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SEGUNDO DOSSIÊ 13 DE MAIO

HEBE MATTOS, MARTHA ABREU, MONICA LIMA,  KEILA GRINBERG, GIOVANA XAVIER, ANA FLAVIA MAGALHÃES PINTO.

Sobre o 13 de maio (ou eles passarão)

Hebe Mattos

Em treze de maio de 1888, o primeiro e mais importante movimento social da história do Brasil celebrou sua maior vitória, a abolição legal da escravidão no país. A lei reconheceu formalmente a liberdade de cerca de 750 mil pessoas (em sua maioria ilegalmente escravizada desde 1831, quando foi aprovada a primeira lei de abolição do tráfico de cativos africanos) sem qualquer indenização a seus supostos proprietários.

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Foi uma revolução de veludo onde os últimos escravizados foram os grandes protagonistas. Desde 1885, um governo conservador formado por senhores escravistas reprimia violentamente o movimento abolicionista e as fugas de escravizados. Parecia não haver alternativa a não ser seguir o lento cronograma de indenização gradual dos senhores previsto em lei de 1885. Mas as fugas em massa se acentuaram em finais de 1887 e transformaram ruas, cidades e campos do país em território livre. A lei sancionou um fato consumado.

O que veio depois ficou muito aquém da esperança de abolicionistas e libertos nos dias de festas que se seguiram. A memória da abolição em poucos anos passou a ser celebrada de uma perspectiva senhorial, com sinhazinhas, mães pretas e uma princesa que “doava” a liberdade aos cativos.

Apenas após a constituição de 1988, exatos cem anos depois, o Estado nacional brasileiro começou a encarar e instituição da escravidão como um passado sensível. Afinal, as sociedades pós-escravistas se formaram alicerçadas em um crime contra a humanidade. O texto constitucional reconheceu, pela primeira vez, que o país era formado por populações racializadas, que conviviam, no dia a dia de todos, negros e brancos, com a atualização do estigma, do preconceito, da dor e da injustiça, abrindo a possibilidade de tentar reparar os danos do passado, atualizados no presente.

É a esperança que se renova com o movimento #fazendasemracismo que os grupos detentores do patrimônio imaterial negro do Rio de Janeiro e o ministério público federal estão encaminhando para repensar o turismo histórico nas antigas regiões cafeeiras do Vale do Paraíba. A história do sofrimento, das lutas e da cultura da última geração de africanos, sequestrados e escravizados ilegalmente no Brasil, precisa ser celebrada e conhecida de todos. Para que os seus descendentes tenham suas histórias e memórias reconhecidas, para que todos os que são vítimas do racismo possam ter sua dignidade restaurada, para que possamos todos os brasileiros olhar para o nosso passado de injustiça e buscar sua superação.

Neste 13 de maio, recordamos também o dia seguinte da posse do atual governo ilegítimo e a instauração do que chamei, inspirada no filme Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, de República dos Cupins.  No filme, o velho edifício na praia da Boa Viagem em Recife, onde se passa a história como uma metáfora para a República de 1988 no Brasil, é finalmente condenado à destruição por uma infestação de cupins criminosamente provocada.

Desde o golpe parlamentar do ano passado, o ataque aos direitos previstos na constituição de 1988 tem sido diuturno. Na atual reforma trabalhista, há mesmo quem tente tornar realidade o velho chiste de que de tão reacionários vão propor revogar a Lei Áurea. Neste 13 de maio de 2017, proponho nos inspirarmos na revolução de veludo iniciada pelos escravizados em 1887, para alimentar a esperança de que chegaremos a 2018, e à comemoração dos 130 anos da abolição, tendo restaurado o espírito cidadão da constituição de 1988 e o estado democrático de direito.

Ainda as festas do 13 de maio

Martha Abreu

Escrevo essas linhas, pensando na festa que deve estar acontecendo no Quilombo São José da Serra, nessa linda noite estrelada de 13 de maio, dia dos Pretos Velhos e do fim da escravidão no Brasil.

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Deve estar perto da hora da entrada do jongo de São José, impactante como sempre.  E já deve estar dando para ouvir  o ponto que, ao som de tambores, estremeceu o Vale do Paraíba naquele ano de 1888: “Tava dormindo angoma me chamou, Levanta povo que o cativeiro acabou”.

