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Os historiadores e a Presidenta (Carta Aberta à Dilma Rousseff)

Rio de Janeiro, 06 de maio de 2016

Querida Presidenta Dilma Rousseff,

Permita-me, por favor, chamá-la de querida. Eu tomo tal liberdade como cidadã indignada com o comportamento misógino de ampla maioria dos deputados da câmara baixa desse país, durante a vergonhosa votação da admissibilidade (sem qualquer base legal) do processo de seu impedimento do cargo de Presidente da República. Neste momento difícil, em que poucos ainda acreditam no espírito democrático da maioria dos senadores, escrevo-lhe, também, como historiadora profissional. Pesquisadora e professora de História do Brasil há mais de 30 anos, a partir da difícil vivência da atual crise política, venho renovando algumas das minhas antigas perguntas sobre o passado brasileiro. A angústia que experimento hoje, ao ver a democracia no Brasil mais uma vez ameaçada, me levou, sobretudo, a reavaliar a força da cultura do privilégio, de fundo patriarcal e escravocrata, no tempo presente da política brasileira.

Depois do dia 17 de abril, de triste memória, a direção da Associação Nacional de História fez uma nota oficial de repúdio à votação da admissibilidade do impeachment, lançando a palavra de ordem, “ditatura e tortura nunca mais“. Desde então, milhares de pesquisadores, no Brasil e no exterior, assinaram manifestos em defesa da democracia e do seu mandato. Apesar da divisão existente em toda a sociedade, com certeza a maior parte da comunidade dos historiadores e de cientistas sociais preocupados com a história percebe o impeachment em curso como uma tentativa de golpe de estado institucional. Muitos têm se manifestado, incansavelmente, em suas páginas nas redes sociais. Tania Bessone sugeriu que o 17 de abril fique instituído como dia da infâmia e data inicial do golpe. Nesta sexta feira triste, em que a Comissão Especial do Senado ratificou o espetáculo de horrores da câmara, achei, por bem, registrar em carta aberta, alguns argumentos históricos que têm sido publicamente enfatizados, em defesa da democracia .

Em primeiro lugar, há o forte argumento de que já estaríamos vivendo um estado de exceção, em que a cultura do ódio disseminada pelos meios de comunicação ocuparia papel central. A premissa é defendida por alguns cientistas sociais. Segundo o pesquisador Laymert Garcia dos Santos:

“Esse tipo de análise foi feito nos anos 20-30, com relação ao modo como foi desestabilizada a República de Weimar, na Alemanha, com a ascensão do nazismo. E foi durante a República de Weimar que a gente viu a implosão das instituições e uma desestabilização que deu, como resultado, o triunfo do enunciado “Viva a morte!” e a “Solução Final” do problema judeu. Uma das características importantes dessa implosão das instituições, nos anos 20-30, na Alemanha, é o modo como os juízes violavam a lei e a Constituição, e é ao que estamos assistindo aqui.”

Sem utilizar o conceito de estado de exceção, também eu, desde 2013, venho preocupada com a semelhança do que estamos vivendo no Brasil com o processo histórico de desqualificação dos governos formados por políticos abolicionistas e libertos, no Sul dos Estados Unidos, depois da guerra civil que aboliu a escravidão naquele país.

Nos Estados Unidos, o período conhecido como “Reconstrução Radical” (1865-1877) foi pioneiro em reconhecer direitos civis e políticos aos ex-escravos tornados livres com a guerra. No entanto, estes direitos retrocederam, devido à eficácia de um discurso construído a partir da manipulação seletiva de uma série de casos de corrupção, segundo o qual toda a ação política dos libertos e o idealismo dos radicais republicanos seriam uma simples fachada para a ação criminosa de um grupo de aventureiros corruptos, que enganavam ex-escravos desinformados. A predominância dessa narrativa resultou na hegemonia da Ku Klux Klan e em leis de segregação racial que durariam até a segunda metade do século XX.

Absolutamente trágicos como fenômenos sociais, os fantasmas do nazismo e da ku klux klan assombram o cotidiano da política brasileira.

