariana Bracks Fonseca – marianabracks@academico.ufs.br

Maria do Rosário – maria.mrgs@gmail.com

Marlon Marcelo – marlonmarcelo.s@gmail.com

Marileide Lázara – marileidelazara@gmail.com

Roseli dos Santos – selix07@hotmail.com

Rhonnel Américo – rhonnelcoach@gmail.com

Samuel Avelar – savelarjr@gmail.com

Sidnéa Francisca dos Santos – sidnea.ouropreto@gmail.com

Silvia Maria Jardim Brügger – sbrugger1970@gmail.com

Simone Assis – sissamones@hotmail.com

Tayane – tayanearo@gmail.com

Tailane de Oliveira Dias – tailane.o.dias@gmail.com

Vanessa (UFJF) – vanessaloopes13@gmail.com

Consultoria de produção de conteúdo relacionando Minas Gerais, História Pública e História da África:

Fernanda do Nascimento Thomaz (LABHOI/AFRIKAS-UFJF) – fefathomaz@yahoo.com.br

Mônica Lima e Souza (LE AFRICA, UFRJ) – monicalimaesouza@gmail.com

Vanicléia Silva Santos (University of Pensilvania) – vsantos@upenn.edu

Produção de conteúdo didático:

Lívia Nascimento Monteiro – livia.monteiro@unifal-mg.edu.br

Luciano Magela Roza – luciano.roza@ufop.edu.br

Luiz Gustavo Cota – luiz.g.cota@ufv.br

Consultores de conteúdo / Rede Patrimônios Afro-ameríndios na América Latina

Christine Douxami (IRD-Brésil) – chrisluabela@yahoo.fr

Carolina Christiane de Souza Martins (UFPA) – caroldesouzamartins@gmail.com

Matthias Assunção (UNIVERSTY OF ESSEX) – matthias_capoeira@yahoo.com.br

Consultores de conteúdo/ Parceiros na UFJF

Mateus Andrade – mateus.rezende@gmail.com (LAHES)

Robert Daibert Jr – robertdaibert@uol.com.br (LABHOI)

Marcos Olender – marolender@yahoo.com.br (LAPA)

Congado e Moçambique de Pidedade – MG

https://www.facebook.com/CongadaeMocambique/

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Arquivado em democracia, história e memória, história pública, Patrimônio Cultural, Pos-abolição

O CAPANEMA É NOSSO … por Márcia Chuva

No dia 13 de agosto, foi publicada, no jornal Valor Econômico, a notícia da intenção do governo federal incluir o Palácio Capanema no feirão de imóveis da União. A reação a tal notícia foi tamanha, vinda de todos os lados que no dia seguinte o governo pareceu ter recuado dessa intenção. Verificamos, contudo, que o Capanema não somente permaneceu na lista como nela estão incluídos talvez todos os imóveis da União na cidade do Rio de Janeiro, sem qualquer critério seletivo evidente. A intenção, ao que parece, é saber quais deles receberão alguma intenção de compra.

Desse grande escárnio e imbróglio, saltou-me aos olhos a imensa repercussão que teve a notícia da venda do Palácio Capanema, não pelo seu valor, é claro, mas por ser indício do contexto distópico em que vivemos, no qual tamanho descalabro pode tornar-se crível, e ser vivido como uma ameaça real e não simplesmente uma brincadeira de mau gosto. Por isso mesmo, nesses tempos tão sombrios, torna-se urgente e ainda mais necessário lutar pela preservação desse edifício, pelo que representa e pela história nele incorporada.  

O Palácio Capanema – antigo Ministério da Educação e Saúde Pública – não se trata apenas de um “edifício público desocupado e obsoleto” como o governo federal e inúmeras notícias desencontradas que saíram na imprensa tentaram qualificar naquela sexta feira 13. A luta, de fato, é contra uma prática política destrutiva, mórbida e perversa. Contra o despejo da Cultura, pois o Capanema não está vazio.

A construção desse edifício teve início em 1937, tendo sido inaugurado em 1945. Sua construção coincidiu com todo o período do Estado Novo, regime autoritário instalado por Getúlio Vargas no Brasil e sua inauguração se deu poucos dias antes da destituição de Vargas e do fim do regime. Foi durante a gestão de Gustavo Capanema a frente do Ministério da Educação e Saúde Pública (1934-1945) – os famosos Tempos de Capanema – que esse projeto foi desenvolvido, graças ao empenho do ministro, conhecido pelo prestígio que tinha junto ao Vargas e pelo poder e força do seu ministério. A denominação de Palácio Gustavo Capanema (ou somente Palácio Capanema) veio muitas décadas depois, após a morte do ex-ministro em 1985, ano também da criação do Ministério da Cultura. Embora extinto pelo atual governo, as instituições a ele vinculadas persistem e ocupam majoritariamente o edifício.

