Eu quero passar com a minha dor

Recentemente, tivemos a boa notícia de que a candidatura do Cais do Valongo a Patrimônio da Humanidade foi aceita pela UNESCO. Para receber o título e ser incluída na lista, ainda falta a avaliação do sítio arqueológico pelos técnicos especializados e o parecer final do Comitê; mas, um passo importante foi dado nessa direção. Caso se tenha um resultado positivo, esse será o primeiro local a ser reconhecido como patrimônio da humanidade no Brasil tendo como núcleo central da sua justificativa a história da escravização de africanos e da população negra. Outros sítios que fazem parte da lista de patrimônio mundial no nosso país guardam profundas relações com essa história, como por exemplo o conjunto arquitetônico do Pelourinho em Salvador e a cidade histórica de Ouro Preto, mas ela não aparece com destaque nas suas apresentações. O Cais do Valongo tem a candidatura defendida a partir de seu reconhecimento como lugar de memória do tráfico atlântico de africanos escravizados e da resistência cultural e política da população negra a uma longa história de violência e exclusão. Situado no Rio de Janeiro, o cais é o testemunho material do local de desembarque do maior número de africanos escravizados que chegaram vivos às Américas. Em nenhuma outra parte do mundo chegaram tantos cativos trazidos da África.

Não são apenas as pedras pisadas no local de desembarque de tanta gente trazida à força do lado de lá do oceano, durante o mais longo processo de migração forçada da história da humanidade. É o Cais do Valongo e seu entorno. Estamos falando também do cemitério dos pretos novos, do quilombo da Pedra do Sal, das esquinas e ruas por onde circularam João Alabá e Prata Preta, da fundação do Ile Ase Opo Afonja no Rio de Janeiro, do sindicato dos trabalhadores portuários, e de tantos outros personagens, movimentos e fatos históricos que fazem da região parte fundamental da Pequena África na cidade – como nomeou Heitor dos Prazeres. E aos vestígios e construções se agrega a tradição viva – tal como a chamava o grande historiador africano Amadou Hampaté-Bâ – que dá sentido e mantém acesa a chama que arde nas rodas de samba e de capoeira, nos tambores e afoxés.

No entanto, aqui nesse texto eu venho trazer a dor e a violência como parte dessa história. E não se trata simplesmente de uma dor diluída numa história de um passado remoto, num tempo em que submeter o outro a uma situação de desumanização era natural. Quero recordar a dor que existia apesar do fato das pessoas de outra época acreditarem ter o direito de escravizar alguém. E lembrar, da parte dos que sofreram, o medo, a incompreensão e o espanto frente a uma realidade que mais parecia um pesadelo. Esse conjunto de sensações aos quais me reporto também definem, junto com a força da criação de tantas coisas belas, a atmosfera do Valongo. Tudo isso faz desse lugar onde tanto se celebra – com toda a razão – a presença africana e negra na cidade do Rio de Janeiro e no país, um sítio de memória sensível. Um lugar em que durantes anos desaguava um mar de gente depois de uma travessia em que não morrer poderia ser esperar sobreviver dolorosamente.

Mas, por que lembrar de tantas coisas ruins frente a uma notícia que é tão boa; afinal, podemos celebrar as heranças africanas com (re)conhecimento do mundo de que somos o país mais negro fora da África, e que mais do que isso, fazermos dessa história monumento e marco de nossa identidade?

Quero escrever sobre a dor e a violência por que é importante lembrar que o tráfico atlântico de africanos escravizados é um crime contra humanidade e o Brasil ainda não o reconheceu oficialmente como tal. Num crime, há vítimas. Nem de longe estou me referindo a sujeitos-objetos, transformados em mercadorias e submetidos sem reação. Não é essa qualidade de vítima. Estou dizendo dos que sofreram, e nos legaram essa memória. O ser vítima não significa perder a capacidade de agir, e mesmo de transformar.  Devo lembrar que assim como toda a beleza e poder da criação, a dor é parte da herança deixada por nossos antepassados africanos. Essa dor que atravessa a memória sensível dos descendentes faz do trauma da escravidão um processo cultural de base na formação de identidades no pós-abolição. Sem nenhum exagero, e com todo o drama, não há como encarar o Cais do Valongo e permitir que essa dimensão da história se dissolva no tempo. Até porque, como a tradição oral africana, ela está viva, e esbarramos com ela nas nossas ruas e quebradas hoje. O trauma coletivo não foi superado, ainda que em alguns casos se consiga aprender de alguma forma a lidar com ele.

