CARTA ABERTA AO JORNAL ESTADÃO por Suzette Bloch e Fernando Nicolazzi

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Divulgada segunda feira na página pessoal do historiador Fernando Nicolazzi no facebook, publicamos hoje, para registro e maior circulação, a CARTA ABERTA AO JORNAL ESTADÃO, EM RESPOSTA AO EDITORIAL DE 14 DE JUNHO DE 2016*, escrita pela neta de Marc Bloch.

Meu nome é Suzette Bloch. Sou jornalista e, além disso, neta e detentora dos direitos autorais do historiador e resistente Marc Bloch.

Eu li seu editorial do dia 14 de junho sobre o manifesto dos Historiadores pela democracia. Ele me deixou estupefata e indignada. Seu jornal utiliza o nome de meu avô para justificar um engajamento ideológico totalmente oposto ao que ele foi, um erudito que revolucionou a ciência histórica e um cidadão a tal ponto engajado na defesa das liberdades e da democracia que perdeu a vida, fuzilado pelos nazistas em 16 de junho de 1944.

O jornal recorre ao nome de Marc Bloch para responder aos historiadores brasileiros que se posicionaram contra o afastamento da presidenta Dilma Rousseff. “Pensamento único, historiadores muito bem posicionados na academia, a serviço de partidos, bajuladores do poder etc.”; seu editorial não argumenta, apenas denigre. Eis porque tiveram necessidade de se valer de uma obra de alcance universal e da vida irretocável do meu avô para tonar virtuoso seu apoio ao golpe de Estado.

Condeno toda instrumentalização política de Marc Bloch. Para além do homem público, ele é o avô que eu não conheci, mas que nos deixou como herança a memória de uma família para a qual a liberdade representa a essência de toda humanidade. Em todo lugar, a cada instante, no Brasil inclusive. Vocês omitiram aos seus leitores o fato de que o filho mais velho de Marc Bloch, meu tio Étienne, que libertou Paris junto com a 2ª. Divisão Blindada do General Leclerc, foi o presidente do comitê de solidariedade França-Brasil nos anos 1970. Este comitê auxiliou as vítimas do regime civil-militar iniciado com o golpe de 1964 e manteve-se na luta pelo retorno da democracia brasileira. Poderiam ainda ter explicado aos seus leitores que a neta de Marc Bloch se casou com um brasileiro, Hamilton Lopes dos Santos, refugiado político do Brasil e depois do Chile, tendo chegado na França em 1973 em razão do golpe de Pinochet. Poderiam, enfim, ter anunciado que dois dos bisnetos de Marc Bloch, Iara e Marc-Louis, são franco-brasileiros.

Conseguem imaginar a reação de meu avô diante do espetáculo dos deputados que votaram pelo afastamento de Dilma Rousseff em nome de suas esposas, de seus filhos, de Deus ou de um torturador? Imaginem ainda sua reação diante de um presidente interino que formou um governo exclusivamente de homens e cuja primeira medida foi suprimir o Ministério da Cultura e o Ministério das Mulheres, Igualdade Racial, Juventude e Direitos Humanos, suspendendo e reduzindo diversos programas sociais, como o Minha casa, minha vida. Ministros empossados são investigados por corrupção e alguns foram exonerados após a divulgação de conversas nas quais admitiam que o afastamento de Dilma não tinha senão um objetivo: parar as investigações contra a corrupção. Imaginem a reação de meu avô!

O presidente francês, François Hollande, foi eleito com 51,9% dos votos em 2012 e sua popularidade não passava de 16% em maio. No entanto, seus adversários políticos sequer sonharam em contestar sua legitimidade conquistada nas urnas, apenas estão se preparando para as próximas eleições, como em toda democracia digna deste nome. Não pode haver democracia sem o respeito às eleições. Contudo, um grande jornal como este aplaude o confisco do voto popular.

Mas deixo a palavra ao historiador Fernando Nicolazzi, integrante do grupo de Historiadores pela democracia, para quem solicitei escrever este direito de resposta com outras vozes.

