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“A congada é algo grande, é ancestral, é resistência”

O Conversa de Historiadoras desta semana apresenta três textos sobre as especiais Festas que, através das redes sociais, conectaram o espaço, o tempo e os congadeiros em Piedade do Rio Grande, Minas Gerais, no final de maio. Os textos são fruto de uma forte parceria entre duas historiadoras e um historiador – sendo esse também congadeiro. E as fotos são do Paulo Henrique da Silva Ribeiro, também historiador e atual secretário de Cultura de Piedade. Vida longa às festas negras!

OS SONS DE MAIO: FESTAS DE CONGADAS, PANDEMIA E RESISTÊNCIAS NEGRAS EM MINAS GERAIS

Simone de Assis

Francival Araújo de Sousa

Lívia Monteiro

 

Para quem acompanha, organiza e gosta das festas negras no Brasil, o calendário é concorrido. De janeiro a janeiro, praticamente em todos os meses e por todos os cantos do país, os festejos tomam as ruas das cidades. Devocionais, tradicionais, patrimonializados, disputados e tão diversos que conceitualizá-los foi, por muito tempo, sinônimo de imprecisão. Se, no passado, os batuques foram perseguidos e criminalizados, atualmente, muitas festas negras tornaram-se patrimônios imateriais embora ainda lutem por reconhecimento e valorização.

Em Minas Gerais, as Congadas, Congados ou Reinados coroam os reis e rainhas negros desde o período colonial. Com raízes africanas, especialmente de origem bantu, tornaram-se elos de rememoração no presente das lembranças, dores e resistências da diáspora dos povos escravizados para o Brasil. Intensas e dinâmicas, as festas do Congo – como também são conhecidas – acontecem em praticamente todo estado de Minas e, em função da pandemia do covid-19, muitas celebrações foram canceladas.

Porém, o batido da caixa congadeira-moçambiqueira, com as fitas coloridas e a leveza que impera nos ternos de Congada e Moçambique de Piedade do Rio Grande, campos das vertentes do estado de Minas Gerais, fez a cidade despertar para as alegrias que as festas proporcionam, mesmo com o distanciamento social imposto. O alvorecer no último sábado do mês de maio foi de esperança para quem estava em suas casas, em confinamento há quase três meses. A surpresa proporcionada produziu choro, vídeos nas redes sociais, mensagens de whatsapp e emoções que nenhum texto/imagem/vídeo é capaz de dar conta. Os congadeiros-moçambiqueiros produziram encontros e afirmaram que os sentidos dos afetos estão na possibilidade de mantê-los em nossas memórias e nas lembranças que queremos manter vivas.

Foi pensando nesses encontros, que decidimos escrever coletivamente esse texto. Nossos relatos – apresentados individualmente – tentam narrar as experiências vividas, os olhares distintos e as percepções causadas pela festa da Congada e Moçambique de Piedade do Rio Grande, em plena pandemia do covid-19, a partir dos nossos lugares de fala, como Djamila Ribeiro nos ensina. Reunimos virtualmente nossos esforços para fazer dessa escrita um espaço de diálogo regado a muita emoção. Escrevemos o que vivemos e sentimos.

Tradição congadeira-moçambiqueira: Festa de Maio de 2020 – Piedade do Rio Grande

Simone de Assis é mulher preta, graduada e mestranda em História pela Universidade Federal de São João del-Rei – UFSJ.

#FicaEmCasaSePuder, essa é a hashtag que circula no Brasil e no mundo nos últimos meses, desde o grande boom da pandemia do novo coronavírus, covid-19. Ok! As cidades de Minas Gerais, assim como outras, estão tentando cumprir os procedimentos de isolamento social e seguir os parâmetros da Organização Mundial da Saúde, em meio à experiência de muitas crises (sanitárias, econômicas, políticas, sociais, emocionais etc.) que a circunstância, atípica, tem gerado.

Março, abril, maio, há três meses vivemos em quarentena. Sobreviver, essa é a meta. Por isso o cuidado com as práticas de resguardo à saúde. Um respiro profundo. Maio. Estávamos no mês de maio. Tempo que evoca memórias do povo negro. Memórias de abolicionistas como Maria Firmina dos Reis, André Rebouças e muitos outro(a)s que influenciaram para que o marco legal da abolição, 13 de maio de 1888, acontecesse. No cenário cultural e religioso mineiro, ligado às memórias do atlântico negro, maio também evoca os batuques das Congadas. É tempo de festejar. Seria tempo de festejar. Com a pandemia, que sublinha o fosso social do pós-abolição, não há o que festejar. Outro respiro profundo e uma pergunta latente: se o sobreviver aniquila o próprio viver do povo preto, do que adianta ser?

Questionamento visceral. Foi necessário cautela, conectar a força, a sabedoria e a estratégia ancestral dos congadeiros de outrora para encontrar caminhos e repostas. Dessa forma, aquietar as inquietações do tempo presente e, assim, deixar viva a Festa de maio da Congada e Moçambique de Piedade do Rio Grande/MG no ano de 2020. Além do coronavírus, a insegurança e o estranhamento com a presença do novo padre da paróquia, Jorge Wilson. “Abriria, ele, as portas da Igreja?” “Compreenderia a missa afro realizada anualmente no contexto da Festa?” “Seria parceiro da tradição cultural e religiosa?”

Ao completar 92 anos de tradição, a Festa de maio não poderia ficar no esquecimento. Nem na dúvida do que representa perante os espaços reivindicados e conquistados em disputas territoriais anteriores. Foi com o ímpeto dos anciãos, também de maneira responsiva, que os congadeiros-moçambiqueiros se reinventaram para cumprir os ritos do Rosário de 2020. Entre conversas e negociações, o primeiro passo foi conseguir agendar a Missa Afro Moçambiqueira para a noite de sábado, 30 de maio, no santuário da cidade. Uma missa com a presença reduzida dos integrantes do terno e que seria transmitida ao vivo pela página do Facebook, Paróquia Nossa Senhora da Piedade – Pascom –  e rádio Alto Rio Grande FM.

Apesar da missa agendada, a cidade  estava triste, pois o festejo da Congada-Moçambique também se dá nas vias públicas, ao som dos tambores e guizos que percorrem as praças, bairros e ruas de toda Piedade/MG. Como eu estava em São João del-Rei/MG, acompanhava atônita às postagens do Facebook do grupo, de amigos pertencentes ao terno, professora(e)s e conhecido(a)s que se conectavam à Festa. Era notório: um lamento pairava no ar. O afeto, que tentava amenizar a situação, se fazia visível nos detalhes alimentados pelas redes sociais, como a postagem de fotografias, vídeos, músicas e memórias das comemorações vivenciadas no passado. Eram pequenas formas de se preencher o vazio.