As festas do Quilombo de São José ganharam muita visibilidade nesses últimos 20 anos e fortaleceram não só a vitoriosa luta pela terra, como também a formação de centenas de jovens negros que cresceram ouvindo falar de suas histórias e duras vitórias.  No último sábado em Vassouras, ouvi de uma jovem professora negra o quanto estava emocionada por conhecer Toninho Canecão, líder do quilombo. Ela havia crescido com a importante referência dos quilombolas de São José na valorização da cultura negra e no combate ao racismo no Vale do café. Como o Quilombo de Manoel Congo no século XIX, o Quilombo de São José da Serra, no século XXI, é um marco para novas possibilidades de realização da igualdade e da justiça.

Ao lado de Toninho Canecão, e de outras lideranças dos movimentos negros, como Maria de Fátima Santos, de Pinheiral, assistimos  no sábado passado, dia 6 de maio,  a construção de uma dessas possibilidades com a assinatura do TAC (termo de ajuste de conduta) entre os representantes da Fazenda Santa Eufrásia, o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. O TAC propõe novas formas de visitação aos antigos casarões do café  e inicia o movimento #fazendasemracismo. Entre as estratégias, além de placas, vídeos e folders, que divulguem de forma completa e justa a história dos escravizados, as novas regras envolvem  compromissos com a  visibilidade de grupos culturais negros da região e com os locais de visitação construídos pelos seus próprios descendentes. Como destacou a professora Iolanda de Oliveira, da Faculdade de Educação da UFF, o TAC é um importante instrumento educativo de combate ao racismo em todo turismo de memória desenvolvido no velho Vale do Paraíba.

Felicidade guerreira *

                                                                                              Monica Lima

Nas experiências em salas de aula, no ensino de História, o que aconteceu com os cativos depois do 13 de maio de 1888 sempre se torna motivo de discussão. A imagem novelesca dos recém-libertos vagando pelas estradas, perdidos, abandonados, formando cortejos de retirantes, era e ainda é uma representação recorrente, forte. Com as referências de pesquisas recentes sobre o processo de emancipação e o pós-abolição tornou-se possível desconstruir essa visão e pensar em caminhos de muita luta e da criação de espaços de negociação conquistados, nos quais a permanência na terra também esteve presente. Certamente não foi nada simples, mas tampouco os escravizados estavam despreparados para enfrentar o mundo do trabalho e tudo o que o fim da escravidão significava.

E sim, não só no 13, mas no 14 de maio de 1888, como se sabe, houve festa, por que o fim da escravidão foi uma conquista e conquistas se festejam. A imagem da festa, menos presente na memória coletiva sobre o que veio a seguir da assinatura da lei, nos debates sobre a importância de recordar essa celebração foi equivocadamente associada a uma certa falta de consciência sobre o que haveria de vir. Afinal, isso é fato: não houve nenhuma política de inclusão da população negra que havia sido escravizada ou que descendia diretamente dos ex-cativos. Mas, em nada o festejar significava não compreender toda a dureza da situação – afinal, desde sempre, celebrar é ganhar força para viver e lutar.

Já nas comemorações dos cem anos da abolição em 1988, enredos das escolas de samba do Rio de Janeiro celebraram a data e em quase todos se pode observar como temas das letras dos belos sambas uma crítica à apologia da assinatura da lei pela Princesa e a presença da desigualdade racial e social. A Imperatriz Leopoldinense cantou “Me mandou uma princesa, que fingiu me libertar”; a Estação Primeira de Mangueira veio com “Livre do açoite da senzala, preso na miséria da favela”; “O Rio é negro, e o negro luta pelo Rio, buscando a liberdade, enfrentando o desafio”, disse o Império Serrano; e a Unidos de Vila Isabel trouxe a luta de Palmares influenciando a abolição, e o grito: “Valeu, Zumbi! ”.

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O que aconteceu no pós-abolição com a população negra e a presença das marcas da escravidão na mentalidade brasileira nos ajuda a entender como se imagina o imediato pós-13 de maio de 1888. O que não se pode recuperar facilmente é a centelha de esperança que deve ter existido naquelas pessoas e a sensação de que aquilo havia sido uma conquista, e de que se poderia avançar mais nessa estrada de liberdade. Como historiadora me dou a liberdade de imaginar, com certas referências, esses sentimentos nas pessoas, nos batuques, nas quebradas das cidades naquele então. E fico pensando se, junto com o olhar crítico, não devemos, frente ao avanço do retrocesso hoje, lembrar que só a luta traz essa alegria. E que dessa matéria também somos feitos, e nos fortalecemos.

