Com que fantasia eu vou?

07/02/2016 – Domingo de Carnaval. A expectativa da abertura do desfile das escolas do grupo especial coexistia com o transcorrer de aproximadamente cem blocos que flanavam pela cidade desde 9h da matina. Lá em casa, o espírito de equipe falou mais alto. E assim integrei-me ao público do Cordão do Boitatá, com marido e filho. Nos primeiros quinze minutos de andança na Praça XV, avistei um homem fantasiado de “cego” e uma mulher vestida de empregada doméstica, “dando voz” à criatividade das desigualdades, com direito a espanador e avental. Fechando o trio, esbarrei com outro homem que ostentava as vestimentas de preto-velho. Branco como os demais, este último caprichou no black face, no black body e em tudo que tinha direito, incluindo abordagens não consentidas para ofertar consultas a mulheres que passavam. Os três personagens ganharam reforços com a inestimável criatividade da família que escolheu homenagear seu filho, um menino negro, com a fantasia de macaco (tudo bem, era o macaco Abu da Disney!). Uma situação alvo de fortes críticas como a de Mariana Emiliano. Esse hábito de se fantasiar no carnaval reproduzindo representações racistas (sempre de um “outro”) com a intenção de fazer rir “é coisa da antiga”. Já no século XIX, Martha Abreu nos conta sobre diabinhos e Pais Joãos que faziam gargalhar foliões em cordões, ranchos e bailes. Deixei o Cordão do Boitatá perguntando-me: quais as fronteiras entre opressão e brincadeira? Como defini-las?

As perguntas, embora novas, foram formuladas em diálogo com Gabriela Monteiro. Menos do que presidir julgamentos individuais ou, nas palavras da autora, tornar-me “consultora política da folia”, desejo conversar sobre os diferentes sentidos que uma fantasia pode assumir, tanto para quem usa quanto para quem a vê. Esses sentimentos relacionam-se com a história do país e de seus sujeitos. Eles dizem respeito às histórias de afirmação, preterimento ou opressão que carregamos em nossos corpos. A depender dos corpos fantasiados, tais histórias falam de nós. Por nós. Ou sobre nós.

Se o pessoal é político, é pertinente questionar o universalismo presente na ideia do “direito de escolha”. “Para não fazer feio” um caminho é se indagar sobre as motivações para escolha de um traje carnavalesco. Por que se fantasiar de trabalhadora doméstica em um país que apenas em 2013 regulamentou esta profissão? Em que medida, o “direito de escolha” de incorporar a empregada compactua com estereótipos de hipersexualização, particularmente das mulheres negras, nacionalmente mais de 50% dessa categoria? O que pensar na manutenção de blocos como o Domésticas de Luxo, exclusivo para homens brancos, que promovem um espetáculo de racismo e machismo nas ruas de Juiz de Fora?

Domésticas de luxo - Carna 2016Desfile do Bloco Domésticas de Luxo, 2016.

No caso da família Aladin: como enfrentar a realidade, mediada por confetes e serpentinas, de uma criança negra vestida de macaco devido ao “direito de escolha” de seus pais? Que relações esta fantasia “carinhosa” guarda com a cultura da “justiça com as próprias mãos”, ilustrada por recorrentes linchamentos de jovens negros em bairros de classe alta? Com medidas governamentais como a diminuição expressiva dos ônibus que ligam a zona norte à parte sul da cidade? Ou com operações policias proibindo adolescentes, em sua maioria, negros e pobres de seguirem viagem até a orla carioca? Quanto ao traje de preto-velho: como pensá-lo frente às perseguições, agressões físicas e verbais de praticantes das religiões de matrizes afro-brasileiras, incluindo crianças apedrejadas e proibidas de frequentarem escolas? Embora compartilhe da opinião da historiadora Erika Arantes sobre a diminuição do número de “negas malucas” nos blocos cariocas este ano, os exemplos acima permanecem evidenciando racismos, machismos e assédios construídos historicamente e que são naturalizados ou desqualificados como brincadeiras de carnaval.

Sabe-se, no entanto, que, desde as primeiras décadas do século XX, o Carnaval também foi marcado por contestações políticas em clima de sátira e pilhéria. A expressão elefante branco foi criada e encenada nos festejos de momo de 1910 em referência à compra pelo governo brasileiro do navio Minas Gerais, o encouraçado de uma tonelada que nunca foi à guerra pela Marinha de Guerra, como mostrou em suas pesquisas o historiador João Roberto Martins Filho. A criação de cordões carnavalescos como O Macaco é o Outro por homens e mulheres negros revelam o papel de descendentes de escravos na subversão de estigmas e estereótipos que lhes eram atribuídos, de acordo com pesquisas de Eric Brasil. Lembrando-me desses exemplos, senti que em 2016, a conversa sobre usos políticos das fantasias tornou-se mais forte. No lendário ensaio técnico do Salgueiro, Cris Alves e Vivi Araújo causaram atravessando o sambódromo fantasiadas das pombagiras Maria Navalha e Maria Padilha. A repercussão foi enorme, gerando debates sobre gênero, raça e racismo entre feministas negras como Djamila Ribeiro, Stephanie Ribeiro e eu própria. No dia seguinte ao desfile da comunidade salgueirense, a funkeira Ludmilla, musa da escola, sofreu manifestações explícitas de racismo por usar uma peruca black power, comparada à palha de aço Bombril por Val Marchiori na Rede TV. Cidinha da Silva analisou com categoria o incômodo da socialite como parte da peleja estereótipos raciais x empoderamento negro.