Sexta-feira, 29 de maio, 23:49h, recebo a informação sigilosa, via WhatsApp, de que congadeiros, em pequeno número de integrantes, fariam uma alvorada às 5h na manhã do dia seguinte. O ato seria registrado por uma live transmitida pela página das redes sociais da paróquia. Vibrei de alegria! A parceria com o novo padre estava totalmente firmada e tudo seria arquivado para evidenciar que os cuidados como utilização de máscaras e distanciamento entre os participantes seriam cumpridos. Mais ainda, a filmagem ao vivo garantiria que a Festa chegasse a todos os cantos do mundo e aplacasse o coração daqueles que não poderiam estar no evento. Para muitos, é o ápice do ano. Por outro lado, o coração gelou de medo pela responsabilidade que os congadeiros escolheram assumir com a alvorada-manifestação no momento pandêmico. Mas entendi que a resistência cidadã de uma tradição de 92 anos não poderia falhar. Ademais, diante da realidade brasileira que a cada dia registra inúmeros casos de racismo, fascismo e apoia a necropolítica, entendi que a alvorada era a resposta da luta antirracista e a afirmação da existência dos congadeiros.

Acordei de madrugada, no momento da alvorada, para acompanhar pelo celular a surpresa e o acontecimento que a Congada faria para a cidade em tempo real. Assim como eu, sei que muitas pessoas da minha rede de amizades gostariam de estar lá, com toda adrenalina que a Festa é e representa. Mas não sendo possível, a tecnologia e mídia nos conectariam no espaço-tempo. Vi e ouvi, por meio da live , Piedade amanhecer ao som dos toques das caixas da Congada. Caminharam com a bandeira e santas (Nossa Senhora do Rosário e das Mercês) até a Igreja. Na porta entoaram o ponto: “seu padre abre a porta, que eu também quero entrar.” O padre lá estava, abriu as portas e os recebeu. Decoração e estamparia afro compunham o altar. Nos bancos da igreja, fotografias e chapéus dos congadeiros ausentes personificavam todos no recinto. Nas pilastras, fotos e banners de pessoas que foram importantes para a história da Festa, como reis, rainhas, princesas e toda corte Conga. Chorei nessa hora e me peguei pensando o quão difícil deve ter sido a deliberação da guarda, com mais de cem participantes, decidir apenas entre umas 15 pessoas para compor e realizar o ato da resistência congadeira-moçambiqueira. Na fé, amor e esperança, os ausentes faziam-se presentes, mas também por seus celulares e computadores que acompanhavam através da live e interagiam no espaço dos chats e comentários. Eu, espectadora devota da Festa, também estive lá através da tela do meu celular.

O ato não foi isolado. Manifestações congadeiras aconteceram em diferentes regiões de Minas Gerais, por todo mês de maio e foram registradas pelas mídias digitais dos respectivos grupos. Acompanhamos algumas delas:  Moçambique e Catopé Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, da cidade de São João del-Rei/MG  se reuniu no dia 13 de maio; o Congo Camisa Verde, de Ituiutaba/MG realizou sua alvorada no dia 17 de maio e abriu a live do III Seminário da Congada – NEPERE, NEABI Pontal, UFU. Em Cambuquira/MG, lideranças dos ternos Nossa Senhora do Rosário e São Benedito e da Irmandade Nossa Senhora do Rosário se reuniram na tarde do dia 31 de maio. Num mês em que representantes do governo vigente exaltam símbolos da supremacia branca e tecem críticas ao movimento negro, os batuques das Congadas fizeram ecoar a resistência negra por toda Minas Gerais. #VidasNegrasImportam #ACongadaResiste #NossosPassosVêmDeLonge.

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Alvorada Congadeira – Piedade do Rio Grande/MG. Maio de 2020.

Foto: Paulo Henrique da Silva Ribeiro

Breve relato de um Congadeiro e Moçambiqueiro de Nossa Senhora do Rosário/Mercês de Piedade do Rio Grande-MG sobre o ano de 2020

Francival Araújo de Sousa, homem preto. Graduando em História na Universidade Federal de São João del rei (UFSJ).  

Falar sobre Congados nos leva a pensar sobre memórias que vêm desde a escravidão colonial. Para mim é algo muito gratificante e importante, mas ao mesmo tempo, difícil. Separar o Francival estudante de História do Francival congadeiro e moçambiqueiro, é algo complicado. Nesse ano de 2020, isso se tornou nítido para mim.

Vejo a movimentação da Congada e me deparei, em especial esse ano, com o poder e a comoção que ela consegue tirar de toda população. Em particular dos indivíduos ligados ao movimento. São estas pessoas que vivem à mercê de um racismo velado e institucionalizado que só têm aquele momento de “protagonismo”. Não digo que ser protagonista seja importante, mas sim ser agente, de fato, de suas histórias. O espaço da festa é aquele em que os congadeiros podem simplesmente tirar suas armaduras e chorar. Uso aqui a palavra chorar pelo fato de negros e negras serem obrigados a demonstrar no dia-a-dia dessa sociedade que são fortes. Este choro é na realidade libertação. Lágrimas de dor, angústia e tristeza, mas simultaneamente lágrimas de alegria, leveza e esperança de que dias melhores virão.

Os piedenses que guardam na memória a alegria da Festa de maio, este ano se depararam com a pandemia, inibindo a festa para controle da proliferação da covid-19. Na lembrança de todos congadeiros e matriarcas antigas, nenhum tem recordação de uma ausência da Festa de maio. Uma festa tão longínqua, quase centenária, que nem uma guerra mundial conseguiu parar. Mas este ano não houve as excursões de entes queridos, que retornam à sua saudosa terra justamente para buscar um elo ancestral e cultural.

Ao som do primeiro foguete na madrugada de sexta é que a ficha cai e também é que a festa “acontece”. Este ano, portanto, foi diferente: sem ensaios aos domingos, sem a busca da lenha para a saudosa fogueira, sem tantas outras tradições importantes. O mês de maio de 2020 doeu. É difícil assimilar todo o caos, e mais complicado entender que não haveria a nossa união, nossa força, os nossos sorrisos na grande comemoração.

O som da caixa no sábado pela manhã trouxe toda a imensidão de sentimentos, no lugar em que dói e dá arrepios ao se escutar o repique. No coração e nos pensamentos tenho lembranças boas e outras nem tanto. Nós, dançarinos, sempre pensamos nas pessoas que no passado sofreram para manter essa tradição viva, cruzando o preconceito, a negação e a demonização de nossa religiosidade.

Este ano tivemos medo e preocupação com a vinda de um novo pároco, até porque é recente a nossa entrada na igreja. Mas resistimos! Dom José Eudes nos abençoou e parabenizou por tudo.  Padre Jorge demonstrou que pretende ajudar ainda mais a nossa festa, além de ter exposto falas importantes com a temática racial em suas celebrações.

