A força do passado e os editorialistas do Estadão

A internet e as redes sociais, com destaque para o facebook, tornaram-se um poderoso espaço de formação de opinião no Brasil. As chamadas “memórias” do face me fizeram revisitar um publicação minha de 19 de junho de 2013, sobre o “Anonymous Brasil”, “perfil” extremamente ativo durante as chamadas jornadas de junho de 2013.

“Os post do Anonymous Brasil são simplesmente um horror. …Por que o anonimato? Por que o chamado de tom moral com a palavra de ordem fascista “sem bandeiras partidárias” e “sem ideologia”? Mas, principalmente, por que tantos que não concordam com essa pauta (política e partidária, obviamente) compartilham seus conteúdos? 

Em 2 de julho daquele ano, quando a Copa das Confederações finalmente terminava, eu refletia:

Fim da Copa das Confederações. A democracia passou no teste. Ufa!  … A chamada crise da representação existe em diversos níveis e é em alguma medida mundial. Quero, entretanto, manifestar meu incômodo, com uma certa cultura política de fundo autoritário, que tem predominado nas redes sociais, tanto à esquerda, quanto à direita. Ela apresenta o adversário político, em geral bem eleito, muitas vezes em pleito majoritário, como um ser amoral, oportunista, muitas vezes simplesmente perverso (seus eleitores também o são ou então são ignorantes e manipulados). A tentação autoritária desse tipo de discurso é evidente, mas felizmente, com algumas exceções assustadoras, parece reduzida à dimensão retórica, para ser lida apenas por aqueles que já concordavam antes com quem escreve. Felizmente, ao fim das contas, a polifonia das ruas ficou bem estabelecida. … O fisiologismo foi para o corner. A crise de crescimento nas grandes cidades está no centro dos debates. Vamos ver se haverá reforma política. ..

Não tivemos reforma política, o fisiologismo saiu do corner e a democracia e a constituição de 1988 estão sob ataque. As tentações autoritárias venceram?

Textos publicados neste blog analisando a escalada fascistizante e reacionária que, desde então, se desenvolveu no país, atingindo inclusive os veículos tradicionais da chamada grande imprensa, estão na origem do movimento historiadores pela democracia. Esses textos e outros exercícios de história imediata estão sendo reunidos no tumblr do grupo, sob o título A Força do Passado.  A ideia é tomá-los como base para organizar um livro coletânea de mesmo título. No tumblr, o objetivo é conseguir reunir o conjunto mais amplo possível de reflexões de historiadores sobre a atual crise política brasileira, que se somam aos vídeos de depoimentos, ao vídeo manifesto e  ao registro completo do encontro de mais de 40 historiadores com a Presidenta afastada, na tarde do dia 7 de junho de 2016.

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O evento no Palácio da Alvorada foi precedido de um debate na Universidade de Brasília. Uma edição desse debate, com cerca de 7 minutos, acaba de ser concluída, destacando a preocupação dos presentes com a manutenção dos direitos garantidos pela constituição de 1988. Foi essa preocupação que orientou a iniciativa de organizar os debates “Historiadores Pela Democracia: Por um Brasil com Direitos”, ocorridos em todo o país, nos dias 16 e 17 de junho.

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No Rio de Janeiro, o painel “O Movimento Escola Sem Partido e o Direito à Diversidade Cultural”, na Casa de Rui Barbosa, com Ivana Lima, Hebe Mattos, Fernando Penna, Mônica Lima, Francisco Carlos Teixeira da Silva, Henrique Estrada, Ildeu de Castro Moreira, e mediado por Ângela de Castro Gomes, foi transmitido ao vivo e reuniu mais de 300 pessoas. O vídeo com a edição do debate da UNB foi apresentado no evento. O registro integral estará brevemente disponível no canal da instituição no youtube.

