A imagem da derrubada da estátua do traficante de escravos Edward Colston, no domingo, 7 de junho, em Bristol, na Inglaterra, no próprio dia circulou por todo o mundo. A repercussão do fato rendeu dois artigos na imprensa brasileira que eu tomo como ponto de partida para este texto.
O primeiro, publicado em 12 junho no site da BBC News Brasil, continuou a circular no twiter da empresa jornalística com a hashtag #MaisLidas, com uma foto da estátua do contrabandista de escravos africanos Joaquim Pereira Marinho protegendo duas crianças brancas em frente ao hospital Santa Izabel, no Largo de Nazaré, em Salvador, com a manchete: “Quem foi Joaquim Pereira Marinho, o traficante de escravos que virou estátua na capital mais negra do Brasil”.
Antes de ver a chamada do artigo no twitter, na quarta feira, dia 18 de junho, eu havia participado da banca de defesa da tese de doutorado em história de Silvana Andrade dos Santos, na UFF. A pesquisa segue a trajetória de consagração de dois outros renomados comendadores contrabandistas de escravizados da sociedade baiana e de um negociante estadunidense que se tornou cônsul daquele país em Salvador, após deixar de negociar com o frete de navios fabricados na Filadélfia para o tráfico ilegal. Ainda em plena vigência do contrabando, os três se tornaram acionistas fundadores daquela que se tornaria a maior fábrica de tecidos do Império brasileiro, na Imperial cidade de Valença, no Sul da Bahia, voltada para a produção de algodão para sacaria de fazendas escravistas e roupas de cativos. A memória pública da fábrica, desde finais do século XIX, faz questão de enfatizar que a empresa nunca teria utilizado trabalho de escravizados, o que absolutamente não é verdade. Alguns dos acionistas foram, inclusive, proprietários de fazendas voltadas para os desembarques clandestinos de cativos na região em que a fábrica foi instalada, o que pode ter influenciado a decisão de instalação do empreendimento. O trabalho estará em breve disponível online no repositório de teses do PPGH/UFF.
Hipóteses relacionando os capitais liberados pelo fim do tráfico com o desenvolvimento da indústria no Brasil oitocentista são antigas, mas o detalhamento do entrelaçamento das atividades ilícitas dos acionistas com estratégias de consagração social e diversificação de “investimentos” me impressionaram. Ainda impactada pela leitura da tese, compartilhei o twitt da BBC-Brasil com o comentário:
“Manchete e foto são um soco no estômago. Para refletir sobre o força do passado na sociedade brasileira”.
O segundo texto, dos historiadores Paulo Pachá e Thiago Krause, na Revista Época, do dia 19 de junho, contesta diversas manifestações na imprensa que criticaram o movimento pela retirada de estátuas que homenageiam antigos ditadores, traficantes escravistas ou colonialistas genocidas, entendido (o ativismo anti-estátuas) como ameaça ao patrimônio histórico, fundada no anacronismo. O texto é excelente e vale a leitura. Desenvolve um argumento fundamental e frequentemente ignorado: estátuas falam mais do tempo em que foram construídas do que dos personagens que celebram. O artigo destaca, ainda, a existência de moralidades em disputa na própria época em que as figuras controversas foram homenageadas.
Por que a estátua de Joaquim Pereira Marinho protegendo duas crianças brancas na capital mais negra do Brasil é um soco no estômago?
Porque foi construída no século XIX, pela instituição de caridade em que o personagem atuava, exatamente para ajudar a esquecer ou apagar o fato, amplamente conhecido, de que o homenageado havia enriquecido contrabandeando crianças negras escravizadas. Cada navio do tráfico ilegal transportou para o Brasil algumas centenas de jovens escravizados africanos, em sua maioria com menos de 12 anos de idade, desembarcados em praias de propriedade de fazendeiros traficantes, como os acionistas da fábrica de Valença, com alarmantes índices de mortalidade. A associação entre contrabando de escravizados e filantropia no século XIX está diretamente ligada à tentativa de apagamento de um passado pessoal desonroso, nos termos da época, como bem destaca Ana Lucia Araújo na reportagem da BBC.
Joaquim Pereira Marinho não esteve sozinho. O apagamento da memória da intensa participação ou cumplicidade dos construtores da estabilidade do estado imperial com o contrabando de cativos africanos ocupa lugar privilegiado na fabricação do racismo institucional brasileiro. Nas palavras de Joaquim Nabuco, ao escrever a biografia do pai, Nabuco de Araújo, “pode-se dizer mesmo que pareceu sempre mais fácil [para gerações sucessivas de estadistas] abolir a escravidão de um golpe do que fazer cumprir retrospectivamente a lei de 7 de novembro” (de 1831 que tornou ilegal o tráfico de escravizados no Brasil), o que fazia até mesmo liberais anti-tráfico, como Nabuco de Araújo, cúmplices do contrabando que, em alguma medida, combateram.
Somos herdeiros de um estado contrabandista de crianças africanas que ergueu muitas estátuas para apagar este fato. Nascidas desse solo institucional, é absolutamente revoltante, mas não de todo surpreendente, que nossas instituições continuem ignorando o assassinato contumaz de crianças negras por suas forças policiais, com ampla cumplicidade dos “cidadãos de bem” da vez.
Excelente texto!
Ao ler os textos referenciados, me lembrei do mesmo posicionamento analisado pelo blog do Café História, que ressalta a importância desses eventos históricos na construção de memórias. O enraizamento desse passado imperial contrabandista, está intensivamente arraigado na égide do Estado republicano que, durante seu regime constituicional (além dos golpes de estados sucessivos), perpreta o assassinato “em massa” da população negra. Essas memórias (em momentos) nos faz refletir ainda como as permanências do nosso passado são vívidas e ainda são aceitas por parte da sociedade que se julgam “cidadãos de bem”.
Texto impecável!
É impressionante como os defensores de monumentos erguidos em homenagem a traficantes e genocidas utilizam do argumento de anacronismo como se estes monumentos não fossem por si só ressignificações e tentativas de reescrever o passado.
Acho inclusive que não conseguiremos avançar nas discussões sobre o racismo e as desigualdades decorrentes dele enquanto houver homenagens á quem participou ativamente na construção desta estrutura.
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Uma pergunta: porque houve tráfico de escravos e, portanto, traficantes e senhores de escravos no passado? A resposta é simples: porque havia demanda por produtos e permissão para o uso desta modalidade de comércio e mão de obra. No mundo atual, embora não exista escravidão há modalidades de trabalho compulsório (ou quase), sobretudo no Oriente. Através destas forma de exploração são produzidos smartphones, tênis, eletrodomésticos, artigos de vestuários etc. A pergunta é: estariam os quebradores de estátuas dispostos a deixar de comprar produtos feitos com esta mão de obra e adquirir produtos mais caros uma vez que seus fabricantes respeitam direitos trabalhistas? É curioso que as pessoas estejam dispostas a destruir estátuas e apagar memórias do passado mas não estejam dispostas a lutar contra a exploração no mundo atual. Olhando por este lado, os manifestantes de hoje não são muito diferentes dos traficantes e senhores de escravos do passado!
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