O Oscar das ausências

Agora de noite, quando este post for ao ar, mais uma cerimônia do Oscar vai estar começando. Só que este ano resolvi não ligar a tevê e me juntar ao Spike Lee no protesto contra a brancura dos indicados (mas vou ficar torcendo para “O menino e o mundo”, do diretor Alê Abreu e trilha sonora de Emicida). Como entender a política das escolhas? E das premiações?

Há dois anos, estávamos comemorando a eleição de Doze Anos de Escravidão como o melhor filme e a estatueta recebida por Lupita Nyong’o como melhor atriz coadjuvante. Ano passado, Selma foi meio que menção honrosa. E agora, nada.

Obama tem razão: as indicações ao Oscar são parte de uma questão muito mais ampla, nada fácil de responder. Se nem a Cheryl Boone Isaacs, que é presidente da Academy of Awards e se disse desapontadíssima com os indicados, consegue encontrar uma explicação convincente para a falta de diversidade da disputa, imagina eu.

O produtor e jornalista americano Aurin Squire tem um argumento forte: em artigo publicado na New Republic em fevereiro de 2015,  a temática das relações raciais só é premiada no Oscar quando a história apresenta um importante e geralmente benevolente personagem branco. Foi assim com Histórias Cruzadas (2011), por exemplo. A Cor Purpura (1985) e Um Grito de Liberdade (1987) não ganharam nada. Nem Selma (2014). Isso sem falar em Faça a Coisa Certa (Do the Right Thing, 1989) do Spike Lee, um clássico instantâneo sobre as relações raciais na Nova Iorque dos anos 80, que perdeu para a comédia romântica Conduzindo Miss Daisy, uma história de amor entre uma excêntrica senhora judia branca e seu motorista negro. A Academia levou 25 anos para fazer a coisa certa e premiar o diretor pelo conjunto de sua obra. Nem Doze Anos de Escravidão (2013) escapou: seu herói branco é o abolicionista canadense Samuel Bass, ninguém menos que Brad Pitt.

Estou com Squire e arrisco uma pequena hipótese. Entre premiar um filme sobre escravidão como Doze Anos… e escolher atrizes, atores ou diretores negros, a primeira opção é a mais fácil. Afinal, a escravidão passou, e não há quem hoje em dia a defenda. Quanto mais violenta a cena, mais ela nos causa aversão, e em matéria de retratar violência Doze Anos foi imbatível. Já encarar a presença viva do racismo hoje e a desigualdade das indicações ao Oscar — e, de resto, toda a questão mais ampla lembrada por Obama — é bem mais complicado. Nada como um filme sobre o passado para redimir o presente.

* * *

Outra ausência do Oscar deste ano é a indicação do brasileiro Que horas ela volta? para o Oscar de melhor filme estrangeiro . Na época da escolha do filme como representante do Brasil, muita gente boa, como Stephanie Ribeiro e minha amiga de conversa Giovana Xavier, reclamou da cor da personagem da Jéssica, interpretada por Camila Márdila, filha da Val (Regina Casé), da ausência de personagens negros no filme e de qualquer discussão sobre o preconceito racial na relação entre patroas e empregadas domesticas. Concordo com muitos dos pontos por elas destacados. Na época, minha leitura foi um pouco diferente. O texto abaixo, publicado na Revista Ciência Hoje 331, circulou pouco, por isso o reproduzo aqui. Ele vai um pouquinho modificado, fruto da conversa entre as historiadoras deste blog. A versão original pode ser acessada aqui.

Ela não volta mais

A certa altura do filme Que horas ela volta?, Val (Regina Casé), a empregada que mora no serviço em São Paulo, ralha com sua filha Jéssica (Camila Márdila), recém-chegada do Nordeste, ao vê-la aceitar  o sorvete que seria do filho dos patrões, e diz mais ou menos assim: “Eles só oferecem alguma coisa que é deles porque sabem que a gente não aceita”. Em outra cena, como se estivesse continuando a anterior,  é Jéssica quem ralha com a mãe, afrontando: “Quem é que te ensinou essas regras? Elas estão escritas em algum livro?”. Ao que Val responde, com raiva: “Ninguém precisa ensinar; a gente já nasce sabendo as regras”.

Há muito o que dizer do filme de Anna Muylaert, que acaba de ser designado como o candidato do Brasil ao Oscar de 2016. Das mães que saem para trabalhar e daquelas que ficam em casa, criando os filhos dos outros, deixando seus próprios para trás. Do espanto meio incrédulo da patroa ao ouvir da filha da empregada que ela faria vestibular para a Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo (“Tá vendo, o país tá mudando mesmo”) ao desconforto igualmente incrédulo de Jéssica ao receber uma estapafúrdia proposta de casamento do patrão de sua mãe.

