Homenagem do Vício à Virtude

Tentativas maniqueístas de desacreditar intelectual ou moralmente determinadas forças políticas estão na base de todos os fascismos. Infelizmente, os acontecimentos recentes no Brasil chegaram assustadoramente perto disso. Por outro lado, felizmente, os riscos do pensamento único me parecem que estão sendo superados na crise em curso. Sejam quais forem seus desdobramentos, não se farão em nome de qualquer unanimidade artificialmente construída. Estamos diante de um país politicamente dividido. Aprender a lidar democraticamente com isso é parte da solução.

Historiadores profissionais estão fortemente presentes na atual disputa política. O jogo de espelhos da história que se repete ora como farsa ora como tragédia assombrou a muitos, que vieram a público exorcizar tais fantasmas. Como escreveu meu amigo Sidney Chalhoub, em texto publicado aqui no blog, o jogo ainda está sendo jogado e eu não resisto a contar mais uma história.

A hipocrisia pode ser definida como o elogio que o vício presta à virtude e as raízes de sua presença na nossa cultura política são sabidamente antigas. Mesmo quando a estavam violando, a legalidade constitucional sempre foi celebrada pela tradição brasileira. Nem os anos abertamente autoritários do Estado Novo chegam a ser completamente exceção a esta regra. Bem antes do fim do período lá estava o ditador a criar partidos políticos, como bem nos ensina Ângela de Castro Gomes, no clássico A Invenção do Trabalhismo.  O golpe civil militar de 1964 gostava de chamar-se revolução democrática e Arena e MDB disputaram o poder em eleições regulares ao longo de todos os sombrios anos de chumbo.

Muitos remontam o gosto brasileiro pela hipocrisia na política à tradição católica, que ao propor códigos morais inalcançáveis à maioria dos seres humanos comuns, faz do pecado um pressuposto (como na proibição do uso de anticoncepcionais, para ficarmos num exemplo corriqueiro). Há muito, porém, que o Brasil é um país laico e plural do ponto de vista religioso e que a própria igreja católica discute a questão. Discursos únicos não podem dar conta da atualidade política do catolicismo ou do país.

Também a colonização ibérica costuma ser responsabilizada por nossas mazelas políticas. Seríamos uma sociedade de privilégios, mal adaptada à modernidade democrática. Vejo, porém, origem bem mais objetiva na condescendência brasileira com a hipocrisia política. E ela se encontra na nossa peculiar modernidade escravista, estruturadora da fundação do nosso primeiro estado nacional. O racismo à brasileira e a hipocrisia como tradição política têm origens comuns, se não são, a rigor, a mesma coisa.

Com a independência do Brasil, uma atividade mercantil até então considerada legal e legítima, apesar dos horrores em que implicava, que movimentava milhões de libras esterlinas – para ficarmos na então moeda forte do mercado internacional, transformou-se, oficialmente, em crime de contrabando. O reconhecimento da independência do país pela Inglaterra teve como contrapartida um compromisso oficial de extinção do tráfico de cativos africanos, depois ratificado por uma lei aprovada em 1831. Com a emancipação política, o comércio negreiro virou tráfico, e assim se fixaria na memória nacional.

A lei não foi aprovada para inglês ver, como passou para a história. Muitos lutaram para que fosse implementada, mas ela se tornou alvo de um vigoroso processo de desobediência civil por parte da classe senhorial que acabou se consolidando no movimento político conhecido como Regresso, que alcançou o poder em 1837. Ainda assim, não conseguiram revogar a lei de 1831 (ainda que tentassem), optando por fechar os olhos para seu descumprimento. A hipocrisia generalizada como política de estado nascia ali, juntamente com a prática de silenciar sobre a cor dos brasileiros livres nos documentos oficiais.

Invisibilizada na memória pública, a mobilidade social de intelectuais mestiços foi expressiva nas primeiras décadas após a independência. Francisco Montezuma, formado em direito por Coimbra, e Antônio Pereira Rebouças, advogado por notório saber, combateram o tráfico escravista no parlamento, como deputados pela Província da Bahia. Filho de uma liberta com um alfaiate português, Rebouças  tornou-se um dos maiores especialistas em direito civil no Brasil do século 19, como nos mostrou Keila Grinberg. Durante as tentativas de revogação da lei de 1831, discursou no parlamento denunciando a conivência da chamada “boa sociedade” brasileira com o tráfico de escravizados. Não porque alguns elementos se tivessem corrompido, como por vezes se acusava um ou outro inimigo político, fazendeiro ou funcionário público, mas porque todos os produtores rurais brasileiros, pequenos ou grandes, estavam de alguma forma envolvidos com o contrabando.

