Dá gosto ver a diversidade étnica e racial de quase todos os times nesta copa do mundo. Diversas reportagens têm comentado que essa diversidade espelha, em grande parte, migrações recentes e uma nova realidade global, cada vez mais transnacional. Talvez um poderoso antítodo contra os surtos xenófobos em reação ao processo, que têm ganhado visibilidade recentemente, principalmente na Europa, ainda que não apenas ali. Um site internacional chegou a fazer uma simulação de como seriam as seleções sem a participação dos imigrantes.
Segundo uma reportagem sobre o tema, 83 atletas que percorreram os estádios da Copa em sua primeira fase “não nasceram no país pelo qual vestem a camisa”, número que chega a 200 “se forem somados todos os que são filhos de imigrantes.”
A simulação realizada apresenta, porém, uma falha gritante, e bastante esclarecedora sobre a força que o racismo ainda guarda no mundo contemporâneo. Simplesmente nem todos os que são considerados imigrantes pelo levantamento se enquadram na categoria. O caso mais notório é o de Raphael Varane e Loic Remy, citados como filhos de imigrantes da seleção francesa, cujos pais “nasceram na Martinica”. Ora, a Martinica é um departamento da República Francesa e todos os nascidos nessa ilha do Caribe são cidadãos franceses de pleno direito desde, pelo menos, 1848. O engano é bastante elucidatvo das formas como xenofobia e racismo se mostram, muitas vezes, conectados.
A escravidão foi abolida pela Revolução Francesa em seus primeiros movimentos e depois restabelecida por Napoleão, para ser definitivamente abolida, pela Segunda República, em 1848. Desde então, ao mesmo tempo que todos os habitantes das antigas áreas de plantação francesas se tornavam cidadãos da França Republicana, o passado escravista das ilhas transformou-se em uma espécie de tema tabu na memória nacional, juntamente com a expansão colonial de final do século XIX e o difícil processo de descolonização no século XX. Essas antigas histórias de trauma e conflito engendraram os personagens que renovaram o futebol francês nos últimos anos, com o surgimento da geração “black, blanc, beur” (negros, brancos, árabes), contribuindo para os debates em torno da necessidade de estabelecer uma nova narrativa nacional para o país. Atualmente, há importante mobilização, inclusive oficial, para inscrever ambos os movimentos na história e na memória do país. A polêmica, no primeiro jogo da França na Copa, em torno da atitude do atacante Karim Benzena, que se recusou a cantar a Marselhesa como protesto contra a xenofobia, está diretamente relacionada aos atuais conflitos memoriais em torno da identidade nacional, conforme pode ser acompanhado em muito boa reportagem publicada no site da UOL, em 25/6/2014.
A história da diversidade étnica e racial dos times da copa conta em muitos casos histórias recentes de imigração em um mundo cada vez mais globalizado mas, em muitos outros, como no da seleção francesa, contam histórias bem mais antigas, relacionadas à conquista europeia da América no século XVI, à diáspora forçada produzida pelo tráfico negreiro no Atlântico, à expansão do colonialismo europeu nos séculos XIX e XX e às marcas que o racismo, gerado por estes movimentos, ainda deixa no mundo contemporâneo
A memória de tempos antigos inscritas na caráter multirracial das seleções latino americanas (aí incluído o Brasil) é ainda mais evidente. Segundo o levantamento citado, as seleções da América Latina estão entre as que registram menor presença de imigrantes em seus times. Apesar disso, já na abertura da Copa, o gesto do menino guarani-brasileiro, que mostrou um cartaz pedindo demarcação de suas terras, foi emblemático da diversidade cultural do continente. Também a força da presença da diáspora africana é visível na seleção de quase todos os países da região, muito além do time brasileiro, onde os negros, desde muito cedo, tornaram-se heróis do futebol.
Apesar disso, ainda é chocante o contraste entre a diversidade étnica e racial dos times em campo com a metáfora do branqueamento como ideal nas sociedades do subcontinente, claramente expressa na desconfortável brancura das animadas torcidas que invadiram os estádios brasileiros. Se a pujança da copa no Brasil e a alegria das torcidas latino-americanas expressam o crescimento econômico recente do continente, com significativa expansão de suas classes médias, o contraste visual que ainda permanece, entre jogadores e torcidas, revela o muito que ainda falta ser feito em termos de superação do racismo e da desigualdade em “Nuestra América”.