O convite feito por Suzette Bloch para juntar minhas palavras às suas, no ato solidário e indispensável de combater a impostura de um jornal comprometido, em cada linha de seus editoriais, com a defesa de um golpe de Estado em curso, não poderia ser recusado. Este mesmo jornal, que há alguns meses disse um “basta!” à democracia, ecoando o gesto autoritário cometido pelo Correio da Manhã em 1964, agora direciona seus impropérios ao grupo de historiadores e historiadoras que atuam em defesa dos princípios democráticos de nossa sociedade. Faço parte deste grupo e estive na audiência realizada com a presidenta eleita Dilma Rousseff no último dia 7 de junho.

O editorial de 14 de junho, que pretende definir o “lugar de Dilma na história”, faz menção a palavras escritas por Marc Bloch, desvinculando-as irresponsavelmente daquele que as escreveu. Nesse sentido, instrumentaliza politicamente o nome do historiador francês, autor de uma apologia da história elaborada no momento mesmo em que atuava na resistência contra o fascismo e em defesa das liberdades democráticas. Suzette Bloch, em justificável indignação, já apontou acima o desrespeito ético e a desonestidade intelectual que caracterizam este texto. Quanto a isso não cabem aqui outras palavras.

Porém, é preciso fazer frente também à outra dimensão contida naquele editorial: sua falaciosa representação dos historiadores e historiadoras que assinaram o manifesto, definidos ali como intelectuais “a serviço de partidos políticos”, comprometidos com a elaboração de um “pensamento único”, “bajuladores do poder”. O editorial traz ainda as marcas da sua baixeza moral ao sugerir, sem qualquer respaldo aceitável, que muitos dos participantes do encontro com a presidenta a “detestam”. Nada mais desonesto, nada mais mentiroso! Mas também nada mais compreensível!

Afinal, não é difícil compreender que, para setores da sociedade comprometidos com a manutenção da exclusão em suas diferentes formas, a defesa da democracia e da inclusão social cause incômodo e provoque atitudes como esta que, faltando com a verdade, apenas encontra amparo na ofensa e na intolerância. Além disso, é fácil compreender que essa seja a única forma de linguagem política assumida pelo jornal, que já definiu os opositores ao golpe de “matilha de petistas e agregados”: a propagação do seu ódio na busca de cumplicidade, como se ele fosse compartilhado por todas as pessoas. Basta acompanhar as inúmeras e diversas intervenções dos Historiadores pela democracia para constatar quão caluniador e distante dos fatos é o editorial.

O golpe parlamentar, jurídico e midiático em curso ataca direitos sociais, políticos e civis que são fundamentais para a existência da democracia. Tais direito foram conquistas feitas pela sociedade e não simples concessões governamentais. Lutar contra este golpe não significa defender um governo ou um partido político, mas sim defender a vigência de princípios básicos de cidadania, considerando que a justiça social deve ser um valor preponderante em nossa sociedade. Foram estas razões que me fazem participar do grupo, além da convicção íntima, enquanto historiador e enquanto cidadão, de que posicionar-se pela democracia se coloca hoje como um imperativo incontornável na nossa vida pública.

Em um texto que pretende dizer o que deve ser o exercício da historiografia, lemos apenas o uso inconsequente da história e a utilização deturpada da obra de um historiador que soube como poucos escrever sobre o próprio métier. Apesar da indignação causada, o editorial cumpriu seu papel esperado, sem nenhuma surpresa. E ao menos algo positivo ficará dessa situação: não será preciso aguardar historiadores futuros para colocar o Estadão em seu devido lugar na história, ou seja, ao lado dos golpistas do passado, os mesmos que em 2 de abril de 1964 comemoraram a vitória do “movimento democrático” que hoje conhecemos como ditadura civil-militar e que, além de vitimar milhares de pessoas, ampliou a desigualdade social no Brasil. Seus editorialistas continuam realizando com esmero essa função no presente.

*O texto foi enviado para o portal Estadão, como resposta ao editorial publicado em 14/06/2016. Não houve resposta por parte dos editores.

