Alguns trechos da resenha do antropólogo Luis Nicolau Parés para a Caixa de DVDs Passados Presentes (AfroAsia 49).
No campo da historiografia do negro no Brasil, a transição da escravidão para a emancipação e o período pós-Abolição talvez sejam das áreas que mais vitalidade adquiriram na última década. Uma expressão dessa tendência é a coletânea Passados presentes, uma série de quatro documentários sobre as trajetórias, memórias e práticas culturais dos descendentes dos escravizados na região da antiga província do Rio de Janeiro. Os quatro filmes, intitulados Memórias do cativeiro: família, trabalho e cidadania no pós-Abolição (2005), Jongos, calangos e folias: música negra, memória e poesia (2007), Versos e Cacetes: o jogo do pau na cultura afro-fluminense (2009) e Passados presentes: memória negra no sul fluminense (2011), foram produzidos pelo Laboratório de História Oral e Imagem da Universidade Federal Fluminense (LABHOI/UFF), sob a direção geral das historiadoras Hebe Mattos e Martha Abreu.
Lançada em 2012, a coletânea reúne trabalhos produzidos ao longo de mais de seis anos, a partir do acervo audiovisual do LABHOI, que hoje conta com cerca de 300 horas de gravações. O primeiro filme, Memórias do cativeiro, utiliza, entre outros, registros de entrevistas com descendentes de escravos africanos gravadas em São Paulo, em 1987, e no Rio de Janeiro e Espírito Santo nos anos de 1994 e 1995. Porém, o conteúdo substancial da série está baseado em registros videográficos mais recentes, produzidos, na sua maioria, na primeira década deste século, no estado do Rio de Janeiro, e constitutivos do Acervo UFF Petrobrás Cultural – Memória e Música Negra, principal base documental da série.
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Para além [do] foco na política da memória, consoante com o espírito do LABHOI, a coletânea é inovadora na sua tentativa de desenvolver formas de narrativa historiográfica a partir de uma escrita audiovisual.
Como os quatro documentários têm por base o mesmo acervo documental, várias personagens aparecem de forma reiterada, conferindo ao conjunto uma relativa unidade. Por exemplo, o entranhável senhor Manoel Seabra, nascido em 1919, liderança da comunidade da antiga Fazenda São José da Serra, no município de Valença, no Vale do Paraíba — hoje Quilombo de São José — aparece, no primeiro filme, rememorando seus ancestrais africanos, vindos da Bahia; no segundo, dançando o jongo; e, no terceiro, praticando o jogo do pau. O senhor Manuel Morais, líder da comunidade do Quilombo de Santa Rita do Bracuí, aparece também em diversos momentos. Assim, embora os documentários tenham sua autonomia, acabam por oferecer uma visão multifacetada e polifônica de uma mesma realidade sociocultural.
Como se sabe, a presença contemporânea de famílias afrodescendentes na região sudeste do estado do Rio de Janeiro é, em grande medida, resultado histórico do recrutamento massivo de mão de obra escravizada, em meados do século XIX, para satisfazer a demanda da economia do café. No Vale do Paraíba, concretamente, nesse período, os africanos chegaram a constituir 90% da população. As falas, recordações, práticas culturais e ação política dos descendentes desses escravizados são o alvo prioritário de reflexão historiográfica da coletânea em questão.
[confira a resenha integral, com abordagem em separado de cada um dos filmes]
… A estrutura narrativa, nos dois primeiros filmes, impõe a cronologia linear do tempo historiográfico, partindo da África, passando pelo cativeiro, a Abolição, até o presente. Porém, o tempo da memória negra não acompanha necessariamente essa linearidade, ao contrário, funciona como uma reverberação que se move em múltiplas direções e sentidos. Trata-se de uma memória de luzes e sombras, de silêncios, de interrupções e vazios. Há uma consciência da perda, com a insistência na ideia de que os velhos não falavam, não passavam para os mais novos, mas também uma tenaz reconstrução da cadeia de transmissão: meu pai contava, meu pai me falou, os antigos contavam… O registro videográfico tem a capacidade de mostrar esse esforço vacilante da recordação, ora com o trunfo impiedoso do esquecimento que submerge, ora com a vitória da lembrança que, puxando o fio do primeiro verso, traz o seguinte e, no final, a cantiga toda reemerge. O maior desafio da escrita videográfica seria construir uma narrativa que evocasse ou refletisse a dinâmica errática e imprevisível dessa memória espectral.