Ludimila - Musa do SalgueiroLudimilla, Musa do Salgueiro, no Desfile 2016 (Foto: Isac Luz/EGO).

Existem sentidos em disputa na escolha, criação e uso de uma fantasia. As representações de Fridas Kahlo, Ganeshas, Dandaras, Panteras Negras, Pombagiras como lembrou a psicóloga Amana Mattos, coordenadora do Núcleo de Pesquisa e Desconstrução de Gêneros, merecem atenção. Tais personagens, vistas em quantidades expressivas em blocos, são encarnadas por mulheres que lançam mão do “direito de escolha” para afirmar e conferir visibilidade às lutas pela igualdade de gênero e raça ao longo da história. Nesses casos, os sentidos em disputa trazem instigantes questões sobre feminismo, raça e empoderamento. O que dizer das discussões de Joice Berth acerca das relações entre o arquétipo das pombagiras e as lutas feministas? Quais os sentidos históricos de fantasias como a da Squel? A porta-bandeira da verde e rosa encantou a avenida com o belo bailado e seu inesquecível sorriso. A impecável maquiagem, inspirada nas pinturas das iaôs (filhas de santo iniciadas), divide opiniões sobre o direito de publicizar referências sagradas. Nos dizeres da socióloga Elizabeth Viana, trata-se de “outros tempos”. Tempos nos quais símbolos impensáveis de serem levados para fora do terreiro tornam-se de domínio público. “Outros tempos” que nos fazem pensar nas fronteiras entre sagrado e profano. Direito e respeito. Afirmação e apropriação cultural…

Squel Jorgea               Squel Jorgea, porta-bandeira da Mangueira, escola campeã do Carnaval 2016. (Foto: Michele Iassanori).

No mote dos sentidos em disputa, a fantasia do que não se quer ser garantiu espaço na folia para conferir visibilidade às lutas políticas protagonizadas cotidianamente. No jocoso faz de conta, algumas personagens tornaram-se marcantes:

Lolo Figueroa, de Luana Teofilo. Luana descreveu assim sua socialite-paneleira e usuária do pau de selfie: “Lolo não é racista, mas acha que lugar de moreninho não é na universidade ao seu lado, pois cada um deve ficar no seu devido lugar. As flores no cabelo mostram um certo clima hippie chic, afinal ela quer paz e amor com o apoio do aparelho policial do Estado para defender seu patrimônio e os seus”.

Lolo Figueroa - Carna 2016(Foto: Reprodução/Facebook)

Patricinha Gratidão, concebida por Caroline Cavassa, feminista interseccional Caracterizada com uma indefectível white face, que deixava os foliões em dúvida sobre sua “verdadeira raça”, a patricinha distribuiu bambolês na Praça XV para pessoas brancas, professando o bordão “Namastê, estou fantasiada de você”. No dia seguinte, desdobramentos na versão “Paquita Gratidão” eram ostentadas no Bloco Comuna que Pariu.

Patricinha Gratidão - Carol Cavassa                (Foto: Reprodução/Facebook)

Mulata do Gois #sqn/E por acaso eu sou fantasia?, da Giovana Xavier. Concebida para o Bloco Comuna que Pariu, que trouxe o enredo “Na raça, contra o racismo”, a fantasia representou uma resposta ao devaneio de Ancelmo Gois de escolher Grazi Massafera como a mulata da coluna. No país da “democracia racial”, a eleição de uma mulata branca para chamar de “sua” revela intersecções de gênero, racismo e machismo que nenhum laço cor de rosa poderia dar conta.

A Mulata do Gois - Carna 2016.jpg                  (Foto: Reprodução/Facebook)

P.S. As fantasias escolhidas são de autoria de mulheres negras que botaram o bloco na rua. Para desespero de Lolo Figueroa que não para de pensar “o Brasil está realmente mudando…”

3 Comentários

Arquivado em história pública, Pos-abolição

3 Respostas para “Com que fantasia eu vou?

  1. João Paulo

    Muito interessante a publicação!

  2. Julian Motta

    Que texto maravilhoso, a nossa sociedade em “desconstrução” ainda tende a naturalizar o preconceito, e o texto trás isso com muita força. Parabéns.

  3. Cristiane F. Ferreira

    Excelente texto. Definitivamente, estamos passando por um processo de desconstrução. Ainda falta muito por percorrer, mas este é o caminho: debate, análise e conscientização.

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