13 de Maio em Sala de Aula

Keila Grinberg

Passei o 13 de Maio em Piraí, conversando com os alunos do curso de licenciatura em História a distancia da UNIRIO sobre o projeto Passados Presentes e a memória da escravidão. Foi emocionante estar ali, bem no meio do Vale do Paraíba fluminense, discutindo o ensino de uma História que não tem medo do passado e nem da luta contra o racismo no presente. Muitos foram de lá direto para o Quilombo de São José festejar. Eu voltei para casa orgulhosa por fazer parte do corpo docente de uma universidade pública que mantém um curso de qualidade agregando alunos do interior do Estado do Rio de Janeiro, pensado para quem não tem condições de deslocar-se até a capital. Afinal, desde 1888 se sabe que, sem investir em educação universal e pública, não conseguiremos deixar para trás as marcas da escravidão na sociedade brasileira.

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13 de Maio, espelhos estilhaçados e a busca da pretessência

Giovana Xavier

Qual o lugar da Lei Áurea na história do Brasil? Dádiva? Conquista? Quais as narrativas ao seu redor? Estas, de certa forma, são perguntas que têm mobilizado os movimentos sociais negros ao longo do tempo. Nos anos 1930, o jornalista negro José Correia Leite, editor do Clarim d´Alvorada, conclamava os “homens de cor” a lutarem pela “segunda abolição”, dado o estado de precariedade em que se encontrava a população negra em São Paulo e em todo o país. Saltando no tempo, chegamos aos anos 1970, quando o poeta e jornalista Oliveira e Silveira, assinalava, no Rio Grande do Sul, o 20 de novembro como o Dia da Consciência Negra. Esta proposição consagrou a data da morte de Zumbi dos Palmares como contraponto ao 13 de maio de 1888, trazendo para o centro da discussão a importância de enquanto negros e negras narrarmos nossas próprias histórias.

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(Foto: Marcha Contra o Racismo/1988, de Januário Garcia).

Embora, em termos práticos e jurídicos, a Lei Áurea tenha se traduzido na construção de um sentido de liberdade extremamente precário para a população negra, o fato é que o dia seguinte à sua assinatura, significou o fim de um Brasil organizado a partir das categorias dicotômicas do senhor e do escravo. Menos do que desaparecer, tais categorias foram ressignificadas na sociedade livre, que aprimorou políticas de racialização baseadas no estabelecimento de hierarquias entre negros e brancos. Ainda assim, a abolição representou a vitória de séculos de lutas e mobilizações negras individuais e coletivas em busca da liberdade. Como disse Lima Barreto “era como se o Brasil tivesse sido descoberto outra vez”. As palavras do autor, levado pelo pai ao Largo do Paço para festejar a abolição, em plena Sexta-Feira 13, “data áurea” em que o pequeno Lima completava 7 anos de meninice, mantêm-se vivas.

O monólogo Tragam-me a cabeça de Lima Barreto, estrelado pelo incrível ator Hilton Cobra, sob direção de Fernanda Júlia Onisajé do Núcleo de Teatro Brasileiro de Alagoinhas (NATA) e produção de Naira Silva Fernandes, criadora do Projeto Melanina Carioca, mostra o poder das palavras do escritor em desestabilizar o racismo e desarrumar a afirmação de que nada mudou.

Hilton Cobra - Tragam me a cabeçaO ator Hilton Cobra no monólogo “Tragam-me a cabeça de Lima Barreto”, no Teatro SESC Copacabana/RJ.

O “veneno do conhecimento”, injetado em gerações passadas e presentes de intelectuais negros como o próprio Cobra, diretor da Cia. dos Comuns, também chegou à FLIP 2017, no qual Lima será o grande homenageado. Estas contaminações reatualizam a importância de celebrarmos a abolição como uma conquista da população negra. Uma conquista dolorosa, que coexiste com muitas permanências, é bem verdade.