Homem de seu tempo, Rebouças defendia que os trabalhadores africanos no país fossem todos considerados como colonos livres, e que novos braços africanos fossem trazidos nessa condição. Para tanto, seria preciso revogar outra lei, de 1830, que baseada em pressupostos racistas proibia a imigração de africanos livres.

Foi derrotado. Os sobreviventes da terrível travessia continuaram a cruzar clandestinamente o Atlântico e a Serra do Mar, para serem ilegalmente incorporados como trabalhadores escravizados às plantações de café, principal produto de exportação do novo país. Desse percurso, porém, quase não ficaram rastros. A ilegalidade trazia consigo invisibilidade social e silêncio. As pessoas morriam nas praias a vistas de todos, mas depois de Rebouças, apenas os ingleses continuaram a falar sobre isso. Um relatório do Foreign Affairs de Londres relata mais de 4000 pessoas desembarcadas entre Copacabana e a Ilha Grande apenas em janeiro de 1838.

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 (agradecemos à Mariana Muaze pela reprodução do documento no blog)

Era como se toda a sociedade se fizesse propositalmente muda e cega em relação à continuidade do tráfico negreiro, bem como à cor de parlamentares como Rebouças ou Montezuma. O Brasil nasceu como nação comandado por corsários de corpos negros que se imaginavam como construtores (quase) brancos de um Império civilizado nos trópicos.

Em 1850, uma segunda lei colocaria fim ao tráfico atlântico de escravizados, com o compromisso de manter, porém, o manto de silêncio sobre a ilegalidade anterior. Desde então a ideia de que as leis no Brasil podem pegar ou não tem sido repetida. Bem como o jargão histórico que ameaça com a lei os inimigos. Na atual crise política, não existe bordão mais cruel do que o Quero Meu País De Volta.

Do ponto de vista da velha corrupção política, o risco de mais um tapetão histórico (acho que a expressão é de Luiz Felipe Alencastro) está mais que nunca no horizonte. Se o clima político atual por vezes lembra o pré 1964, a proposta de um governo Temer a partir do impedimento da presidenta ecoa 1837. Reencenando como farsa o gosto pela hipocrisia generalizada, o réu Eduardo Cunha ameaça o mandato de Dilma Rousseff, presidenta eleita com mais de 54 milhões de votos, entre eles o meu, e a própria democracia.

De novo, não. Os tempos são outros.

7 Comentários

Arquivado em história e memória, Pos-abolição

7 Respostas para “Homenagem do Vício à Virtude

  1. Um artigo muito importante sobre as raízes da hipocrisia nacional. E os “problemas” do nosso legalismo, nem sempre muito legal.

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  5. Fabiano

    Conheço o blog agora, e, tudo indica, vou frequentá-lo assiduamente.

  6. Fabiano

    É uma ideia muito fecunda, e pode ser traduzida de diversos modos, por exemplo, na existência de duas ordens normativas, uma expressa nas leis e na Constituição, mas que fica confinada no papel, e outra real, expressa nas condutas e nos pactos dos detentores do poder.
    A corrupção teria parecido a Marcelo Odebrecht uma praxe política brasileira, com bastante razão, pois o desvio do dinheiro público para bolsos de políticos continua sendo a regra, a norma real.
    Do mesmo modo, o massacre diuturno dos negros e mulatos das periferias urbanas constitui a norma real. A gente costuma dizer que há vista grossa quanto ao genocídio, mas não é bem assim. O genocídio é aberto, noticiado com relativa fidelidade. Lembrem-se, a propósito, o assassinato de dois meninos negros, no intervalo de um mês. Pode-se admitir que a leitura ou narrativa destes fatos seja ideológica. Mas acredito que esta duplicidade normativa expressa melhor o fenômeno. Ao menos para mim, que tenho formação em Direito. Como tal, tento contribuir para esse esforço muito importante de historiadoras, aliando a visão histórica à visão feminina.

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