O golpe em curso é também reação a mais de uma década de políticas sociais inclusivas. Neste sentido, são comuns, entre os historiadores, as analogias com o golpe de 1964 e outros ocorridos na América Latina da segunda metade do século 20. Como o historiador Rodrigo Patto Sá Motta, especialista no período, estamos, todos, infelizmente, surpresos de ver o Brasil, de novo, a beira do abismo. Mais que simples comparação, procedimento que em história nunca funciona muito bem, tais analogias oferecem uma base empírica para ajudar a pensar e a tentar entender o que está acontecendo hoje. Reproduzo aqui uma postagem recente em sua página pública no facebook, de Carlos Fico, também especialista no período, como exemplo desse exercício de compreensão. Segundo ele,

O golpe de Estado de 1964 teve etapa militar (com tanques dirigindo-se para o Rio de Janeiro no dia 31 de março), parlamentar (com declaração de vacância do cargo de presidente da República pelo Congresso Nacional na madrugada do dia 2 de abril) e jurídico-legal (com a posse do presidente da Câmara na Presidência da República, às 3h30min da manhã do mesmo dia). Essa posse foi sacramentada pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, Ribeiro da Costa, que foi acordado às pressas e concordou em participar da farsa (porque Goulart ainda estava no Brasil).

A simples enunciação dos fatos do passado ilumina os riscos e atropelos que vivemos no presente.

Por fim, muitos historiadores evocam períodos mais recuados da nossa história e vão buscar a raiz da crise atual na nossa formação colonial e escravocrata, que teria feito, da lógica do privilégio, base da cultura política brasileira. Considero, porém, e o faço na boa companhia de Sidney Chalhoub, professor na Universidade de Harvard e, como eu, historiador do século 19, que o problema de fundo da cultura política brasileira não é a lógica do privilégio em si, mas a sua manutenção envergonhada, sem a sustentação da moral aristocrática, a partir da independência política e da criação do estado nacional brasileiro.

Em texto denominado “homenagem do vício à virtude” procurei abordar o nascimento do problema. Após a independência, muitos lutaram para que a lei que proibia o tráfico de escravos fosse efetivamente implementada, mas ela se tornou alvo de um vigoroso processo de desobediência civil por parte dos grandes senhores de escravos, por fim consolidado no movimento político conhecido como Regresso, que alcançou o poder em 1837. A hipocrisia generalizada como política de estado nascia ali. Um relatório do Foreign Affairs de Londres relata mais de 4000 escravizados desembarcadas entre Copacabana e a Ilha Grande apenas em janeiro de 1838.  Como os corpos escravizados de africanos nas praias do Rio no século 19, a corrupção endêmica está aí aos olhos de todos, mas boa parte da sociedade brasileira insiste em ignorar. Evocando Machado de Assis e o mesmo período, Sidney Chalhoub escreveu um artigo cheio de ironia sobre a base social e a ideologia do golpe em curso, em que uma assembleia de acusados de corrupção, presidida por um réu, decretou a admissibilidade do impedimento de uma presidente eleita por 54 mihões de votos, contra a qual não há acusação. O texto imaginava historiadoras do futuro lendo o artigo da revista alemã Der Spiegel, de título “A Insurreição dos Hipócritas”, sobre a sessão da câmara baixa brasileira de 17 de abril. O rei está nu.

Querida Presidenta, entre os inúmeros historiadores e cientistas sociais que hoje lutam contra o golpe travestido de impeachment, muitos sempre foram críticos e mesmo opositores ao seu governo. Não é o meu caso. Nunca fui filiada a qualquer partido político, mas, hoje, posso dizer que me tornei “dilmista”, e acho que nós, os dilmistas, somos muito mais numerosos do que as pesquisas conseguem detectar. Fui sua eleitora por duas vezes, Presidenta, com entusiasmo, e, apesar das alianças difíceis, que hoje cobram um preço doloroso, não me decepcionei. Além da minha empatia histórica pela solidão dos governantes de esquerda moderada à frente de economias capitalistas em crise, nos últimos meses só tem crescido a minha admiração por sua coragem e apreço às instituições democráticas. Graças à serenidade e firmeza de sua atitude, entre os muitos cenários sombrios que a crise atual nos evoca, há um que pode ser positivo. A opinião pública internacional denuncia o golpe em curso e jovens secundaristas em luta por suas escolas, no Rio e em São Paulo, trazem esperança de renovação ao coração de todos os democratas. Toda a estrutura da velha corrupção endêmica está, pela primeira vez, de um só lado. A luta está no começo. Esta pode ser a crise terminal da cultura da hipocrisia na política brasileira. Se assim for, sua atitude à frente da Presidência da República terá sido essencial. Se assim não for, mesmo que eles consigam mais uma vez golpear a democracia e cassar o meu voto e o de mais 54 milhões de brasileiros, ainda assim, não tenho dúvidas, passarão à história como hipócritas, corruptos e golpistas. 

