A República dos Cupins

Em seu primeiro pronunciamento como presidente não mais interino, Michel Temer declarou que não toleraria ser chamado de golpista. Sem legitimidade no cargo, tenta o impossível, controlar o uso da palavra por seus adversários.

No livro “Historiadores Pela Democracia”, que teve lançamento em Brasília e São Paulo durante o julgamento no Senado, o texto de Laurent Vidal recupera a acepção clássica da expressão “golpe de estado”, conforme seu uso na política europeia desde finais do século 16. No capítulo, o autor cita definição do século 17: “ações ousadas e excepcionais que os príncipes são obrigados a implementar diante de situações difíceis e desesperadas, contra o direito natural”.

Com as gravações de Sérgio Machado e as medidas já tomadas pelo governo interino, tornou-se muito claro que a destituição da presidenta visou dois objetivos principais: evitar a “sangria” da classe política, ameaçada com investigações sobre a corrupção endêmica que a caracteriza, e implementar o projeto político derrotado nas urnas. Para atingi-los, foram tomadas medidas ousadas e excepcionais contra o direito natural. Como assumiram muitos senadores que votaram pela destituição do cargo da presidenta, mas contra a sua condenação com a perda dos direitos políticos.

Em sua defesa no Senado, Dilma usou acepção análoga, citou mesmo o 18 Brumário de Luís Bonaparte como exemplo, e repetiu uma metáfora que tem feito com frequência. Se pensamos a democracia como uma árvore, o golpe militar é um machado, que mata a árvore pela raiz. O golpe parlamentar (ou institucional, como eu prefiro) seria como um fungo, que mata a árvore aos poucos se não se renovar a oxigenação.

Os primeiros dias do novo “governo” marcaram também o início da resistência democrática. Manifestações de protestos vêm acontecendo  em todo o país, inclusive cidades e regiões que foram baluartes da oposição ao governo deposto, desproporcionalmente reprimidas. Deborah Fabri, uma menina de 19 anos, perdeu a visão do olho esquerdo atingido por estilhaços de bomba ou bala de borracha, o advogado Mauro Rogério Silva dos Santos foi espancado e algemado na rua, em um caso que associa violência política e racismo institucional. Os fascistas saem ainda mais do armário. Um professor da UNESP conseguiu o prodígio de comemorar a mutilação da jovem Debora.

As “pedaladas” que determinaram a cassação de mais de 54 milhões de votos foram flexibilizadas menos de dois dias depois do julgamento no Senado e uma medida provisória se apressa a retirar o caráter publico e a independência da EBC (Empresa Brasileira de Comunicação). A Comissão da Anistia sofreu intervenção, com desfaçatez cada vez mais inacreditável foram nomeados conselheiros até mesmo acusados de terem colaborado com a ditadura militar. A democracia e a Constituição de 1988 estão sob ataque. Somente eleições diretas  podem resgatar a legitimidade perdida pelo “governo” federal.

Foi uma semana dura. Com a aprovação do impeachment da presidenta Dilma Rousseff em 31 de agosto, podemos estar testemunhando o fim da Nova República e o início de uma nova era política no país. Por uma ironia do destino, Aquarius, o genial filme de Kleber Mendonça Filho, teve estreia nacional no dia seguinte e me inspirou a sugerir a alcunha para o novo período que dá titulo a este artigo.

Uma ode à resistência, Aquarius é simplesmente imperdível e tem muitas camadas de interpretações e leituras. Entre elas, uma metáfora magistral da crise política do país.

Protesto no Festival de Cannes por diretor e elenco do filme Aquarius.

a repubilca dos cupins

lançamento do livro: Historiadores Pela Democracia. O Golpe de 2016 e a força do passado, em 27/8/2016 na UNB, Brasília e em 31/8/2016, na UNIFESP, São Paulo.

5 Comentários

Arquivado em história pública, historiografia

5 Respostas para “A República dos Cupins

  1. Luis Pontes

    Ainda vou assistir a Globo pedir desculpas novamente por apoiar outro golpe de estado.

  2. Carlos Bazuca

    É muito importante, em temps onde adolescentes clamam por intervenção militar, a denuncia limpa e esclarecida do Golpe orquestrado pelos derrotados no voto popular.
    Aliás, gostaria de “reblogar” essa postagem no meu blog, com sua autorização. Meu e-mail é ideal.e.o.possivel@gmail.com

  3. Pingback: conversa de historiadoras

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