Em termos das permanências, devemos lembrar que a implementação das cotas raciais em universidades públicas, apresentadas como principal cartão de visitas das vitórias da luta antirracista no Brasil, coexistem com o aumento estrondoso da população carcerária, em sua maioria negra. “Para cada um graduado, 1.000 encarcerados”. Eis aí o perverso passado-presente que nos acompanha e com o qual temos de lidar diariamente, construindo nossas próprias respostas para problemas criados pela supremacia branca do Brasil.

As mobilizações protagonizadas por universitários negros para a implementação das cotas raciais na Unicamp e a recente implementação das ações afirmativas para negros, indígenas e portadores de necessidades especiais no Mestrado Profissional de História da UFRJ fazem parte deste repertório de respostas que “bagunçam os lugares da mesa”, na expressão certeira da estudante de História Taina Santos.

Ao mesmo tempo em que denunciamos as mazelas que o racismo nos impõe, faz parte do nosso processo de cura enquanto comunidade negra praticar a ação afirmativa de contar, celebrar e narrar nossas conquistas com amor e poesia. Praticando este exercício, registro emocionada a beleza da Ocupação Conceição Evaristo, uma exposição em homenagem à história e obra da autora mineira, que fica em exibição até 17 de junho no Espaço Itaú Cultural, em São Paulo.

Folder Ocupação Conceição Evaristo

Ao ser entrevistada pela filósofa e intelectual pública Djamila Ribeiro, a vencedora do Prêmio Jabuti com Olhos d’água, ensina-nos sobre o poder das narrativas negras: “nossa fala estilhaça a máscara do silêncio”.

São estes estilhaços que transformam a solidão vivida por Conceição Evaristo, Lima Barreto, Hilton Cobra e tantos outros intelectuais negros que dedicam seu trabalho à construção de projetos coletivos para a comunidade negra, que fortalecem a “pretessência” de humanidade e liberdade que nos constitui como comunidade desde a travessia.

E sem perder o compromisso político de fazer lembrar que as Mulheres Negras somos as condutoras deste bonde, neste 13 de maio vai meu salve a Conceição Evaristo, mãe de Iná e a Marilda Moura, mãe de Ana Liz, que vem a ser mãe de Herman. Ana Liz é uma poetisa e decoradora presa injustamente desde 2015 aguardando julgamento por um crime que não cometeu. Recentemente, a jovem teve negado pela justiça brasileira o direito à prisão domiciliar para cuidar de seu menino. Aparentemente em posições extremas Conceição, Marilda, Ana Liz e todas Nós seguimos estilhaçando o racismo e o machismo que nos subalterniza.

Em busca de nossas próprias versões da história, deixemo-nos contaminar pela linda poesia do poeta e historiador Duan Kissonde. Afinal, não se espantem, pois, o Rio Grande do Sul é terra de “Pretessência”:

Preta a essência que busco

Batuco no lusco-fusco

Do meu próprio ser

Lapido, ancestralizo,

Estudo e questiono

Com muita paciência

Mas jamais abandono

A minha pretessência!

Estamos de pé

Ana Flávia Magalhães Pinto

Muitos são os motivos que me levam a nutrir uma sintonia especial com o mês de maio. Por força da simbologia atribuída a datas diferentes e próximas, este é um daqueles momentos do ano em que, quase que simultaneamente, sou chamada atenção para aspectos dos mais centrais da vida humana, pelo menos tal como a vejo. Dia do Trabalhador, Dia da Língua Portuguesa para a Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), Dia das Mães e Dia da Abolição da Escravidão no Brasil/Dia Nacional da Denúncia contra o Racismo. Liberdade, família, afeto, direitos, cidadania, língua e identidade… Essas datas comemorativas, em particular, ganham importância por serem ocasiões para a avaliação dos resultados obtidos nas disputas de narrativas que têm sido travadas em torno do apagamento e/ou do reconhecimento de pessoas e grupos na história do Brasil, com destaque para as possibilidades de valorização e respeito do vivido por africanas/os e suas/seus descendentes neste país.