Quando fazemos nosso cortejo, é hora de cantar e de expor todos os sentimentos que nos alegram e afligem. Este ano, senti um canto calado devido à proteção contra a covid-19. Com isto, veio em minha mente a imagem da escrava Anastácia. Como se fosse para calar a nossa voz. Lembrei também de um relato surpreendente, de um amigo da minha família, sobre a importância da festa como um ato de existência e sobrevivência dos negros e negras de Piedade do Rio Grande. Independentemente do que aconteça, a homenagem sempre deve acontecer. Esse é o único momento em que se une o religioso e o político no município, e nós pretos e pretas, podemos demonstrar tudo aquilo que nos afeta.

O ocorrido de 2020 foi algo atípico, mas surpreendentemente, nós reafirmamos a nossa existência, em meio a todo transtorno que a pandemia vem causando em nosso país, principalmente na comunidade negra. Ver e sentir tudo isso expõe toda a dimensão da Festa de maio de forma direta e, em particular, para todos os que vivem o Congado e o Moçambique. O “estar vivo” significa isso, por mais que tentem nos calar.  A congada é algo grande, é ancestral, é resistência.

Os ecos da resistência

Lívia Monteiro, mulher branca, doutora em História pela UFF, professora no curso de História da Universidade Federal de Alfenas

Voltei a ouvir o eco. O som da caixa tocada na manhã gelada do último sábado do mês de maio de 2020 ecoou o que meu coração queria ouvir. O som naquele silêncio imposto pela pandemia fez expurgar todos os sentidos dolorosos e difíceis que estamos vivendo. O medo, o distanciamento, o isolamento e as incertezas que a maior crise sanitária, política, econômica e social nos coloca ficaram em suspenso enquanto ouvíamos o som dos instrumentos festivos e as músicas cantadas pelas vozes congadeiras que, mesmo com as máscaras, nos embalaram nas memórias dos territórios negros mineiros ocupados há mais de trezentos anos.

Enquanto a cerração fria, na madrugada com geada e temperatura de 5º, cortava a cidade, outros sentidos da festa foram sendo demarcados. Ao buscar as imagens de Nossa Senhora das Mercês e Nossa Senhora do Rosário na igrejinha do Rosário para levá-las ao encontro da imagem de São Benedito, que já estava na matriz, o mito fundante que estrutura uma das narrativas congadeiras-moçambiqueiras em Piedade se refundou. A água benta jogada na porta da igreja pelo pároco também fez lembrar um dos rituais mais antigos da festa e os elementos simbólicos, tão importantes para toda a performance, estiveram presentes. A fogueira não foi acesa online, mas os fogos, que iluminaram a cidade após a missa, demarcaram no céu que a chama da vida continuava acesa.

A força do barulho dos guizos moçambiqueiros entrando na igreja matriz e o batido da caixa nos colocaram em presença e a festa aconteceu na intensidade que deveria ter. Renovadora e triste, a missa Afro, transmitida ao vivo pelo facebook e rádio local, gerou um misto de sentimentos. E, mais uma vez, os protagonistas da festa nos mostraram os caminhos de reinvenção das dores e lutas, em meio a tantas incertezas que o momento presente nos apresenta.

Os chapéus coloridos colocados sobre os bancos da igreja balançaram durante toda a missa e a presença congadeira-moçambiqueira também se fez presente neles. Ver as crianças batendo com as manguaras no chão, para marcar que aquele território também lhes pertence e encarando, com toda seriedade necessária, as câmeras de celulares que os filmava, promoveu mais que esperança, mas a concretude de que o amanhã vai seguir.

Quando a transmissão terminou e os moçambiqueiros não estavam mais online, houve a queima de fogos na porta da igreja, com os capitães cantando “se a morte não me matar, tamborim, se a terra não me comer, tamborim, ai ai ai, tamborim, para o ano eu voltarei, tamborim”. Algo indescritível. Todos os elementos da festa estiveram presentes. Fogo, água, círculos, encruzilhadas, o mito da santa, músicas, passos e as memórias da escravidão e da liberdade, cantadas e reatualizadas no tempo presente.

O controle da festa, do tempo festivo e das narrativas que vão de encontro ao fazer lembrar, mesmo que em apenas um dia, demonstraram que a relação dos congadeiros-moçambiqueiros com o espaço público e sagrado, de tomar as ruas da cidade por 92 anos consecutivos, se manteve presente em 2020.

Ao utilizar as conexões e usos tecnológicos para aproximar, os congadeiros-moçambiqueiros escolheram o que seria visto/divulgado e o que seria secreto/ guardado. O que mais foi mostrado foram as resistências em meio às dores e sofrimentos, pela ausência física de muitos que não estiveram ali, mas que se conectaram via rádio e internet para acompanhar os festejos.

As marcas do passado permanecem, a pandemia escancara ainda mais as desigualdades sociais e raciais, com o racismo brasileiro sendo ainda mais noticiado. Mas, as formas de resistir ganharam novos contornos e a festa aconteceu. Com choros, tristezas, surpresas, emoções, redes sociais, instantâneos e conectados. Nas ausências, nos silêncios e nos distanciamentos, outros sentidos foram produzidos pelos congadeiros-moçambiqueiros.

No mesmo fim de semana da festa em Piedade, os primeiros protestos antirracistas e antifascistas tomaram as ruas dos Estados Unidos, após a morte violenta de George Floyd. Conectados às pautas internacionais, os moçambiqueiros encerraram a Missa Afro cantando músicas entoadas pelos movimentos negros e cantores(as) negras, como o samba enredo da Tuiuti de 2018, questionando “meu Deus, meu Deus, está extinta a escravidão?” 

Como pesquisadora branca da festa há quase dez anos, tive que lidar com o medo do contágio – além de distribuir máscara e álcool em gel – para viver a experiência que transcende esse texto. Em maio de 2018, o Brasil vivia uma greve de caminhoneiros que não impediu a festa de acontecer. Em maio de 2020, uma pandemia também não impediu que a festa ocorresse. A força do Rosário não tem tese/texto/filme/ciência que explique. É apenas sentir a força da resistência, das lembranças e das importantes lutas antirracistas do tempo presente.

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Arquivado em antiracismo, cultura negra

Um mundo em uma foto*

O Conversa de Historiadoras desta semana tem a honra de publicar um depoimento de Ana Célia da Silva sobre uma foto histórica.  Ana Célia, Professora Doutora Aposentada da UNEB e militante do Movimento Negro é referência na área de educação antirracista, tendo publicado numerosos trabalhos e atuado de uma forma  fundamental na construção da Lei 10.639, que estabeleceu a obrigatoriedade do ensino sobre história e cultura afro-brasileira.  Neste texto, Ana Célia retorna a 1981 através de uma foto, quando, com outros militantes, buscava ampliar as dimensões da luta do movimento negro no Brasil.