Com admiração,  Hebe Mattos

Professora Titular de História do Brasil/ Universidade Federal Fluminense

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O ódio como marca e a encruzilhada da democracia no Brasil

“Está tudo errado
É até difícil explicar
Mas do jeito que a coisa está indo
Já passou da hora do bicho pegar
Está tudo errado
Difícil entender também
Tem gente plantando o mal
Querendo colher o bem”
(Tá tudo errado, MC Júnior e Leonardo)

Ferrenho crítico da política de segurança pública vigente, MC Leonardo, da Apafunk, subiu no caminhão da Furacão 2000 na praia de Copacabana no domingo, 17 de abril, e se posicionou contra o golpe à democracia via tentativa de impeachment da presidenta da República, Dilma Rousseff. Para além de clássicos como o “Rap do Silva” e o “Rap da Felicidade”, consagrados nos anos 1990, a multidão presente no ato Funk Contra o Golpe foi embalada por letras mais recentes, que também politizam o cotidiano das favelas e periferias do Rio de Janeiro e do Brasil. Para a surpresa positiva de alguns, as falas dos mais de vinte funkeiros presentes mantinham fina sintonia e até semelhança com as de magistrados que pegaram o microfone para se posicionar a partir de lugares de classe, raça e também de gênero.

Funk contra o golpe

Dias antes, num dos vídeos de mobilização, Rômulo Costa, fundador da Furacão 2000, buscava fortalecer a legitimidade do ato divulgando o apoio do desembargador Siro Darlan, jurista contrário à redução da maioridade penal e defensor do fim dos autos de resistência. Por outro lado, a organização do evento, formada pela Frente Povo Sem Medo, Frente Brasil Popular e Federação de Associações de Favelas do Rio, valia-se de personalidades do funk para convocar sobretudo os moradores das comunidades próximas − Pavão-Pavãozinho, Cantagalo, Morro dos Cabritos, Ladeira dos Tabajaras, Chapéu Mangueira, Rocinha e Vidigal. O importante era dar o recado de que as populações marginalizadas são sujeitos políticos e precisam ser consideradas nos momentos decisivos da história do país.

Mas na manhã de domingo, enquanto o som rolava na rua, eu acompanhava a transmissão via canal da PosTV  no Youtube, lia os comentários do bate-papo da postagem e percebia como essa mensagem era inaceitável para várias pessoas. Defensores do impeachment e “odiadores do PT”, com suas hashtags convencionais, eram esperados. Só que as reações não pararam por aí. “Se descer vão levar bala”, eis o comentário que pouco depois das 10h me fez observar com mais atenção a coluna do lado direito da tela. A partir daí a experiência não foi nada agradável e alterou até o rumo do texto que preparava para hoje.

Segue uma amostra do que foi dito: “Não sabem nem o que é fascismo”; “Tudo puta”; “Depois do resultado de hoje, cuidado cassaremos suas tocas. Aguardem! Aço!”; “Funk coisa de bandidos alienados”; “Fala sério funk não rima com cultura”; “ao ao ao bala perdida na próxima eleição”; “Auditoria militar… Vocês vão se foder.. Desta vez não haverá anistia!”; “Chama o BOPE pra acabar com isso”; “Interromperam [a transmissão] porque passou um arrastão e roubou a câmera”; “Os fankeiros falam em faculdade mas não terminaram nem o 2º Grau”; “Vai ter golpe sim”, “Vai ter caça a esse pensamento do final do século 19. Socialismo e comunismo é pensamento de retardado”; e daí para mais até.

Vi tudo isso e topei com meu adesivo: “Esse não será o país do ódio”. Não será… Não será?

Após a votação que aprovou a admissibilidade do rito de impeachment na tarde e na noite de ontem, parece-me mais do que urgente parar de lidar com essas manifestações alegando que esse tipo de coisa não tem ressonância no sentimento do povo brasileiro, cordial e culturalmente aberto às diferenças. Para além de esposas, filhos, netos e outros familiares, a maioria dos deputados democraticamente eleitos pela população brasileira, que também elegeu Dilma, justificou os seus sins em argumentos tais: “Pelos fundamentos do cristianismo”; “Pelo fim da rentabilização de desocupados e vagabundos”; “Pelo fim da CUT e seus marginais”, “Pela República de Curitiba”; “Pelo comunismo que assombra o país”; “em memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra”, ex-chefe do DOI-CODI (1970-1974) e primeiro militar reconhecido como torturador pela Justiça brasileira, em 2008]… Isso e muito mais, com direito a arremates como o misógino e gramaticalmente incorreto “Tchau Querida!”, e sua intencionalidade de adeus à democracia.