Toda essa movimentação reunindo alguns dos mais importantes historiadores do Brasil e do exterior, englobando uma enorme diversidade de escolas historiográficas e orientações teóricas, não mereceu sequer uma linha nos chamados grandes jornais brasileiros. Esta tem sido a regra predominante para quase todo o alentado movimento da sociedade civil de resistência ao governo interino e à forma como chegou ao poder.

Apesar disso, o movimento historiadores pela democracia tornou-se alvo de um editorial raivoso de “O Estado de São Paulo”, que acusava os historiadores em visita ao Palácio da Alvorada de “estar a serviço de partidos” e de desprezar aquilo que tinham ido homenagear: o estado democrático de direito e a Presidenta  legítima, eleita por 54 milhões de votos, Dilma Rousseff. No ataque desferido, o texto do editorial reduz os intelectuais que participaram do movimento ao anonimato,  enquadrando-os, como “lulopetistas”, no discurso de ódio que tenta legitimar o impedimento da Presidenta. A pluralidade de orientações teóricas e políticas dos historiadores que se engajaram no movimento, sua relevância intelectual nos diversos campos de atuação em que se inserem, a defesa comum dos sentidos republicanos e democráticos da ordem política brasileira, bem como a preocupação com o crescimento da intolerância e do discurso de ódio no país, essenciais ao vídeo manifesto veiculado, foram simplesmente ignorados.

Vivemos tempos sombrios. Intelectuais transformados em “não notícia” por decisão editorial podem tornar-se alvo de editoriais que não citam seus nomes. Um texto sem assinatura, representando uma entidade corporativa, O Jornal O Estado de São Paulo, desfere ataque absolutamente maniqueísta contra supostos “lulopetistas” igualmente anônimos. Os autores desconhecidos do editorial escolheram o texto coletivo do manifesto como base da crítica,  fingindo ignorar o vídeo síntese que lhe deu origem, construído como narrativa polifônica a partir de mais de 80 depoimentos, onde as autorias individuais estão bem evidenciadas. Citam, retiradas do contexto, como exemplo de “má fé” ou de “lulopetismo”, frases de Sidney Chalhoub, da Universidade de Harvard, de Martha Abreu, da UFF e de Iris Kantor, da USP, sem qualquer referência.

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O ataque fascista à UNB ocorrido na semana passada e o editorial do Estadão contra o movimento historiadores pela democracia são faces de uma mesma e assustadora moeda. Como bem disse a Presidenta Dilma, ultrapassaram a fronteira do Estado de Exceção. Repito, aqui, frase de Heloisa Starling, destacada no vídeo manifesto: Nós vamos mesmo abrir mão dos princípios das sociedades republicanas, princípios baseados na liberdade e na igualdade? 

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Para concluir, convido todos a assistir, já com legendas em inglês, uma pequena edição das falas públicas no encontro dos historiadores pela democracia com a Presidenta Dilma Rousseff, no Palácio da Alvorada (9 minutos). Foi um momento emocionante. Um dia para ficar na história.

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4 Comentários

Arquivado em história e memória, historiografia

4 Respostas para “A força do passado e os editorialistas do Estadão

  1. Eliana Vinhaes

    Congratulo- me com esta excelente iniciativa, de apresentar algumas tendências que norteiam as perspectivas de historiadores. Homens e mulheres de seu tempo, mas com uma bagagem impar ,por terem garimpado o passado, na busca de sua interpretação, de seu entendimento.

  2. Maria Augusta Xavier da Silveira

    Discordo, como historiadora que sou, deste apoio que fazem a esta sra que chamam de “presidenta”. Ainda bem que moramos em um país democrático onde ainda é possível discordar.

    • as suas aspas a um termo que antes de tudo consta da própria norma culta (como se essa aliás fosse por si superior às outras modalidades da lingua) já denota tanto sua visão política quanto seu preconceito.

  3. Pingback: Contradança: réplicas às críticas ao movimento historiadores pela democracia | conversa de historiadoras

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