Aos tempos de Capanema se superpõe o período da 2ª Guerra Mundial também e dois aspectos podem ser ainda destacados desse contexto. O primeiro deles, é que, se por um lado o foco da tecnologia e da ciência estava voltado para a guerra, a destruição e seus efeitos, aqui no Brasil a tecnologia voltava-se também para a construção do novo sem com isso destruir os traços do passado – ambos, passado e presente, postos lado a lado para simbolizar a nação brasileira moderna projetada, na forma de utopia. A nação era projetada também de forma objetiva e planejada, o que remete ao segundo aspecto: a industrialização em curso naquele contexto, como parte de um projeto de construção de um país auto-suficiente, não dependente. Medidas no plano econômico e no plano diplomático tiveram que ser adotadas para que o moderno ministério fosse construído, pois era preciso ter cálculo político e jogo de cintura para lidar com as grandes potências em guerra.

Mas esse contexto ainda não bastaria para justificar a importância e a singularidade desse edifício, que se tornou um ícone da arquitetura moderna no Brasil e no mundo. Os aspectos formais do projeto arquitetônico também expressam essa utopia moderna, a vontade de construção de uma nação soberana, ancorada na institucionalização de políticas de cultura, educação e saúde pública e gratuita, planejadas pela primeira vez em âmbito nacional, a fim de um dia alcançar todos os cidadãos brasileiros.

O edifício foi projetado por um grupo de arquitetos ligados ao movimento moderno da arquitetura brasileira, Afonso Reidy, Carlos Leão, Ernani Vasconcellos, Jorge Moreira, o recém-formado Oscar Niemeyer, liderados por Lucio Costa. O grupo trabalhou em cima das ideias lançadas por Le Corbusier, o renomado arquiteto modernista de origem suíça, que na ocasião esteve com Lucio Costa, no Rio de Janeiro.

Trata-se do primeiro edifício construído no âmbito desse movimento, naquelas dimensões. Obedecendo aos princípios do modernismo, seus autores deixaram aparentes os materiais utilizados, que deveriam adotar tecnologia e materiais contemporâneos ao seu próprio tempo. Ao mesmo tempo, introduzem elementos que consideravam lições do modo de construir dos tempos coloniais, relativos à insolação, luminosidade e circulação de ar.

Pano de vidro da fachada sul. Autor: Oscar Liberal – IPHAN.

As janelas amplas fazendo um pano extenso de vidro na fachada capaz de captar luminosidade e ventilação naturais postos de um lado da edificação, em conexão com o brise-soleil na outra vertente do edifício garantem uma ventilação cruzada.

Brise-soleil da fachada norte. Autor: Oscar Liberal – IPHAN

São inúmeras as obras de arte de artistas brasileiros integradas ao edifício desde o projeto, com grande destaque para os afrescos de Cândido Portinari no Auditório da sobreloja e no Salão do andar ministerial.

Afrescos de Cândido Portinari, no andar ministerial. Autor: Oscar Liberal -IPHAN

Desde sua construção, muitos são os especialistas que se aprofundaram no projeto arquitetônico do Ministério da Educação e Saúde (MES) e que poderiam falar sobre sua importância na História da Arquitetura Brasileira. Mas tendo trabalhado no Capanema diariamente ao longo de 27 anos, vivenciando o espaço e a linguagem desse projeto arquitetônico que sempre me encanta e nunca canso de admirar, quero destacar um elemento que me parece muito valioso e revolucionário na origem e ainda hoje: a simplicidade com que se adentra no edifício. A não monumentalidade do seu hall de entrada e expressão de uma educação, saúde e cultura acessíveis a todos

Entrada principal do edifício. Autor: Oscar Liberal – IPHAN

Talvez por isso também o edifício do Ministério da Educação e Saúde Pública tenha sido definitivamente incorporado como um dos símbolos de um projeto de nação utópico, de um sonho inconcluso, sempre em processo. Portanto, não se trata de ficarmos presos aos tempos iniciais da sua construção, pois nada tem de nostálgica a atual defesa do Palácio Capanema, que ganhou as ruas e as redes. Sua materialidade condensa esse projeto e talvez justamente por isso esteja sendo desprezado e colocado à venda, para esvaziar seus sentidos e valores agregados, pelo tanto que já se fez ali. A cultura e a educação pública sobrevivem no país como resistência e o Capanema é a sua casa! É lugar de muitas manifestações contra o autoritarismo e contra a aniquilação da cultura no sentido amplo.

A mais recente manifestação foi o movimento OcupaMinc, em que artistas, estudantes e funcionários ocuparam por cerca de 3 meses o Palácio Capanema contra o desmonte da cultura que tinha se iniciado com o golpe contra a presidenta Dilma e a extinção do Ministério da Cultura, retrocedida então em função da pressão dos movimentos e da sociedade.