O fato é que, se vista a partir das experiências de populações negras, indígenas, mulheres, LGBTT, trabalhadores pobres do campo e da cidade e outros condenados dessa terra chamada Brasil, a história deste país é a prova de que a violência, como manifestação de ódios, é uma marca da nossa sociabilidade. De tal sorte, a forma ineficaz como a inteligência brasileira de intenções democráticas lidou por muito tempo com problema do racismo, por exemplo, nos ensina que o nosso desejo de um país melhor não faz dele este país melhor. Entre os muitos casos ilustrativos disponíveis, Joaquim Nabuco, ao publicar o seu O Abolicionismo, em 1883, buscou legitimar o fim da escravidão apostando na ideia de que não poderíamos correr o risco de ver acontecer no Brasil um acirramento de conflitos raciais, o que para muitos analistas soou como a simples negação do próprio problema racial naquele momento. Mas isso ele não pôde fazer:

“Nós não somos um povo exclusivamente branco, e não devemos portanto admitir essa maldição da cor; pelo contrário, devemos tudo fazer por esquecê-la.
A escravidão, por felicidade nossa, não azedou nunca a alma do escravo contra o senhor – falando coletivamente – nem criou entre as duas raças ódio recíproco que existe naturalmente entre opressores e oprimidos” (Joaquim Nabuco, O Abolicionismo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; São Paulo: Publifolha, 2000, p. 16 – grifos meus).

“Devemos tudo fazer por esquecê-la”, porque, “falando coletivamente”, o ódio de raça não nos definiria. Eis o sintoma do mal existente que se tentava combater via universalização da liberdade. A maldição da cor era percebida, mas o fim da escravidão poderia ser um caminho para que ela não tivesse de ser tratada como um problema central entre nós. Procedimento semelhante me parece organizar nossa forma de lidar com o momento atual: Pensamentos e gestos fascistas são periféricos, e a defesa da democracia é maior e figura como chave para nos distanciarmos de um cenário de ódio. Sendo assim, o sentimento de nojo que alimenta nossa certeza de que os/as parlamentares ou cidadãos comuns que emitem tais “opiniões” não nos representam, infelizmente, apenas nos confirma na encruzilhada histórica em que estamos. A perguntar que fica é: como enfrentar o ódio se não admitimos a sua dimensão real?

Tais questionamentos me fazem, aliás, recordar o post Preocupante Semelhança?, neste blog em 6 de março, no qual historiadora Hebe Mattos pondera sobre como o desmantelamento dos projetos de cidadania para negros nos EUA no fim da década de 1870 foi legitimado por um repertório amplo da cultura local que adentrou o século XX. Ter isso em mente, por sua vez, acentua a importância do discurso da deputada Benedita da Silva, no dia 15 de abril, que, entre outras coisas, apontou como a crise política gerada e alimentada pelos opositores do governo tem legitimado discursos e práticas que justificam o aumento do desemprego e as perdas dos direitos trabalhistas, como se isso tivesse que ser feito pelo bem da Nação. Não é demais mencionar as dezenas de projetos de lei que tramitam com bastante celeridade no Congresso com esse fim.

Benedita 15.4.2016

Os tempos inegavelmente são e serão difíceis de entender e explicar. Como historiadora, mais do que os registros dos opressores, tenho me dedicado a reunir as falas de quem tem reagido contra o retrocesso, sobretudo de sujeitos que não costumam ser priorizados nas narrativas hegemônicas, sejam as de direita ou as de esquerda. Ao fazê-lo, uma coisa me parece certa: há uma grande parte deste país que, após gerações e gerações enfrentando o ódio (negado), conquistou a oportunidade de começar a acessar direitos interditados e não está disposta a abrir mão do que ainda é tão pouco para acalmar a fúria dos que não admitem transformar privilégio em direitos universais. Pessoas como a estudante de medicina Suzane Silva, que, sem desmerecer o trabalho de suas antepassadas, tem plena consciência do que significa não ser obrigada a utilizar o melhor de si para se tornar “uma excelente babá, faxineira ou empregada doméstica”. Temos, pois, o desafio de aprender a enfrentar os ódios que são reais e amplos no Brasil e pessoas como Suzane, MC Leonardo e Benedita da Silva, em suas artes da resistência, têm muito a nos ensinar.