 

5 Comentários

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5 Respostas para “CARTA ABERTA AO JORNAL ESTADÃO por Suzette Bloch e Fernando Nicolazzi

  1. Quem revelou as razões do jornal OESP foi o governador da Guanabara, Carlos Lacerda. Quem desejar compreender por onde o calo deles aperta basta ler o seu último livro, Depoimento”, “aliás, uma entrevista coletiva feita em vários finais de semana. Você vai compreender muito sobre o Brasil, sua sociedade e sua política.

  2. José Newton Coelho Meneses (Professor do Dep. de História da UFMG)

    Caros colegas,
    o Jornal Estadão, assim como outros, não têm como responder à carta de Suzette Bloch e Fernando Nicolazzi. A baixeza e o fundamento na mentira e na acusação covarde (porque feita de uma estrutura em que nenhuma resposta atinge a mesma divulgação) são as características do envolvimento da mídia com o golpe em curso. Eles não possuem fundamento factual e ético para compreender a carta e respondê-la. Eles são anti-democratas e não estão preocupados com o país e seu povo. Limitam-se a defender interesses minoritários e escusos, amparados por staf de comunicadores de massa. Temos que continuar a luta no cotidiano (inclusive da sala de aula; neste semestre discuti com meus alunos, por várias vezes a questão e fui com boa parte deles à manifestações contra o GOLPE). Temos de denunciar e estimular os movimentos populares. Não há outra saída. A consumação do golpe, representará dois anos de desmonte do Estado sem compromisso com o eleitor e despreocupação com o julgamento dos atos desse ilegítimo governo de corruptos. Temer e seu desgoverno não se preocupam com a eleição de 2018 e, então, farão de tudo para desmontar o estado e afundar o país em nome de interesses particulares e corruptos. Voltaremos à “privataria” irresponsável e a venda/entrega de nossas riquezas em favor do bolso dos corruptos. É o capitalismo selvagem voltando a se apossar da coisa pública até quando tiverem lucro. Se não obtiverem lucro, anbandonam os serviços à população. FORA TEMER. ABAIXO ESSA INTERINIDADE CORRUPTA E IRRESPONSÁVEL. DENUNCIEMOS ESSES JORNALÕES ANTI-DEMOCRÁTICOS.
    José Newton Meneses (UFMG)

  3. O jornalismo brasileiro perdeu seu caráter analítico, provocativo, argumentativo, etc., salvo alguns colunistas. Além do monopólio, há uma espécie de coronelismo nos meios de comunicação. Intelectuais de esquerda perderam espaço. E outros que não o são, mas ao se utilizarem de uma linguagem que colide com a semântica quase dogmática do neoliberalismo, foram descartados.

  4. Paulo Nascimento

    Oportuníssima a resposta de Suzette Bloch ao ESTADÃO. Não há como negar alguns aumentativos ao grande e centenário jornal. Talvez o mais adequado fosse “safadão”, felizmente auto-assumido menos frequentemente e sempre que lhe convém..
    Tem uma coisa que sempre me intrigou no jornal que leio há muitos anos e vez por outra permite-se escorregadas éticas, como foi o apoio entusiástico ao golpe de 64 e agora ao golpe de Temer e sua turma de velhacos.
    Mas uma dúvida é dígna da atenção da Conversa de Historiadoras. Trata-se da data fatídica é 4 de janeiro de 1998, o primeiro domingo daquele ano. Nesta data o jornal publica uma magnífica reportagem investigativa sobre o ministro demissionário do esporte do governo FHC.
    Documentadíssima e com chancela de autenticidade das provas apresentadas por Empresas de Auditoria internacional, as denuncias de corrupção, evasão de divisas, sonegação fiscal, e todas aquelas conhecidas mazelas do ministro do esporte demissionário só foi publicada, segundo o jornal, após três meses de insistentes negativas do então ministro se recusar a responde-las previamente.
    Pois bem, está lá no acervo do Estadão: “O Jornal não circulou nesta data.” A data é 4 de janeiro de 1998, Nunca mais o jornalão voltou ao assunto.
    Conversa de Historiadoras tem na mesa um desafio: fazer o jornalão flagrado em mentira flagrante devolver à circulação sua edição bomba de 4 de janeiro de 1998 quando poderia ter aberto um filão explosivo de corrupção do governo tucano e por questões espúrias tratou de esquecer e apagar de sua própria história.

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