A escravidão é uma instituição tão antiga quanto a humanidade. E continuou uma instituição central para o desenvolvimento do mundo moderno e globalizado como o conhecemos ainda hoje. Sua lenta agonia nos Estados Unidos, Rússia e Brasil durante o longo século XIX é o tema de seminário internacional que começa amanhã, 20/5, na Casa de Rui Barbosa, com transmissão ao vivo pela internet. Colocar em conjunto especialistas no tema no Brasil, Estados Unidos e Rússia tem, entre outros, um mérito especial: ir além das análises comparativas mais usuais, que opõem modernidade (ocidental) e sociedades tradicionais (Rússia e Brasil), ou que consideram a escravidão racial no novo mundo (Brasil e Estados Unidos) inscritas de um modo ou outro na modernidade ocidental, em oposição a uma Rússia tradicional. A iniciativa do seminário, ao conectar diferentes historiografias, contribui para tornar mais complexas nossas concepções sobre a modernidade. As relações e interações entre os diferentes contextos, as fronteiras móveis entre trabalho “livre” e trabalho “servil”, as ambiguidades e inovações produzidas na progressiva e lenta deslegitimação da escravidão em termos globais no século XIX serão discutidas por especialistas, ganhando novas dimensões na interação entre eles. Ainda que indiretamente, a centralidade da instituição na Europa e suas colônias (especialmente Inglaterra e França) e, depois, na sua expansão colonial na África e na Ásia também estarão presentes no debate. Pela internet. Em tempo Real. #ficaadica.
Para estimular a reflexão sobre o tema e seus desdobramentos contemporâneos, reproduzimos mais uma vez o post “Estranhos Costumes Ilegais”. #vale a pena ler de novo.
Nas três primeiras décadas após a independência do Brasil, mais de 750 mil africanos foram forçados a atravessar o Atlântico e tornaram-se escravizados no país, apesar da legislação da então jovem monarquia constitucional proibir formalmente o tráfico negreiro desde 1831. Todo o processo de montagem e consolidação do estado imperial brasileiro se fez assentado nessa gigantesca ilegalidade, com um saldo imensurável de vidas perdidas na travessia do Atlântico e de violência fisica e simbólica sobre aqueles que sobreviveram e, no Brasil, foram forçados a aprender a viver “escravo”.
Até bem pouco tempo, porém, esta informação aparecia quase sempre com uma naturalidade desconcertante nas mais diversas narrativas da história do Brasil. Mesmo os especialistas em história social da escravidão não costumavam dar muita atenção para a montagem das atividades ilegais que permitiram a continuidade do tráfico negreiro no país, entre 1831 e 1850, e seus desdobramentos do ponto de vista político e ético. Subestimavam também, via de regra, a consciência dos atores da época sobre os direitos daqueles que chegavam ao país ilegalmente escravizados e o constrangimento que causava trazer a público tal tema.
Recentemente, porém, a temática do tráfico ilegal emergiu com força na pesquisa histórica e pode ter importantes desdobramentos no ensino de história. Talvez seja hoje o campo da historiografia da escravidão que mais tem se renovado. Tem trazido importantes contribuições para nossa compreensão sobre a “força da escravidão” – título do último livro de Sidney Chalhoub; sobre envolvimento da população local de Pernambuco na organização do tráfico ilegal – tema de pesquisa de Marcus Carvalho; e sobre a dimensão nacional da atividade ilegal – que pode ser avaliada pelas evidências no sul do Brasil, registradas no site do Santa Afro Catarina, coordenado por Beatriz Mamigonian e Andrea Ferreira Delgado.
Mais uma vez a história responde questões formuladas pela memória e o tempo presente. Parece-nos extremamente significativo para a democratização da sociedade brasileira que finalmente tenhamos conseguido olhar com estranhamentos a “costumes” baseados no racismo e no desrespeito aos direitos humanos. A ilegalidade do tráfico e da escravidão, após 1831, foi o argumento central na defesa apresentada por Luiz Felipe Alencastro, em 2011, para a aprovação das ações afirmativas para pretos e pardos no Supremo Tribunal.
De nossa parte, também encontramos registros importantes sobre o tráfico ilegal através da memória dos descendentes de escravos do Quilombo da Rasa, Quilombo da Marambaia e do Quilombo do Bracui, analisados no livro coletivo Diáspora Negra e Lugares de Memória (2013). Se já tínhamos conhecimento de desembarques ilegais na região de Angra dos Reis, e havíamos trabalhado com o assunto, no porto do Bracui, na coletânea Resgate, uma janela para o oitocentos, na década de 1990, foi impressionante ouvir o mesmo caso nas narrativas orais dos atuais moradores do Quilombo do Bracui. São essas narrativas que hoje identificam sua luta pelo reconhecimento da terra e da identidade quilombola.
Os eventos e locais do tráfico ilegal, silenciados no passado e nos poucos vestígios que deixaram pela natureza da própria atividade, podem hoje também ser conhecidos e visitados pelo Inventário dos Lugares de Memória do Tráfico Atlântico de Escravos e da História dos Africanos Escravizados no Brasil. Entre 2012 e 2013, organizamos o Inventário, sob a batuta de Milton Guran, representante do Projeto da UNESCO “Rota do Escravo: Resistência, Herança e Liberdade”. O trabalho foi construído a partir da indicação e contribuição de diversos historiadores, antropólogos e geógrafos do país, após consultas e intensas trocas de informações por e-mail. Depois de muitas negociações quanto ao número de indicações, chegamos a 100 Lugares de Memória, dando prioridade às evidências documentais, escritas ou orais, da presença histórica e cultural dos africanos. Entre os diferentes tipos de Lugares de Memória selecionados, destacamos neste texto os lugares de desembarque ilegal. São 15 lugares de desembarque ilegais assinalados, marcando para a posteridade eventos que não podem mais ser esquecidos.