Suzane Silva

Suzane Silva, estudante de medicina, bolsita ProUni na Faculdade Santa Marcelina, em São Paulo.

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Homenagem do Vício à Virtude

Tentativas maniqueístas de desacreditar intelectual ou moralmente determinadas forças políticas estão na base de todos os fascismos. Infelizmente, os acontecimentos recentes no Brasil chegaram assustadoramente perto disso. Por outro lado, felizmente, os riscos do pensamento único me parecem que estão sendo superados na crise em curso. Sejam quais forem seus desdobramentos, não se farão em nome de qualquer unanimidade artificialmente construída. Estamos diante de um país politicamente dividido. Aprender a lidar democraticamente com isso é parte da solução.

Historiadores profissionais estão fortemente presentes na atual disputa política. O jogo de espelhos da história que se repete ora como farsa ora como tragédia assombrou a muitos, que vieram a público exorcizar tais fantasmas. Como escreveu meu amigo Sidney Chalhoub, em texto publicado aqui no blog, o jogo ainda está sendo jogado e eu não resisto a contar mais uma história.

A hipocrisia pode ser definida como o elogio que o vício presta à virtude e as raízes de sua presença na nossa cultura política são sabidamente antigas. Mesmo quando a estavam violando, a legalidade constitucional sempre foi celebrada pela tradição brasileira. Nem os anos abertamente autoritários do Estado Novo chegam a ser completamente exceção a esta regra. Bem antes do fim do período lá estava o ditador a criar partidos políticos, como bem nos ensina Ângela de Castro Gomes, no clássico A Invenção do Trabalhismo.  O golpe civil militar de 1964 gostava de chamar-se revolução democrática e Arena e MDB disputaram o poder em eleições regulares ao longo de todos os sombrios anos de chumbo.

Muitos remontam o gosto brasileiro pela hipocrisia na política à tradição católica, que ao propor códigos morais inalcançáveis à maioria dos seres humanos comuns, faz do pecado um pressuposto (como na proibição do uso de anticoncepcionais, para ficarmos num exemplo corriqueiro). Há muito, porém, que o Brasil é um país laico e plural do ponto de vista religioso e que a própria igreja católica discute a questão. Discursos únicos não podem dar conta da atualidade política do catolicismo ou do país.

Também a colonização ibérica costuma ser responsabilizada por nossas mazelas políticas. Seríamos uma sociedade de privilégios, mal adaptada à modernidade democrática. Vejo, porém, origem bem mais objetiva na condescendência brasileira com a hipocrisia política. E ela se encontra na nossa peculiar modernidade escravista, estruturadora da fundação do nosso primeiro estado nacional. O racismo à brasileira e a hipocrisia como tradição política têm origens comuns, se não são, a rigor, a mesma coisa.

Com a independência do Brasil, uma atividade mercantil até então considerada legal e legítima, apesar dos horrores em que implicava, que movimentava milhões de libras esterlinas – para ficarmos na então moeda forte do mercado internacional, transformou-se, oficialmente, em crime de contrabando. O reconhecimento da independência do país pela Inglaterra teve como contrapartida um compromisso oficial de extinção do tráfico de cativos africanos, depois ratificado por uma lei aprovada em 1831. Com a emancipação política, o comércio negreiro virou tráfico, e assim se fixaria na memória nacional.

A lei não foi aprovada para inglês ver, como passou para a história. Muitos lutaram para que fosse implementada, mas ela se tornou alvo de um vigoroso processo de desobediência civil por parte da classe senhorial que acabou se consolidando no movimento político conhecido como Regresso, que alcançou o poder em 1837. Ainda assim, não conseguiram revogar a lei de 1831 (ainda que tentassem), optando por fechar os olhos para seu descumprimento. A hipocrisia generalizada como política de estado nascia ali, juntamente com a prática de silenciar sobre a cor dos brasileiros livres nos documentos oficiais.