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Foto de Juca Martins/Olhar Imagem. “Manifestação durante a reunião da SBPC, Salvador, BA, 1981”. Arquivo Edgard Leurenroth/Unicamp. A foto foi publicada pela primeira vez no jornal Voz da Unidade, em 1981. Em 2018, foi capa dos dois volumes de Cultura Negra, Novos Desafios Para os Historiadores, organizado por M. Abreu, G. Xavier, E. Brasil e L. Monteiro. Foi a historiadora Martha Abreu que fez chegá-la às mãos de João J. Reis e daí até Ana Célia

Uma foto: o Movimento Negro Unificado-BA e a Reunião da SBPC em 1981 em Salvador

Ana Célia da Silva

Professora Doutora Aposentada da UNEB

Militante do Movimento Negro 

Fui levada por Albérico Paiva, professor e militante da Pastoral Afro, a uma reunião do MNU, quando ainda era o Grupo Nêgo, em maio de 1978. As reuniões aconteciam na Praça Municipal de Salvador, no “Cemitério de Sucupira”, como apelidamos o jardim suspenso construído pela prefeitura no local onde se erguiam os prédios da Biblioteca Central do Estado e o Diário Oficial, destruídos por um incêndio.

Nessa primeira reunião do Grupo Nêgo, os militantes discutiram a participação em uma série de palestras que a prefeitura de Salvador iria promover durante a semana que antecedia o 13 de maio. Uma das palestrantes era uma militante do Rio de Janeiro, Lélia Gonzales. Participamos do seminário proposto pelo prefeito em exercício, Edivaldo Brito, que é negro, e aprofundamos relações com Lélia, que se tornaria uma espécie de madrinha do Movimento Negro Unificado na Bahia, fundado em 7 de junho de 1978. A fundação do MNU nacional aconteceria pouco tempo depois, em 18 de junho, em São Paulo. Para o ato enviamos como nossos representantes o dançarino Kal Santos e sua esposa, que hoje vivem na Itália. Levavam na bagagem uma carta na qual o Grupo Nêgo reconhecia e se integrava ao Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial – MNUCDR –, nome original do MNU.

Tudo isso aconteceu ainda durante a ditadura. Lembro-me que após o primeiro congresso do MNU em Salvador, realizado em 1980, os agentes do DOPS nos perseguiram pelos vários locais onde havíamos obtido licença para realizar o evento, a exemplo da Associação dos Funcionários Públicos, na rua Carlos Gomes. Finalmente, nos dirigimos ao  Goethe Institut (Instituto Brasil-Alemanha), território estrangeiro, localizado no corredor da Vitória, que nos acolheu.

No MNU-BA conheci os primeiros militantes e fundadores, Gilberto Leal e Leibe Carteado, geólogos, Astor, engenheiro civil, Edson Tosta Passarinho, um dos fundadores do Adé Dudu, primeiro Grupo de Trabalho para homossexuais negros do MNU, Luiz Alberto, operário da Petrobrás, que foi conduzido por nós por três mandatos consecutivos a Deputado Federal, Cao Santos, operário, Jane, psicóloga, Leninha, professora, Maria, Lino de Almeida e Manoel Almeida, sociólogos autodidatas, e muitos outros que vieram logo depois, inclusive Luiza Bairros, Wilson Santos, Adriana, Mary, a primeira mulher do movimento negro a usar os cabelos crespos naturais. Era manequim, como chamávamos na época as modelos, e muitos outros e outras cujos nomes não me ocorrem mais. (Desculpem, mas também não lembro os sobrenomes de alguns).

Três anos após a sua fundação, e um ano após seu primeiro congresso, o MNU realizou uma manifestação, dentro do campus da Universidade Federal da Bahia-UFBA, em Ondina, onde estava sendo realizada a Reunião Anual da SBPC, no período de 8 a 15 de julho de 1981.

Não lembro se o MNU tinha algum trabalho inscrito na Reunião, mas a questão racial não estava sendo discutida, especificamente, em nenhuma mesa ou grupo de trabalho. Então resolvemos levar esse debate nas diversas mesas e grupos dos quais participávamos como plateia. Nos intervalos, nos reunimos e decidimos organizar uma manifestação. Wilson Santos, um dos fundadores do primeiro grupo de homossexuais do MNU, o Adé Dudu, lembrou-me que houve um encontro de entidades negras presentes à Reunião da SBPC. Foi nessa reunião que decidimos realizar a passeata.  Convergimos para um local central do campus e, portando cartazes feitos de cartolina, iniciamos uma marcha gritando palavras de ordem. Tomados de surpresa, os participantes da SBPC nos olhavam entre curiosos e assustados. Participantes negros e pardos de outros estados começaram a aderir à marcha, seguidos por alguns brancos.

Tenho uma foto desse momento, que está perdida. Para minha grata surpresa, o historiador João José Reis me enviou outra foto daquele tempo, que é esta aqui apresentada. O fotógrafo é o talentoso Juca Martins, e quiçá seu arquivo guarda outras fotos, feitas sob outros ângulos, do mesmo evento. A foto se encontra publicada nas capas da obra, em dois volumes, intitulada Cultura Negra, festas carnavais e patrimônio negros (FAPERJ/EDUFF, 2018). Foi a historiadora Martha Abreu, uma das organizadoras desse livro, que fez chegá-la às mãos de João. Vamos à foto.

Entre outros temas registrados nos cartazes carregados pelos manifestantes naquele dia, no maior deles, à direita, pode-se ler, completando as palavras cortadas: “Memorial Zumbi. Parque histórico cultural. Por uma cultura de libertação”.  Outro dizia: “Por uma ciência a serviço dos trabalhadores e das etnias oprimidas”; outro ainda denunciava a folclorização da cultura negra; um terceiro denunciava a violência contra o negro, velho e persistente problema. Pelo menos dois cartazes demandavam uma releitura de nossa história: aquele que exigia “Uma revisão da história do Brasil”, outro que bradava “Pelo ensino da história e cultura negra”. E a figura de Zumbi se entrelaçava a esta reivindicação, tendo-se tornado patrono das lutas dos negros e negras brasileiras. Já então o movimento negro levantava a bandeira da introdução de nossa história e nossa cultura nos currículos escolares do Brasil, o que só viria a se concretizar pela Lei 10.639/03, portanto em 2003, 22 anos depois daquela passeata!