Foto da Missa Campal

Infelizmente, o obtido ontem pode não valer para hoje e menos ainda está garantido amanhã. Há dez anos, as Casas Bahia fizeram muita gente se emocionar diante da televisão com um comercial em que no mês da abolição uma mulher negra foi apresentada como a representação de aspectos dos mais bonitos da maternidade em sentido amplo. Ganhe um minuto do dia, assistindo novamente ao vídeo. Neste ano, porém, além de não dialogar com os debates sobre representatividade num país de maioria negra, o que a rede de varejo de móveis e eletrodomésticos nos oferece é a figura de Dona Hermínia, personagem de Paulo Gustavo, que diverte por seus arroubos de violência e descontrole no trato com os filhos e pessoas próximas. Tudo bem que nenhuma mãe ou mulher é obrigada a ser um anjo de candura, mas representações dessa natureza favorecem que tipo de entendimento sobre nós mulheres e que qualidade de relações entre outras mulheres numa sociedade desigual?

A propósito, outro ponto que tem mexido muito com a gente é a questão do trabalho. As reformas forçadas pelo governo que assumiu o poder após o golpe no ano passado têm mobilizado temores sobre “retornos do cativeiro” ou atualizações mais perversas da abolição que indiscutivelmente foi capenga, mesmo que não por falta de empenho e luta promovida por pessoas negras livres, libertas e escravizadas – é bom dizer. A despeito de como entendamos a conexão entre passado e presente, a dificuldade de assumir e enfrentar o modo como o racismo tem operado de modo decisivo na definição e na preservação de direitos e deveres no Brasil tem feito com que muitos setores da sociedade recorram às imagens da escravidão mais como alegoria do que como algo concreto. Talvez seja isso que esteja irritando muitos/as pensadores/as negros/as dos quatros cantos, uma vez que não é de agora que denunciam as continuidades da lógica escravista.

Usemos de franqueza, essa deformidade histórica está na raiz do porquê a agenda da luta contra o racismo (e pela liberdade do jovem negro Rafael Braga – cuja mãe, Adriana Braga, está hoje passando de coração apertado por ele ter sido injustamente condenado a 11 anos de prisão) não tenha se tornado uma prioridade inegociável para setores da esquerda hegemônica, nem tenha tido destaque nas manifestações da Greve Geral do 28 de abril e do 1º de Maio, exceto pelas intervenções de grupos negros, a exemplo da Frente Alternativa Preta em São Paulo (Assista ao vídeo). Há um problema, muita gente sabe e até admite, mas boa parte dessa muita gente ainda não sabe o que fazer, porque enfrentar significa assumir suas próprias inabilidades. A prisão arbitrária de Luciano Firmino, Ricardo Santos e Juraci Santos, por uma semana, não deixa dúvida do alcance da vulnerabilidade de que estamos falando.

Seja como for, certo é que maio marca muitos tempos de luta que se encontram no presente e projetam futuros. Outro dia desta semana, enquanto desfrutava da qualidade do Café Épico, estabelecimento localizado na Lapa carioca, de propriedade de um casal negro, me peguei pensando em como uma música de Nei Lopes e Wilson Moreira dá conta desse meu apego por este mês e tudo o que ele representa, a depender de como nos relacionamos com seus significados.  O Jongo do Irmão Café começa assim: “Auê, meu irmão café! / Auê, meu irmão café! / Mesmo usados, moídos, pilados, / vendidos, trocados, estamos de pé: / Olha nós aí, meu irmão café!”. Para ouvir o resto, é só dar mais um clique aqui.

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O Medo do Espelho

O golpe parlamentar de 17 de abril de 2016, o dia da infâmia, completa um ano. Naquele dia, o show de horrores da câmara dos deputados, comandado pelo hoje condenado Eduardo Cunha, pela primeira vez expôs aos holofotes do mundo a hipocrisia secular e a putrefação ética atual da classe política brasileira. O triste espetáculo não foi suficiente para fazer surgir, no âmbito do poder judiciário ou da opinião pública, alguma iniciativa capaz de impedir a cassação ilegal dos 54 milhões de votos que elegeram a presidente Dilma Rousseff.

