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Futebol e racismo

Como divulgado em vários jornais e redes sociais, muitos torcedores abusaram de xingamentos racistas para criticar a terrível falta de Zúñiga em Neymar, mostrando que o futebol no Brasil também está impregnado desse tipo de atitude, tão marcante em diversos campos de futebol pelo mundo, como o caso de Daniel Alves há pouco tempo foi exemplo. Sem dúvida, não somos tão diferentes dos europeus nesses assuntos. Especialmente no Brasil e na América Latina, futebol e racismo possuem uma longa e intrincada história, fruto da  internacionalização e popularização do esporte, ao longo do século XX.

Em  princípios do século XX, o futebol no Brasil, como quase todos os esportes, era uma atividade de elite, de afirmação social de determinados grupos brancos e intelectualizados, que se representavam como os mais saudáveis, finos e educados — os melhores da cidade. No caso do Rio de Janeiro, o futebol era mais um local de reprodução das hierarquias socais e raciais, de comprovação da supremacia branca no pós-abolição, como já é mais ou menos conhecido.

Sobre o tema, vale acompanhar o livro pioneiro de Mário Filho, “O Negro no Futebol Brasileiro”, publicado pela primeira vez em 1947. Naquele momento, Mário Filho, reconhecido fundador do jornalismo esportivo no Brasil, sentiu necessidade de escrever um livro sobre o “penoso e longo” caminho de participação e valorização do negro no futebol, processo que denominou de “democratização do futebol brasileiro”  na segunda edição do livro, em 1964.

O autor denuncia o quanto era branco o futebol dos primeiros  tempos, até a década de 1920, pelo menos.  “Os mulatos e os pretos, uma raridade, um aqui, outro ali, perdiam-se, nem chamavam atenção”… . Nos jogos dos clubes chics, como o Fluminense, o Botafogo e o Flamengo, branco pobre, pretos e mestiços, poderiam até estar presentes, mas como torcedores, na geral. “Cada um no seu lugar”. “O Futebol não alterava a ordem das coisas. Pelo contrário. Onde se podia encontrar melhor demonstração de que tudo era como deveria ser? O branco superior ao preto. Os ídolos do futebol todos brancos. Quando muito, morenos”… Mesmo nos clubes das fábricas, como na Bangu, haveria um esforço, registra Mario Filho, para se colocar mais brancos que “pretos”, ao menos em jogos da Zona Sul.

Ao longo década de 20 e 30, outros times dos subúrbios cariocas, como o Vasco, o São Cristovão, o Bangu, o América e o Vila, começariam a incorporar os negros e, com eles, a ganhar campeonatos, em paralelo ao processo de profissionalização do futebol. Apesar disso, Mario Filho relata diversos mecanismos excludentes que continuariam a atingir os jogadores negros, como a necessidade de provarem seus meios de sobrevivência e grau de escolarização para serem inscritos nos campeonatos, a preferência por jogadores brancos nos clubes e nas seleções que representavam o país, o constrangimento para adotarem mecanismos físicos de branqueamento –  um trato especial para os cabelos e pele, a  vergonha e a  negação da cor, ou a impossibilidade de frequentar as sedes sociais dos clubes.

A escrita da história do negro no futebol de Mário Filho, em 1947, revela muito sobre as formas de operação do racismo no Brasil do pós-abolição, como os mecanismos não explicitados de exclusão racial e as articulações preconceituosas entre condição social e  cor. Na bela “nota ao leitor” da primeira edição, Mário registra que não poderia ter escrito o livro sem o apoio da tradição oral, “muito mais rica, muito mais viva do que a escrita dos documentos oficiais…” Os documentos oficiais teriam mostrado ao autor que a “história verdadeira se escreve de outro jeito”…  Os livros, “as atas, as correspondências dos clubes não falam de negros… não tocam, nem de leve, em questões de raça”…