E agora, passo a descrever personagens retratados naquele histórico momento das lutas negras, pessoas que não devem ser esquecidas:

Lino de Almeida (1958-2006) sobressai na foto, usando uma camisa preta com letras brancas, onde se lê “ZUMBI: 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra.” E embaixo, “Movimento Negro Unificado”.  Ele então portava dreads bem curtos, que estavam começando a crescer e chegariam até a cintura. Piscava nervosamente, me olhava e sorria. Sociólogo autodidata, foi um dos fundadores do MNU-BA, e antes disso do Núcleo Cultural Afro Brasileiro.  Lino foi um dos militantes mais proeminente do MNU-BA. Tinha relações com o movimento negro americano. Era radialista e atuou no cenário audiovisual, realizou o documentário “A Bahia do Afoxé Filhos de Gandhi”, ganhador do prêmio Petrobrás Cultural. Introduziu vários textos de Malcom X e Marcus Garvey como leituras nos cursos de formação de quadros do MNU. No ano de 1986 participou do III Congresso Internacional da Tradição dos Orixás e Cultura, em Nova York, juntamente com Mãe Stella, o Ilê Aiyê, eu e várias pessoas da religião do Candomblé. Fez contato com os Panteras Negras e um deles, Stokely Carmichel (1941-1998), ele trouxe a Salvador.

Hamilton Bernardes Cardoso (1953-1999) aparece no lado esquerdo da foto, segurando cópias do manifesto que produzimos para distribuição. Nascido em Catanduva, SP, jornalista, militante do PT e muito reconhecido na sociedade. Foi casado com Dulce Pereira, militante também do PT e do MNU-SP. Tiveram dois filhos. Desfeito o casamento, soubemos que ele estava doente. Teve um fim trágico, suicidando-se por afogamento, no rio Tietê, em São Paulo. O MNU-BA prestou-lhe uma bela homenagem colocando uma coroa de flores no dique do Tororó, em Salvador.

Ismael Ivo está ao lado de Lino na foto, de calça branca curta, sem camisa. Ele iria brilhar como dançarino e coreógrafo nos palcos brasileiros e internacionais. Foi aliás na Bahia, dois anos após aquela passeata, que conheceu o coreógrafo afro-americano Alvin Ailey  – fundador do American Dance Theater  –, alavancando sua carreira internacional. Ismael viveu durante algum tempo em Salvador, onde frequentava as reuniões do MNU. Se apresentava junto com os demais dançarinos do grupo de teatro do MNU, formado por, além dele, Nadir Nóbrega, Tição, Kal Santos, entre outros.

Luiza Bairros (1953-2016). Do lado esquerdo da foto, logo atrás de uma garotinha, está Luiza, olhando para o lado. Ela se tornaria uma das mais importantes militantes e intelectuais negras brasileiros, tendo sido inclusive ministra da Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial-SEPIR, com status de ministério, durante o primeiro mandato de Dilma Rousseff, depois de ter ocupado cargo equivalente na Bahia, sob o governo de Jacques Wagner. Fundou, juntamente com outras militantes, o Grupo de Trabalho das mulheres do MNU. Dividiu a militância com uma carreira acadêmica que a levou a fazer um Mestrado em Sociologia na UFBA e a cursar o Doutorado na Michigan State University (EUA), também em Sociologia. Não chegou a concluir seu Doutorado, pois a militância falou mais alto. Foi companheira durante muitos anos do militante Jônatas Conceição da Silva, do GT de Educação do MNU.

Ana Celia. Eu mesma, logo atrás de Luiza, usava na ocasião uma calça preta e uma camisa branca com o retrato de Lélia Gonzales. Fundei, juntamente com Jônatas Conceição, Gildália Anjos, Carlos Menezes, entre outras, o Grupo de Trabalho de Educação Robson Silveira da Luz. A esse GT juntaram-se depois Lindinalva Barbosa, professora de Letras e Egbome do Terreiro do Cobre, Landê Anawale, Tata, poeta e escritor, e muitos outros.

Gilberto Leal. Atrás de mim, aquele rapaz alto de boina branca é Gilberto Leal. Ele foi um dos primeiros fundadores do Grupo Nêgo, precursor do MNU-BA. Tinha muita preocupação com o branqueamento das mulheres que vinham para a entidade. Lembro que quando eu cheguei, com os cabelos em transição, ele me sugeriu que retirasse o alisado e os deixasse crespos, que iria assim ficar ainda mais bonita. Gilberto passou a ser o arquivo ambulante do MNU. Nos reuníamos atrás da biblioteca Central, nos Barris, e aguardávamos a chegada de Gilberto, que sempre trazia uma bolsa grande cheia de artigos, panfletos, manifestos e mosquitos para distribuição nas noites das Terças-feiras da Benção, no Pelourinho. Se fosse preso não sei como explicaria a posse desse material. Gilberto esteve à frente da fundação do Conselho de Entidades Negras –  CONEN, do qual é um dos dirigentes.

Jônatas Conceição (1952-2009). Atrás de Gilberto, meu irmão, Jônatas Conceição, doutor em Literatura, poeta e radialista, de quem vemos apenas sua larga testa. Na época era recém-chegado de São Paulo, onde cursava o Mestrado em Literatura na UNICAMP, mas que veio a concluir na UFBA. Realizou diversas atividades no MNU, tanto no GT de Educação quanto em outras frentes, porque tínhamos dupla militância, a específica nos GT e a geral, que consistia na luta contra o racismo, em cursos de formação de quadros, participação em coordenações municipal, estadual e federal, passeatas, e junto a outras entidades. Como parte do GT de Educação, Jônatas orientou nossa participação na Escola Aberta do Calabar, no Maledebalê, no Ilê Aiyê, do qual era um dos diretores. Coordenou com Gildália Anjos cursos de alfabetização com mais de quarenta salas em bairros de Salvador. Um deles tinha o nome de Paulo Freire, ficava na igreja da Capelinha de Deus Menino, contava comigo e Luiza Bairros, e tinha ainda o Projeto Banca, desenvolvido por Gilda Nascimento na Escola Mãe Hilda, do Ilê Aiyê.

Muitas crianças participaram da passeata, pois era habitual o MNU trazer nossas crianças para os atos públicos. Infelizmente não consigo identificá-las. Algumas eram filhas e sobrinhas de militantes, e são hoje militantes negras nas diversas entidades existentes em Salvador. Eu espero que a divulgação desta foto faça com que elas se reconheçam e se apresentem.

Devo finalmente mencionar mais uma pessoa que participou daquela marcha, mas que não aparece na foto. Trata-se de Anilson, militante do PT dentro do MNU. Participava da luta antirracista, mas não lembro de ele ter participado de algum GT. Eu tenho uma foto de Anilson comigo na passeata. Ele está com o braço para cima, segurando um cartaz. Anilson teve uma morte súbita, saía de uma reunião do PT, foi acometido de  infarto fulminante, caiu na rua, morreu. Não consigo lembrar como foi seu funeral. Minha mente apaga memórias traumáticas.

E ficam assim registradas as lembranças, que esta foto me suscitou, de um momento histórico do Movimento Negro na Bahia. Um momento em que negras e negros bateram com força na porta da Ciência, gritando alto e bom som: nós também queremos entrar.