Formei-me historiadora em plena luta – vitoriosa – pela redemocratização do país que marcou a década de 1980. Chamada por economistas de “década perdida”, naqueles anos vi nascerem meus três filhos, movimentos sociais ainda fortemente ativos na cena pública, meu primeiro livro e a esperança de que a ainda que tardia implantação do sufrágio universal na experiência política brasileira, com a extensão do direito de voto aos analfabetos, era o condão que faltava para a consolidação de uma institucionalidade democrática no país. A medida me parecia antídoto eficaz para a velha tentação elitista e oligárquica do nosso ordenamento político, uma espécie de ethos estamental estruturante, nascido sob a égide da cultura patrimonialista e da instituição da escravidão. O que aconteceu no Brasil no outono passado abalou essa esperança. A cassação dos 54 milhões de votos que elegeram Dilma Rousseff por uma manobra parlamentar duvidosa, mas sancionada por agentes do judiciário pautados pelos holofotes de empresas de mídia decididas a derrubar a presidenta, foi algo além do que eu ousara imaginar nos meus piores pesadelos.

É irônico que o primeiro ano do golpe de 2016 seja celebrado ao som das repercussões da lista de Fachin e do vazamento das gravações das delações da Odebrecht. A metáfora da República dos Cupins para qualificar o governo de usurpadores que sucedeu a presidenta me foi inspirada pelo filme Aquarius, que estreou na mesma época,  e se mostrou praticamente profética.

No premiado filme de Kleber Mendonça Filho, o velho edifício Aquarius, onde se passa a história, é finalmente condenado à destruição por uma infestação de cupins criminosamente provocada. Como no filme, na crise atual não sabemos mais se será possível vencer a cultura política da hipocrisia mantendo de pé o edifício democrático. Na maioria das vezes em que setores expressivos da sociedade brasileira a combateram foi para abraçar projetos abertamente autoritários. E é a repetição da velha história que mais uma vez nos ameaça. A História, decididamente, não é a mestra da vida.

O tema da hipocrisia como cultura política brasileira foi uma das linhas de força que compuseram o livro Historiadores Pela Democracia: o golpe de 2016 e a força do passado, presente sobretudo em textos originalmente publicados aqui no blog e no tumblr historiadores pela democracia. O engajamento politico de historiadores do Brasil colonial e escravista na resistência contra o golpe parlamentar de 2016 se fez a partir de uma percepção clara do sentido reacionário, stricto sensu, de que se revestia a onda de ódio que dava substrato social aos eventos.

Ainda que haja um óbvio fundo factual na força dessas tradições, sempre me insurgi a fazer delas camisas de força insuperáveis, definidas pela gramática da incompletude ou da falta. Estaríamos, nós, brasileiros, condenados à conciliação das elites e à cultura dos privilégios, eternamente mal adaptados à modernidade democrática?  Há aí, do meu ponto de vista, toda uma história de conflitos, agências, atualizações e redefinições de tradições a serem mais bem compreendidas e narradas.

Não é surpresa para qualquer pessoa minimamente informada que as relações promíscuas entre empreiteiras e poder público no Brasil remontam aos anos 1950 e se aprofundaram durante a ditadura militar. A divulgação do depoimento de Emilio Odebrecht, apontando o que chamou de “demagogia” da “grande imprensa” brasileira, que teria conhecimento das práticas agora trazidas a público há pelo menos 30 anos, reforça uma vez mais a analogia do momento atual com a retomada do tráfico negreiro após a sua proibição formal pelo primeiro estado nacional brasileiro, em 1831. Apesar disso, não apenas as semelhanças, mas também as diferenças entre os dois contextos, merecem ser ressaltadas.

O artigo 179 da Constituição Monárquica de 1824 reconhecia amplamente os direitos civis de todos os brasileiros, revogava a tortura e o castigo infamante e todos os privilégios hereditários do antigo regime português. Os direitos políticos eram censitários assim como na ordem constitucional inglesa, estadunidense ou francesa do mesmo período. A escravidão ficava mantida como instituição histórica, em nome do direito de propriedade, mas o novo estado se comprometia a interromper o tráfico atlântico e os novos processos de escravização, como então acontecia na República escravista dos Estados Unidos, e também nos impérios coloniais (ainda escravistas) da França e da Inglaterra.  Na Constituição brasileira, mais generosa no que se refere à inclusão racial do que a de seus pares escravistas do Ocidente, à exceção da Inglaterra, os libertos não poderiam ser eleitos, mesmo tendo a renda exigida, mas não havia restrições formais aos direitos políticos de seus descendentes. Segundo os liberais da época, no Brasil havia apenas escravos ou cidadãos.