Hoje o Cais do Valongo e a região que o cerca se tornaram roteiros frequentes de aulas de campo de muitos professores da Educação Básica, sobretudo os de História. Cursos de formação de professores que incluem a educação patrimonial entre seus temas fazem da visita à região portuária do Rio de Janeiro uma etapa necessária. Oficinas e roteiros guiados conduzem educadores, profissionais do turismo e interessados de diferentes origens a conhecer os logradouros de referência na área. Além de estudantes e educadores, turistas e moradores da cidade descobrem a região motivados por uma valorização da mesma pelas obras de reforma urbana e a presença de museus.

Acompanho algumas experiências no campo do ensino de História que transitam nos caminhos do Valongo, e me interessa entender como lidam com a história da dor e da violência. Como se pode fazer estratégias de aprendizagem a partir do contato com esses aspectos da experiência dos nossos antepassados contribuindo para desnaturalizar a violência da escravidão, pensada sob o ponto de vista de quem a sofria? Fico procurando perceber como os professores encontram meios de articular o conhecimento sobre as diferentes maneiras de se celebrar a vida, de se tecer solidariedades, de afirmar-se em suas práticas religiosas e artísticas, à enorme carga de sofrimento físico e psíquico daquelas pessoa e as suas marcas na história de seus descendentes.

Aprendo com os professores e estudantes e percebo que as dimensões não se opõem, se completam, e se tornam mais compreensíveis quando vistas em conjunto. O samba na Pedra do Sal se mostra por inteiro quando se situa historicamente a perseguição aos terreiros, a luta dos trabalhadores portuários e a dureza da repressão. A emoção sentida ao visitar o lugar onde os corpos dos africanos recém-chegados eram deixados à flor da terra , humaniza o conhecimento que se adquire. E permite ver com outros olhos a luta quilombola hoje.

Tudo isso, se não explica o que acontece em nossos dias, sem dúvida ajuda a exercitar a sensibilidade. E é fundamental não a perder de vista. Estamos num tempo em que as estatísticas de mortalidade de jovens negros e de violência contra mulheres, e em especial mulheres negras, soam como lugar-comum. O racismo segue vivo e presente, rasgando a pele da nossa realidade. Aproximar-nos dessas histórias como numa visita a um lugar de memória talvez nos lembre de nossa dimensão humana. Como na maioria dos processos traumáticos, o silêncio é cúmplice, e rompê-lo é um caminho para não deixar que o medo nos paralise.

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A Pequena África, coração da cidade negra do Rio de Janeiro no século XIX e início do século XX, onde se insere o Cais do Valongo, tornou-se cenário para um roteiro em forma de aplicativo que será lançado no próximo dia 2 de abril, dentro do projeto Passados Presentes 

Mais sobre o Cais do Valongo nesse blog:

https://conversadehistoriadoras.com/complexo-do-valongo/

https://conversadehistoriadoras.com/2014/05/25/memoria-e-cidadania-no-complexo-do-valongo/

https://conversadehistoriadoras.com/placa-quilombo-pedra-do-sal/

1 comentário

Arquivado em cultura negra, história e memória

Uma resposta para “Eu quero passar com a minha dor

  1. A “sensibilidade” é uma das dimensões que nos faz caminhar e lutar por caminhos menos tortuosos, tal como de distingui-los, diante das crueldades do homem na história. Conhecer e Preservar a Memória dos Pretos Novos é salvaguardar a tradição oral africana, uma vez que ela está viva, e como foi bem pontuado no artigo, “esbarramos com ela nas nossas ruas e quebradas hoje”. Professora Monica Lima, maravilhoso pensamento.

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