*Este texto contou com a colaboração do historiador João José Reis nas informações sobre os personagens e para a revisão final.

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SEGUNDO DOSSIÊ 13 DE MAIO

HEBE MATTOS, MARTHA ABREU, MONICA LIMA,  KEILA GRINBERG, GIOVANA XAVIER, ANA FLAVIA MAGALHÃES PINTO.

Sobre o 13 de maio (ou eles passarão)

Hebe Mattos

Em treze de maio de 1888, o primeiro e mais importante movimento social da história do Brasil celebrou sua maior vitória, a abolição legal da escravidão no país. A lei reconheceu formalmente a liberdade de cerca de 750 mil pessoas (em sua maioria ilegalmente escravizada desde 1831, quando foi aprovada a primeira lei de abolição do tráfico de cativos africanos) sem qualquer indenização a seus supostos proprietários.

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Foi uma revolução de veludo onde os últimos escravizados foram os grandes protagonistas. Desde 1885, um governo conservador formado por senhores escravistas reprimia violentamente o movimento abolicionista e as fugas de escravizados. Parecia não haver alternativa a não ser seguir o lento cronograma de indenização gradual dos senhores previsto em lei de 1885. Mas as fugas em massa se acentuaram em finais de 1887 e transformaram ruas, cidades e campos do país em território livre. A lei sancionou um fato consumado.

O que veio depois ficou muito aquém da esperança de abolicionistas e libertos nos dias de festas que se seguiram. A memória da abolição em poucos anos passou a ser celebrada de uma perspectiva senhorial, com sinhazinhas, mães pretas e uma princesa que “doava” a liberdade aos cativos.

Apenas após a constituição de 1988, exatos cem anos depois, o Estado nacional brasileiro começou a encarar e instituição da escravidão como um passado sensível. Afinal, as sociedades pós-escravistas se formaram alicerçadas em um crime contra a humanidade. O texto constitucional reconheceu, pela primeira vez, que o país era formado por populações racializadas, que conviviam, no dia a dia de todos, negros e brancos, com a atualização do estigma, do preconceito, da dor e da injustiça, abrindo a possibilidade de tentar reparar os danos do passado, atualizados no presente.

É a esperança que se renova com o movimento #fazendasemracismo que os grupos detentores do patrimônio imaterial negro do Rio de Janeiro e o ministério público federal estão encaminhando para repensar o turismo histórico nas antigas regiões cafeeiras do Vale do Paraíba. A história do sofrimento, das lutas e da cultura da última geração de africanos, sequestrados e escravizados ilegalmente no Brasil, precisa ser celebrada e conhecida de todos. Para que os seus descendentes tenham suas histórias e memórias reconhecidas, para que todos os que são vítimas do racismo possam ter sua dignidade restaurada, para que possamos todos os brasileiros olhar para o nosso passado de injustiça e buscar sua superação.

Neste 13 de maio, recordamos também o dia seguinte da posse do atual governo ilegítimo e a instauração do que chamei, inspirada no filme Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, de República dos Cupins.  No filme, o velho edifício na praia da Boa Viagem em Recife, onde se passa a história como uma metáfora para a República de 1988 no Brasil, é finalmente condenado à destruição por uma infestação de cupins criminosamente provocada.

Desde o golpe parlamentar do ano passado, o ataque aos direitos previstos na constituição de 1988 tem sido diuturno. Na atual reforma trabalhista, há mesmo quem tente tornar realidade o velho chiste de que de tão reacionários vão propor revogar a Lei Áurea. Neste 13 de maio de 2017, proponho nos inspirarmos na revolução de veludo iniciada pelos escravizados em 1887, para alimentar a esperança de que chegaremos a 2018, e à comemoração dos 130 anos da abolição, tendo restaurado o espírito cidadão da constituição de 1988 e o estado democrático de direito.

Ainda as festas do 13 de maio

Martha Abreu

Escrevo essas linhas, pensando na festa que deve estar acontecendo no Quilombo São José da Serra, nessa linda noite estrelada de 13 de maio, dia dos Pretos Velhos e do fim da escravidão no Brasil.

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Deve estar perto da hora da entrada do jongo de São José, impactante como sempre.  E já deve estar dando para ouvir  o ponto que, ao som de tambores, estremeceu o Vale do Paraíba naquele ano de 1888: “Tava dormindo angoma me chamou, Levanta povo que o cativeiro acabou”.

As festas do Quilombo de São José ganharam muita visibilidade nesses últimos 20 anos e fortaleceram não só a vitoriosa luta pela terra, como também a formação de centenas de jovens negros que cresceram ouvindo falar de suas histórias e duras vitórias.  No último sábado em Vassouras, ouvi de uma jovem professora negra o quanto estava emocionada por conhecer Toninho Canecão, líder do quilombo. Ela havia crescido com a importante referência dos quilombolas de São José na valorização da cultura negra e no combate ao racismo no Vale do café. Como o Quilombo de Manoel Congo no século XIX, o Quilombo de São José da Serra, no século XXI, é um marco para novas possibilidades de realização da igualdade e da justiça.

Ao lado de Toninho Canecão, e de outras lideranças dos movimentos negros, como Maria de Fátima Santos, de Pinheiral, assistimos  no sábado passado, dia 6 de maio,  a construção de uma dessas possibilidades com a assinatura do TAC (termo de ajuste de conduta) entre os representantes da Fazenda Santa Eufrásia, o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. O TAC propõe novas formas de visitação aos antigos casarões do café  e inicia o movimento #fazendasemracismo. Entre as estratégias, além de placas, vídeos e folders, que divulguem de forma completa e justa a história dos escravizados, as novas regras envolvem  compromissos com a  visibilidade de grupos culturais negros da região e com os locais de visitação construídos pelos seus próprios descendentes. Como destacou a professora Iolanda de Oliveira, da Faculdade de Educação da UFF, o TAC é um importante instrumento educativo de combate ao racismo em todo turismo de memória desenvolvido no velho Vale do Paraíba.

Felicidade guerreira *

                                                                                              Monica Lima

Nas experiências em salas de aula, no ensino de História, o que aconteceu com os cativos depois do 13 de maio de 1888 sempre se torna motivo de discussão. A imagem novelesca dos recém-libertos vagando pelas estradas, perdidos, abandonados, formando cortejos de retirantes, era e ainda é uma representação recorrente, forte. Com as referências de pesquisas recentes sobre o processo de emancipação e o pós-abolição tornou-se possível desconstruir essa visão e pensar em caminhos de muita luta e da criação de espaços de negociação conquistados, nos quais a permanência na terra também esteve presente. Certamente não foi nada simples, mas tampouco os escravizados estavam despreparados para enfrentar o mundo do trabalho e tudo o que o fim da escravidão significava.