Tem razão a diretora quando argumenta tratar-se de um filme sobre afetos. É mesmo. A casa é o espaço do conforto e do afeto, e não seria diferente na casa de classe média alta do Morumbi, onde se passa a história. Só não creio que seja um afeto “de  aluguel”, como ela o denomina. O afeto de Val por Fabinho, de quem continua sendo babá, é real. O afeto dos patrões por Val também o é, e vice-versa. É esse afeto que, mesmo permeado pela hierarquia e pela desigualdade, permite a convivência entre eles por tantos anos. E é esse mesmo afeto que, no filme, é reinventado por mãe e filha. Pena que Fabinho e sua mãe escolham o caminho contrário. Se, ao fim da história, Val e Jéssica se reencontram em uma nova casa, Fabinho, ao ser reprovado no vestibular, ganha dos pais uma temporada na Austrália, bem longe. “Que lonjura”; Val é a única que reclama.

Mas é de afeto e muito mais que trata o filme. Na impossibilidade de explorar tudo, fico com as regras silenciosas, que compartilhamos todos os dias na intimidade de nossos lares. Se houvesse apenas um resquício da escravidão no Brasil de hoje – infelizmente, há muitos – ele estaria ali, na cozinha, no banheiro, no quartinho de empregada. O espaço doméstico recria a tragédia de 500 anos de história brasileira: a violência, o paternalismo, a hierarquia, o racismo, a dependência. A subserviência e a arrogância disfarçada de generosidade.

Com tudo isso, é um alento assistir à atitude descarada de Jéssica abertamente desrespeitando as regras que ela finge desconhecer. Mas bom mesmo é acompanhar a lenta transformação de Val, tão bem representada pelas bandejas com as quais lida. No aniversário da patroa, Val lhe dá de presente uma bandeja com xícaras e pires brancos e pretos, para serem usados misturados  – modernos.  A patroa rejeita tanta modernidade e prefere ficar com a bandeja quatrocentona de sua avó. Pouco tempo depois, limpando com força, Val sem querer quebra a bandeja da família. Lá se foi a tradição, e não teve cola que desse jeito de consertar. Sobrou a bandeja moderna, barata, onde preto e branco se misturam, que Val, com toda a propriedade, tomou para si.

Entre a tradição e a modernidade, nem é de se espantar que o filme tenha o final que tem. Ao deixar para trás a bandeja de prata que usava para servir café nas festas dos bacanas e ficar com a de plástico para ela, é Val quem opera a mudança fundamental do filme. Se era ela quem mandava dinheiro todo mês para permitir que Jéssica estudasse, é ela quem possibilita a libertação real da filha, e a impede de repetir a sua própria história. Ao deixar o emprego, Val libera Jéssica para criar o próprio filho. E também para estudar. E até para fazer as duas coisas ao mesmo tempo.

No filme, Jéssica será a única mulher que terá esta chance. Mas, para isso, Val, a empregada à moda antiga, não volta mais. Disso, todas as empregadas domésticas já sabem, mesmo as que ainda trabalham à moda antiga. O serviço doméstico não está em extinção, mas a empregada que mora na casa dos patrões está. Resta saber se as classes média e alta já entenderam isso.

Que horas ela volta? é um filme otimista sobre as transformações recentes da sociedade brasileira. Mas estará o país mudando mesmo? Para as jéssicas que hoje nem precisam sair de suas cidades para ingressar nas universidades, certamente. Para suas mães, que viajam de avião e têm celular, também. Mas as revoluções no espaço doméstico, quando ocorrem, são lentas. Basta lembrar que o mesmo público que aplaude a Regina Casé vocifera contra a PEC das domésticas, proposta de emenda constitucional que confere novos direitos às empregadas domésticas no Brasil. São os mesmos que designam banheiros diferenciados para babás em clubes de luxo da Zona Sul do Rio de Janeiro e que não abrem mão de uma boa folguista nos finais de semana. E que, certamente, consideram suas empregadas domésticas quase como se fossem da família. Afinal, são elas que cuidam dos seus filhos [clique aqui para ler um ótimo texto sobre o trabalho domestico e a racialização do cuidado].

Pena que uma coisa que emenda constitucional nenhuma pode fazer sozinha é mudar uma sociedade onde a hierarquia é tamanha que impede patrões e empregados domésticos de sentarem-se juntos à mesa para partilhar um mísero sorvete. O filme Doméstica, de Gabriel Mascaro, registra bem os limites dos afetos dessa relação. De novo, o problema é menos o trabalho doméstico em si – que existe em tantos países do mundo –, e mais o fosso social que ele representa. Para transpô-lo, filmes emotivos como o Que horas ela volta? ajudam, e muito.

Para a classe média ainda quase toda branca que reclama de suas empregadas e vai ao cinema, é uma oportunidade rara de exercitar a identificação com aquelas de quem acham que são diferentes. Menos cordialidade e mais empatia, talvez seja disso que precisemos para deixar a sociedade das patroas e de suas empregadas para trás.

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1 comentário

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Uma resposta para “O Oscar das ausências

  1. Sonia Guimarães

    E os homens negros estavam tooooodos de smokings brancos….

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