A primeira edição de 1947 teve prefácio de Gilberto Freyre, que valorizava a importância do papel do negro na formação da identidade nacional. Para o autor, o futebol inglês teria se tornado uma instituição brasileira, com evidentes traços originais e mestiços. E, de fato, o livro de Mário ajuda muito a entender a tessitura das relações entre brasilidade e futebol desde então. Algumas frases da apresentação da segunda edição, por exemplo, escritas por Mário Filho, expressam, como poucas, o que estamos vivendo hoje, especialmente depois da saída de Neymar da Copa: “No fundo o torcedor quer que o jogador seja melhor do que ele. O jogador representa-o, representa o clube, a sua cidade, o seu estado, a sua pátria. A derrota do jogador é a derrota do torcedor…”

Na edição de 1964, entretanto, Mário Filho  procura mostrar que não pretendeu defender “uma visão otimista a respeito de uma integração racial” do negro no futebol, “sem dúvida o campo mais vasto que se abrira para a ascensão social do preto”, em suas palavras.  Lembra que a derrota do Brasil, no Maracanã, no final da copa de 1950, teria provocado um “recrudescimento do racismo”, já que “culpou-se o preto pelo desastre de 16 de julho”… “Os bodes expiatórios,  escolhidos a dedo, e por coincidência todos pretos: Barbosa, Juvenal e Bigode. Os brancos do escrete brasileiro não foram acusados de nada”… Ainda na convocação para a Copa de 1958, na Suécia, a maior preocupação, salienta Mário Filho, era de embranquecer o escrete. Didi teria sido o único preto na estreia contra a Austria! Só aos poucos o time foi escurecendo com a entrada de Garrincha, Vavá, Djalma Santos, Zózimo e, finalmente, Pelé.

Segundo Edson Carneiro,  antropólogo, negro, que escreveu a orelha da segunda edição, apesar das  diversas “ofensivas segregacionistas” impostas aos jogadores negros, o “negro não se deu por vencido –  no campo e na pelada… Ao menos no futebol, afirma com ênfase, havia chegado “a vez do preto, tão bem simbolizada no triunfo mundial de Pelé”. A reedição do livro em 1964 parecia evidenciar a  necessidade de afirmação  do talento dos jogadores negros, sinalizando o quanto combater o racismo ainda era o pano de fundo do livro, mesmo dois anos após o Brasil  ter se tornado bi-campeão do mundo (conquistas de 1958 e 1962), com uma seleção maravilhosamente multirracial.

Passados cinquenta anos, em plena copa contra o racismo, o problema ainda persiste nos insultos que se repetem nas redes sociais dos mais diversos países, na segregação econômica que impõe uma maioria branca nos estádios ou no racismo invisível que resulta em uma minoria negra de crianças escolhidas para entrar em campo com os jogadores, através de indicação dos países e campanhas comerciais.  Mas exatamente por isso, é importante valorizar a decisão de abrir cada jogo com o anúncio da campanha Say No To Racism (Diga Não Ao Racismo) lido pelos capitães de cada seleção, no caso de sexta feira última  por Thiago Silva e Mario Yepes, em suas línguas nativas.  Com certeza,  vale a pena o esforço de divulgar bem alto,  em todos os estádios e em todas as TVs desse país, que o racismo é crime e envolve todas as formas de preconceito, seja de gênero, cor ou de origem.

A democratização do futebol, nos termos sonhados por Mário Filho, ainda é uma boa bandeira para se lutar.

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Seleção brasileira, 1950, antes do jogo em que goleou a Suécia por 7X1.

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Seleção brasileira, campeã do mundo, 1958.

 

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História, Memória e… Copa do Mundo!

Dá gosto ver a diversidade étnica e racial de quase todos os times nesta copa do mundo. Diversas reportagens têm comentado que essa diversidade espelha, em grande parte, migrações recentes e uma nova realidade global, cada vez mais transnacional.  Talvez um poderoso antítodo contra os surtos xenófobos em reação ao processo, que têm ganhado visibilidade recentemente, principalmente na Europa, ainda que não apenas ali. Um site internacional chegou a fazer uma simulação de como seriam as seleções sem a participação dos imigrantes.