E sim, não só no 13, mas no 14 de maio de 1888, como se sabe, houve festa, por que o fim da escravidão foi uma conquista e conquistas se festejam. A imagem da festa, menos presente na memória coletiva sobre o que veio a seguir da assinatura da lei, nos debates sobre a importância de recordar essa celebração foi equivocadamente associada a uma certa falta de consciência sobre o que haveria de vir. Afinal, isso é fato: não houve nenhuma política de inclusão da população negra que havia sido escravizada ou que descendia diretamente dos ex-cativos. Mas, em nada o festejar significava não compreender toda a dureza da situação – afinal, desde sempre, celebrar é ganhar força para viver e lutar.

Já nas comemorações dos cem anos da abolição em 1988, enredos das escolas de samba do Rio de Janeiro celebraram a data e em quase todos se pode observar como temas das letras dos belos sambas uma crítica à apologia da assinatura da lei pela Princesa e a presença da desigualdade racial e social. A Imperatriz Leopoldinense cantou “Me mandou uma princesa, que fingiu me libertar”; a Estação Primeira de Mangueira veio com “Livre do açoite da senzala, preso na miséria da favela”; “O Rio é negro, e o negro luta pelo Rio, buscando a liberdade, enfrentando o desafio”, disse o Império Serrano; e a Unidos de Vila Isabel trouxe a luta de Palmares influenciando a abolição, e o grito: “Valeu, Zumbi! ”.

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O que aconteceu no pós-abolição com a população negra e a presença das marcas da escravidão na mentalidade brasileira nos ajuda a entender como se imagina o imediato pós-13 de maio de 1888. O que não se pode recuperar facilmente é a centelha de esperança que deve ter existido naquelas pessoas e a sensação de que aquilo havia sido uma conquista, e de que se poderia avançar mais nessa estrada de liberdade. Como historiadora me dou a liberdade de imaginar, com certas referências, esses sentimentos nas pessoas, nos batuques, nas quebradas das cidades naquele então. E fico pensando se, junto com o olhar crítico, não devemos, frente ao avanço do retrocesso hoje, lembrar que só a luta traz essa alegria. E que dessa matéria também somos feitos, e nos fortalecemos.

13 de Maio em Sala de Aula

Keila Grinberg

Passei o 13 de Maio em Piraí, conversando com os alunos do curso de licenciatura em História a distancia da UNIRIO sobre o projeto Passados Presentes e a memória da escravidão. Foi emocionante estar ali, bem no meio do Vale do Paraíba fluminense, discutindo o ensino de uma História que não tem medo do passado e nem da luta contra o racismo no presente. Muitos foram de lá direto para o Quilombo de São José festejar. Eu voltei para casa orgulhosa por fazer parte do corpo docente de uma universidade pública que mantém um curso de qualidade agregando alunos do interior do Estado do Rio de Janeiro, pensado para quem não tem condições de deslocar-se até a capital. Afinal, desde 1888 se sabe que, sem investir em educação universal e pública, não conseguiremos deixar para trás as marcas da escravidão na sociedade brasileira.

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13 de Maio, espelhos estilhaçados e a busca da pretessência

Giovana Xavier

Qual o lugar da Lei Áurea na história do Brasil? Dádiva? Conquista? Quais as narrativas ao seu redor? Estas, de certa forma, são perguntas que têm mobilizado os movimentos sociais negros ao longo do tempo. Nos anos 1930, o jornalista negro José Correia Leite, editor do Clarim d´Alvorada, conclamava os “homens de cor” a lutarem pela “segunda abolição”, dado o estado de precariedade em que se encontrava a população negra em São Paulo e em todo o país. Saltando no tempo, chegamos aos anos 1970, quando o poeta e jornalista Oliveira e Silveira, assinalava, no Rio Grande do Sul, o 20 de novembro como o Dia da Consciência Negra. Esta proposição consagrou a data da morte de Zumbi dos Palmares como contraponto ao 13 de maio de 1888, trazendo para o centro da discussão a importância de enquanto negros e negras narrarmos nossas próprias histórias.

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(Foto: Marcha Contra o Racismo/1988, de Januário Garcia).

Embora, em termos práticos e jurídicos, a Lei Áurea tenha se traduzido na construção de um sentido de liberdade extremamente precário para a população negra, o fato é que o dia seguinte à sua assinatura, significou o fim de um Brasil organizado a partir das categorias dicotômicas do senhor e do escravo. Menos do que desaparecer, tais categorias foram ressignificadas na sociedade livre, que aprimorou políticas de racialização baseadas no estabelecimento de hierarquias entre negros e brancos. Ainda assim, a abolição representou a vitória de séculos de lutas e mobilizações negras individuais e coletivas em busca da liberdade. Como disse Lima Barreto “era como se o Brasil tivesse sido descoberto outra vez”. As palavras do autor, levado pelo pai ao Largo do Paço para festejar a abolição, em plena Sexta-Feira 13, “data áurea” em que o pequeno Lima completava 7 anos de meninice, mantêm-se vivas.

O monólogo Tragam-me a cabeça de Lima Barreto, estrelado pelo incrível ator Hilton Cobra, sob direção de Fernanda Júlia Onisajé do Núcleo de Teatro Brasileiro de Alagoinhas (NATA) e produção de Naira Silva Fernandes, criadora do Projeto Melanina Carioca, mostra o poder das palavras do escritor em desestabilizar o racismo e desarrumar a afirmação de que nada mudou.

Hilton Cobra - Tragam me a cabeçaO ator Hilton Cobra no monólogo “Tragam-me a cabeça de Lima Barreto”, no Teatro SESC Copacabana/RJ.

O “veneno do conhecimento”, injetado em gerações passadas e presentes de intelectuais negros como o próprio Cobra, diretor da Cia. dos Comuns, também chegou à FLIP 2017, no qual Lima será o grande homenageado. Estas contaminações reatualizam a importância de celebrarmos a abolição como uma conquista da população negra. Uma conquista dolorosa, que coexiste com muitas permanências, é bem verdade.

Em termos das permanências, devemos lembrar que a implementação das cotas raciais em universidades públicas, apresentadas como principal cartão de visitas das vitórias da luta antirracista no Brasil, coexistem com o aumento estrondoso da população carcerária, em sua maioria negra. “Para cada um graduado, 1.000 encarcerados”. Eis aí o perverso passado-presente que nos acompanha e com o qual temos de lidar diariamente, construindo nossas próprias respostas para problemas criados pela supremacia branca do Brasil.

As mobilizações protagonizadas por universitários negros para a implementação das cotas raciais na Unicamp e a recente implementação das ações afirmativas para negros, indígenas e portadores de necessidades especiais no Mestrado Profissional de História da UFRJ fazem parte deste repertório de respostas que “bagunçam os lugares da mesa”, na expressão certeira da estudante de História Taina Santos.