Todos devem se lembrar como os policiais federais cumpriram mandado de reintegração de posse do Palácio Gustavo Capanema, publicado na ocasião na imprensa e nas redes sociais. O que não saiu na imprensa, contudo, foi o modo como foi feita a desocupação do Capanema por todos os órgãos que funcionavam no edifício, pouco tempo depois. Não questiono a justificativa dada à época para a evacuação do edifício, em função das obras de restauração que poderiam colocar em risco a segurança dos trabalhadores da cultura no prédio. Mas, considerando o modo como se deu, sem o devido respeito às normas básicas de preservação do patrimônio publico, às pressas como um despejo, fica evidente que todo esse movimento também integrava o projeto de desmonte da cultura no país.

Outros momentos de resistência do qual o Capanema foi palco podem ser ainda lembrados. Um deles nos remete ao último ano do governo Sarney, em 1989, quando houve uma ocupação do Capanema por estudantes, que reclamavam os cortes e falta de verbas para a universidade pública.

Nos anos de chumbo da ditadura militar no Brasil, a polícia montada espantava estudantes no centro do Rio de Janeiro, no entorno dos pilotis do Capanema.

Nos anos 1980, práticas da ultra direita inconformada com a redemocratização em curso no país também chegaram ao Capanema. No mesmo contexto do atentado a bomba que matou a Dona Lyda, na OAB, em 1980, o Capanema sofreu ameaças. Já trabalhava no IPHAN quando fomos levados a evacuar o edifício às pressas, descendo suas extensas escadas de vãos duplos, fugindo do terror da morte, por conta de um telefonema anônimo dizendo que havia uma bomba instalada no edifício.

O Capanema sempre foi palco e cenário de diversas formas de resistência à barbárie. E vale destacar: em nenhum desses episódios, qualquer obra de arte que integra o edifício foi danificada!

Foi já bastante destacado o seu valor como obra de arte – bem aos moldes da perspectiva fundadora das políticas de patrimônio no Brasil. Mas o Capanema não se esgota aí. Ele avança no tempo, como palco de resistência (que pode ser pensada de diversas formas – desde as manifestações da sociedade civil, de estudantes, artistas até a perseverança dos funcionários trabalhadores da Cultura cuja vida cotidiana de trabalho é marcada pelo conhecimento e respeito à diversidade cultural brasileira) e, portanto, lugar de patrimônio – patrimônio como resistência. Se o tombamento do Capanema, datado de 1948, fosse feito hoje muitos novos valores teríamos a agregar a ele. E mais, eu daria a sugestão de que fosse feito o seu Registro como patrimônio cultural de natureza imaterial na categoria de lugar, lugar da cultura, lugar da resistência.

Considerando a ideia estapafúrdia do governo federal de realização de um feirão de imóveis públicos vazios, desrespeitando a legislação vigente que garante que o patrimônio público – cultural ou imobiliário – está atrelado a uma função social, de interesse público, quero lembrar que o Capanema NÃO ESTÁ desocupado. Vendê-lo seria despejar todas as instituições da cultura que nele estão instaladas para prestar serviços públicos, oferecendo atividades relacionadas ao campo de estudos e produção da cultura, a exemplo das suas três bibliotecas especializadas (a Biblioteca Euclides da Cunha, a Biblioteca de Música e também a Biblioteca Noronha Santos), assim como arquivos públicos com acervos de grande valor histórico, como o Arquivo Central do IPHAN, secção Rio de Janeiro. Seria também jogar fora o investimento feito para uma restauração condizente com o planejamento do seu uso público.

Segundo matéria publicada no O Globo, a assessoria de imprensa do IPHAN, ao ser interrogada sobre a venda do Palácio Capanema, informou que não via problema na sua venda, pois o edifício continuaria tendo essas características, só que na mão da iniciativa privada. Essa fala irresponsável com o patrimônio cultural brasileiro, só evidencia o desconhecimento do papel e da história da instituição que deveria estar representando. Por isso, não posso deixar de somar ao rol de ações destruidoras promovidas pelo governo federal, o loteamento dos cargos do IPHAN por pessoas despreparadas para a missão institucional de preservação do patrimônio em todas as suas vertentes, frentes e desafios. 

A indignação foi e ainda é tão grande que, oxalá, esse tiro saiu pela culatra. Já se noticia que o governo não tem mais intenção de colocar à venda o Capanema, contudo, buscam outras estratégias para destruir o edifício que, simbolicamente, representa a luta contra a barbárie. Que ele não seja esquartejado nem, tampouco, usado como cortina de fumaça do avanço do feirão de imóveis da União, feirão de dilapidação do patrimônio público cultural e imobiliário da nação e de todos os brasileiros!

* Márcia Chuva é Professora Associada de História e Patrimônio na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Autora do livro Os Arquitetos da Memória (2009), e de artigos e capítulos refletindo sobre políticas de patrimônio, memória e museus. Ex-funcionária do IPHAN no Palácio Capanema.

Contato: marciachuva@gmail.com / https://unirio.academia.edu/MárciaChuva

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