Segundo uma reportagem sobre o tema,  83 atletas que percorreram os estádios da Copa em sua primeira fase “não nasceram no país pelo qual vestem a camisa”, número que chega a 200 “se forem somados todos os que são filhos de imigrantes.”

A simulação realizada apresenta, porém, uma falha gritante, e bastante esclarecedora sobre a força que o racismo ainda guarda no mundo contemporâneo. Simplesmente nem todos os que são considerados imigrantes pelo levantamento se enquadram na categoria.  O caso mais notório é o de Raphael Varane e Loic Remy, citados como filhos de imigrantes da seleção francesa, cujos pais  “nasceram na Martinica”. Ora, a Martinica é um departamento da República Francesa e todos os nascidos nessa ilha do Caribe são cidadãos franceses de pleno direito desde, pelo menos, 1848. O engano é bastante elucidatvo das formas como xenofobia e racismo se mostram, muitas vezes, conectados.

A escravidão foi abolida pela Revolução Francesa em seus primeiros movimentos e depois restabelecida por Napoleão, para ser definitivamente abolida, pela Segunda República, em 1848. Desde então, ao mesmo tempo que todos os habitantes das antigas áreas de plantação francesas se tornavam cidadãos da França Republicana, o passado escravista das ilhas transformou-se em uma espécie de tema tabu na memória nacional, juntamente com a expansão colonial de final do século XIX e o difícil processo de descolonização no século XX.  Essas antigas histórias de trauma e conflito engendraram os personagens que renovaram o futebol francês nos últimos anos, com o surgimento da geração “black, blanc, beur” (negros, brancos, árabes), contribuindo para os debates em torno da necessidade de estabelecer uma nova narrativa nacional para o país. Atualmente, há importante mobilização, inclusive oficial, para inscrever ambos os movimentos na história e na memória do país. A polêmica, no primeiro jogo da França na Copa, em torno  da atitude do atacante Karim Benzena, que se recusou a cantar a Marselhesa como protesto contra a xenofobia, está diretamente relacionada aos atuais conflitos memoriais em torno da identidade nacional, conforme pode ser acompanhado em muito boa reportagem publicada no site da UOL, em 25/6/2014.

A história da diversidade étnica e racial dos times da copa conta em muitos casos histórias recentes de imigração em um mundo cada vez mais globalizado mas, em muitos outros, como no da seleção francesa, contam histórias bem mais antigas, relacionadas à conquista europeia  da América no século XVI, à diáspora forçada produzida pelo tráfico negreiro no Atlântico,  à expansão do colonialismo europeu nos séculos XIX e XX e às marcas que o racismo, gerado por estes movimentos, ainda deixa no mundo contemporâneo

A memória de tempos antigos inscritas na caráter multirracial das seleções latino americanas (aí incluído o Brasil) é ainda mais evidente.  Segundo o levantamento citado, as seleções da América Latina estão entre as que registram menor presença de imigrantes em seus times.  Apesar disso, já na abertura da Copa, o gesto do menino guarani-brasileiro, que mostrou um cartaz pedindo demarcação de suas terras, foi emblemático da diversidade cultural do continente. Também a força da presença da diáspora africana é visível na seleção de quase todos os países da região, muito além do time brasileiro, onde os negros, desde muito cedo, tornaram-se heróis do futebol.

Apesar disso, ainda é chocante o contraste entre a diversidade étnica e racial dos times em campo com a metáfora do branqueamento como ideal nas sociedades do subcontinente, claramente expressa na desconfortável brancura das animadas torcidas que invadiram os estádios brasileiros.  Se a pujança da copa no Brasil e a alegria das torcidas latino-americanas expressam o crescimento econômico recente do continente, com significativa expansão de suas classes médias, o contraste visual que ainda permanece, entre jogadores e torcidas, revela o muito que ainda falta ser feito em termos de superação do racismo e da desigualdade em “Nuestra América”.

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