Ao mesmo tempo em que denunciamos as mazelas que o racismo nos impõe, faz parte do nosso processo de cura enquanto comunidade negra praticar a ação afirmativa de contar, celebrar e narrar nossas conquistas com amor e poesia. Praticando este exercício, registro emocionada a beleza da Ocupação Conceição Evaristo, uma exposição em homenagem à história e obra da autora mineira, que fica em exibição até 17 de junho no Espaço Itaú Cultural, em São Paulo.

Folder Ocupação Conceição Evaristo

Ao ser entrevistada pela filósofa e intelectual pública Djamila Ribeiro, a vencedora do Prêmio Jabuti com Olhos d’água, ensina-nos sobre o poder das narrativas negras: “nossa fala estilhaça a máscara do silêncio”.

São estes estilhaços que transformam a solidão vivida por Conceição Evaristo, Lima Barreto, Hilton Cobra e tantos outros intelectuais negros que dedicam seu trabalho à construção de projetos coletivos para a comunidade negra, que fortalecem a “pretessência” de humanidade e liberdade que nos constitui como comunidade desde a travessia.

E sem perder o compromisso político de fazer lembrar que as Mulheres Negras somos as condutoras deste bonde, neste 13 de maio vai meu salve a Conceição Evaristo, mãe de Iná e a Marilda Moura, mãe de Ana Liz, que vem a ser mãe de Herman. Ana Liz é uma poetisa e decoradora presa injustamente desde 2015 aguardando julgamento por um crime que não cometeu. Recentemente, a jovem teve negado pela justiça brasileira o direito à prisão domiciliar para cuidar de seu menino. Aparentemente em posições extremas Conceição, Marilda, Ana Liz e todas Nós seguimos estilhaçando o racismo e o machismo que nos subalterniza.

Em busca de nossas próprias versões da história, deixemo-nos contaminar pela linda poesia do poeta e historiador Duan Kissonde. Afinal, não se espantem, pois, o Rio Grande do Sul é terra de “Pretessência”:

Preta a essência que busco

Batuco no lusco-fusco

Do meu próprio ser

Lapido, ancestralizo,

Estudo e questiono

Com muita paciência

Mas jamais abandono

A minha pretessência!

Estamos de pé

Ana Flávia Magalhães Pinto

Muitos são os motivos que me levam a nutrir uma sintonia especial com o mês de maio. Por força da simbologia atribuída a datas diferentes e próximas, este é um daqueles momentos do ano em que, quase que simultaneamente, sou chamada atenção para aspectos dos mais centrais da vida humana, pelo menos tal como a vejo. Dia do Trabalhador, Dia da Língua Portuguesa para a Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), Dia das Mães e Dia da Abolição da Escravidão no Brasil/Dia Nacional da Denúncia contra o Racismo. Liberdade, família, afeto, direitos, cidadania, língua e identidade… Essas datas comemorativas, em particular, ganham importância por serem ocasiões para a avaliação dos resultados obtidos nas disputas de narrativas que têm sido travadas em torno do apagamento e/ou do reconhecimento de pessoas e grupos na história do Brasil, com destaque para as possibilidades de valorização e respeito do vivido por africanas/os e suas/seus descendentes neste país.

Foto da Missa Campal

Infelizmente, o obtido ontem pode não valer para hoje e menos ainda está garantido amanhã. Há dez anos, as Casas Bahia fizeram muita gente se emocionar diante da televisão com um comercial em que no mês da abolição uma mulher negra foi apresentada como a representação de aspectos dos mais bonitos da maternidade em sentido amplo. Ganhe um minuto do dia, assistindo novamente ao vídeo. Neste ano, porém, além de não dialogar com os debates sobre representatividade num país de maioria negra, o que a rede de varejo de móveis e eletrodomésticos nos oferece é a figura de Dona Hermínia, personagem de Paulo Gustavo, que diverte por seus arroubos de violência e descontrole no trato com os filhos e pessoas próximas. Tudo bem que nenhuma mãe ou mulher é obrigada a ser um anjo de candura, mas representações dessa natureza favorecem que tipo de entendimento sobre nós mulheres e que qualidade de relações entre outras mulheres numa sociedade desigual?

A propósito, outro ponto que tem mexido muito com a gente é a questão do trabalho. As reformas forçadas pelo governo que assumiu o poder após o golpe no ano passado têm mobilizado temores sobre “retornos do cativeiro” ou atualizações mais perversas da abolição que indiscutivelmente foi capenga, mesmo que não por falta de empenho e luta promovida por pessoas negras livres, libertas e escravizadas – é bom dizer. A despeito de como entendamos a conexão entre passado e presente, a dificuldade de assumir e enfrentar o modo como o racismo tem operado de modo decisivo na definição e na preservação de direitos e deveres no Brasil tem feito com que muitos setores da sociedade recorram às imagens da escravidão mais como alegoria do que como algo concreto. Talvez seja isso que esteja irritando muitos/as pensadores/as negros/as dos quatros cantos, uma vez que não é de agora que denunciam as continuidades da lógica escravista.

Usemos de franqueza, essa deformidade histórica está na raiz do porquê a agenda da luta contra o racismo (e pela liberdade do jovem negro Rafael Braga – cuja mãe, Adriana Braga, está hoje passando de coração apertado por ele ter sido injustamente condenado a 11 anos de prisão) não tenha se tornado uma prioridade inegociável para setores da esquerda hegemônica, nem tenha tido destaque nas manifestações da Greve Geral do 28 de abril e do 1º de Maio, exceto pelas intervenções de grupos negros, a exemplo da Frente Alternativa Preta em São Paulo (Assista ao vídeo). Há um problema, muita gente sabe e até admite, mas boa parte dessa muita gente ainda não sabe o que fazer, porque enfrentar significa assumir suas próprias inabilidades. A prisão arbitrária de Luciano Firmino, Ricardo Santos e Juraci Santos, por uma semana, não deixa dúvida do alcance da vulnerabilidade de que estamos falando.

Seja como for, certo é que maio marca muitos tempos de luta que se encontram no presente e projetam futuros. Outro dia desta semana, enquanto desfrutava da qualidade do Café Épico, estabelecimento localizado na Lapa carioca, de propriedade de um casal negro, me peguei pensando em como uma música de Nei Lopes e Wilson Moreira dá conta desse meu apego por este mês e tudo o que ele representa, a depender de como nos relacionamos com seus significados.  O Jongo do Irmão Café começa assim: “Auê, meu irmão café! / Auê, meu irmão café! / Mesmo usados, moídos, pilados, / vendidos, trocados, estamos de pé: / Olha nós aí, meu irmão café!”. Para ouvir o resto, é só dar mais um clique aqui.

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