A lei de extinção do tráfico de 1831 não foi aprovada “para inglês ver”, como passou para a história. Muitos lutaram para que fosse implementada, especialmente setores urbanos integrantes da população livre dita “de cor”, maioria no país, que formavam entre os chamados liberais exaltados, grupos que enfatizavam a linguagem dos direitos na sua apropriação do liberalismo histórico.

Mas a lei de 1831 também se tornou alvo de um vigoroso processo de desobediência por parte de setores da classe senhorial que, em nome da liberdade de mercado, e de uma leitura utilitarista do liberalismo, sustentavam a expansão escravista da lavoura cafeeira, que rapidamente se tornaria a base da economia nacional, inserindo com sucesso o novo país no mercado capitalista global em expansão.

A retomada do tráfico atlântico foi o substrato econômico mais importante do movimento político conhecido como Regresso, que alcançou o poder em 1837.  Ainda assim, não conseguiram revogar a lei de 1831 (ainda que tentassem), optando por fechar os olhos para seu descumprimento. Como tenho reiteradamente repetido, a hipocrisia generalizada como política de estado nascia ali.

Também o racismo institucional brasileiro se definiria naquele contexto. Uma outra lei, de 1830, proibira a imigração de africanos livres, inaugurando – também pela via da hipocrisia – a institucionalização do racismo no país, que culminaria na prática de silenciar sobre a cor dos brasileiros livres nos documentos oficiais. O racismo à brasileira e a hipocrisia como tradição política têm origens comuns, se não são, a rigor, a mesma coisa.

O medo do espelho, o horror de olhar a própria imagem, como na famosa narrativa do livro O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, pode ser uma boa metáfora para a cultura da hipocrisia na política brasileira nascida junto com nosso primeiro estado nacional.

A lei que colocaria fim ao tráfico atlântico de escravizados, em 1850, sem revogar oficialmente a lei de 1831, o fez com o compromisso tácito das autoridades de manter o silêncio sobre a ilegalidade anterior. Depois dela, cerca de 750 mil africanos continuariam escravizados ilegalmente com a cumplicidade das autoridades imperiais.

Também o silêncio oficial sobre a cor da população livre inaugurado nessa mesma época mostrar-se-ia tradição duradoura na nossa história administrativa e um dos principais alicerces do nosso racismo institucional. A recente experiência democrática brasileira foi capaz, entretanto, de romper com ela, com a aprovação do estatuto da igualdade racial em 2010.

É possível vencer o medo do espelho como projeto político? Enquanto sociedade democrática, seremos capazes de olhar para nossa imagem no espelho, ficar horrorizados com ela, e ainda assim fazer a coisa certa: respeitar as regras do jogo e refundar o país em novas eleições diretas?

Com a divulgação da lista de Fachin, o “compromisso tácito de silêncio sobre a ilegalidade anterior”, que caracterizou o acordo para a aprovação da lei de 1850, pode não se atualizar em 2017.

Também a tentação autoritária – a outra forma frequentemente assumida pelo silêncio/hipocrisia brasileiros  – pode não se apresentar como sina?

As culturas de ódio e os perigos da “logaritimização” do debate político, com suas bolhas de comunicação determinadas pelo funcionamento das novas redes sociais, são riscos globais. Ainda assim, o processo de urbanização, a massificação do acesso ao letramento e à cultura audiovisual e mais de 30 anos de experiência democrática construíram um espaço de debate público no Brasil do século 21 de dimensões incomparáveis com as que prevaleceram nos séculos 19 e 20. As virtudes da experiência democrática iniciada em 1988 são incomparavelmente maiores do que os limites éticos do presidencialismo de coalizão, de profundas raízes na tradição política brasileira. São essas virtudes que podem ter tornado os antigos vícios, finalmente, intoleráveis.

Somos hoje uma sociedade culturalmente plural e fragmentada por diferenças políticas que dificilmente serão bem compreendidas se continuarem a ser lidas de forma binária ou maniqueísta.

Novos e velhos atores políticos nem sempre se entendem e veem estupefatos práticas ilegais antes silenciadas serem expostas à luz do dia.

No momento em que finalizo este texto, entretanto, a cultura política da hipocrisia continua a processar seletivamente a difusão de novas informações e a tentar impor aspas ao golpe parlamentar de 2016.

Como de hábito, os mortos assombram os vivos.

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