Refletindo sobre a memória da escravidão em Serra Leoa, Rosalind Shaw distingue entre a memória discursiva, expressa por meio das falas, e a memória prática, que se perpetua inscrita nos comportamentos, nos gestos, nas danças e nos rituais. Se o primeiro e o último documentários lidam, predominantemente, com a voz dos entrevistados e, portanto, com a memória discursiva, o segundo, Jongos, calangos, e folias, embora continue a privilegiar o busto falante, focaliza também o papel da palavra no contexto ritual, apresentando, assim, um caso de articulação desses dois tipos de memória. Já o terceiro filme, com seu foco no jogo do pau, abriria espaço para uma reflexão sobre o papel do corpo na experiência da dança e do ritual e, portanto, para as formas de memória prática. Porém, como já foi dito, a performance ritual recebe uma atenção discreta no documentário. A possibilidade do “dar a ver” ao espectador, própria do filme etnográfico, é aqui minimizada em favor do “dar a ouvir”, ou seu correlato, o “dar a voz”.
Os quatro filmes combinam de forma proporcionada o primeiro plano das vozes afrodescendentes com a informação contextual fornecida por cartazes, voz em off e, sobretudo, o diálogo e contraponto dos comentários dos historiadores e pesquisadores. Nesse sentido, cabe destacar o seleto grupo de consultores com que o projeto contou e a participação de vários bolsistas de produção científica. Porém, o espaço conferido à reflexividade, ou seja, à visibilidade dos produtores do filme no próprio filme, é pouco. Só na metade do primeiro filme se escuta, brevemente, a voz dos entrevistadores, e nos créditos aparecem imagens dos cineastas. O segundo filme incorpora entrevistas com historiadores, e aparecem tangencialmente imagens das diretoras do filme. No terceiro, a voz do entrevistador é mais audível, e Assunção interage com os entrevistados, inclusive se engajando com eles no jogo do pau. No quarto filme, as diretoras Mattos e Abreu aparecem brevemente e, talvez num dos momentos mais etnográficos da coletânea, Geraldo Romão, membro da comunidade do Bracuí, acompanha a equipe de filmagem, apresentando o quilombo e visitando o antigo engenho da fazenda. Essa sequência registra a interação entre filmmakers e filmado e, nela, o filmado é quem dirige e comanda a cena.
Concluindo, cabe destacar o valor historiográfico e o interesse didático de uma coletânea que deve contribuir de forma significativa para a difusão e valorização da memória e do patrimônio cultural dos afrodescendentes nas salas de aulas, tanto do ensino secundário, no contexto das diretrizes nacionais para o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, como no ensino superior. Nesse sentido, vale lembrar a riqueza dos “Extras” dos DVDs, com registros documentais de performances rituais, informações sobre as regiões visitadas e sobre os participantes do filme, assim como entrevistas com pesquisadores e referências de documentos históricos. Junto à seriedade historiográfica e a sua vocação didática, Passados presentes apresenta um elevado índice militante, com uma aguçada consciência do papel que a representação do passado e a representação da memória têm na política do presente e na luta pelos direitos de cidadania das populações afrodescendentes. A rica polifonia de vozes desses documentários, aliada à persuasão comunicativa inerente à linguagem cinematográfica, capaz de atingir um público amplo e variado, com certeza deverá contribuir para essa reafirmação política e cultural.
Sensacional..tudo o que preciso e estudo. Obrigado Mestras!