Invisibilizada na memória pública, a mobilidade social de intelectuais mestiços foi expressiva nas primeiras décadas após a independência. Francisco Montezuma, formado em direito por Coimbra, e Antônio Pereira Rebouças, advogado por notório saber, combateram o tráfico escravista no parlamento, como deputados pela Província da Bahia. Filho de uma liberta com um alfaiate português, Rebouças  tornou-se um dos maiores especialistas em direito civil no Brasil do século 19, como nos mostrou Keila Grinberg. Durante as tentativas de revogação da lei de 1831, discursou no parlamento denunciando a conivência da chamada “boa sociedade” brasileira com o tráfico de escravizados. Não porque alguns elementos se tivessem corrompido, como por vezes se acusava um ou outro inimigo político, fazendeiro ou funcionário público, mas porque todos os produtores rurais brasileiros, pequenos ou grandes, estavam de alguma forma envolvidos com o contrabando.

Homem de seu tempo, Rebouças defendia que os trabalhadores africanos no país fossem todos considerados como colonos livres, e que novos braços africanos fossem trazidos nessa condição. Para tanto, seria preciso revogar outra lei, de 1830, que baseada em pressupostos racistas proibia a imigração de africanos livres.

Foi derrotado. Os sobreviventes da terrível travessia continuaram a cruzar clandestinamente o Atlântico e a Serra do Mar, para serem ilegalmente incorporados como trabalhadores escravizados às plantações de café, principal produto de exportação do novo país. Desse percurso, porém, quase não ficaram rastros. A ilegalidade trazia consigo invisibilidade social e silêncio. As pessoas morriam nas praias a vistas de todos, mas depois de Rebouças, apenas os ingleses continuaram a falar sobre isso. Um relatório do Foreign Affairs de Londres relata mais de 4000 pessoas desembarcadas entre Copacabana e a Ilha Grande apenas em janeiro de 1838.

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 (agradecemos à Mariana Muaze pela reprodução do documento no blog)

Era como se toda a sociedade se fizesse propositalmente muda e cega em relação à continuidade do tráfico negreiro, bem como à cor de parlamentares como Rebouças ou Montezuma. O Brasil nasceu como nação comandado por corsários de corpos negros que se imaginavam como construtores (quase) brancos de um Império civilizado nos trópicos.

Em 1850, uma segunda lei colocaria fim ao tráfico atlântico de escravizados, com o compromisso de manter, porém, o manto de silêncio sobre a ilegalidade anterior. Desde então a ideia de que as leis no Brasil podem pegar ou não tem sido repetida. Bem como o jargão histórico que ameaça com a lei os inimigos. Na atual crise política, não existe bordão mais cruel do que o Quero Meu País De Volta.

Do ponto de vista da velha corrupção política, o risco de mais um tapetão histórico (acho que a expressão é de Luiz Felipe Alencastro) está mais que nunca no horizonte. Se o clima político atual por vezes lembra o pré 1964, a proposta de um governo Temer a partir do impedimento da presidenta ecoa 1837. Reencenando como farsa o gosto pela hipocrisia generalizada, o réu Eduardo Cunha ameaça o mandato de Dilma Rousseff, presidenta eleita com mais de 54 milhões de votos, entre eles o meu, e a própria democracia.

De novo, não. Os tempos são outros.

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Desfaçatez de classe. Sidney Chalhoub

Os futuros anais históricos da Bruzundanga contarão admirados as efemérides daqueles remotíssimos dias de março de 2016. No quarto dia daquele mês, sexta-feira aziaga, certo juiz da roça, um tanto guapo, outro tanto aloprado, prendeu por um dia um ex-presidente da república que era também um ex-operário. O acontecimento espetacular acelerou a história.

 As duas semanas seguintes foram um deus nos acuda. O juiz da roça, ao que se dizia um simpatizante do partido da ave de bico comprido, bisbilhotou e divulgou ilegalmente conversas de autoridades diversas, até mesmo da presidenta da Bruzundanga. O magistrado de província justificou os atos que praticara à revelia da lei como decorrentes da elevadíssima estatura moral de sua pessoa e de seus propósitos. Tais escutas telefônicas, consideradas de gravidade ímpar por parte da imprensa que as considerou de gravidade ímpar (sic), tinha como objetivo conclamar a massa dos cidadãos parrudos da república a ir para a rua e mostrar a sua cara.

Eles foram. Carregaram cartazes com a cara do juiz da roça, que não coube em si de contente e filosofou, mui profundamente, sobre a sabedoria das ruas e a necessidade de ouvi-las. Era preciso derrubar o governo da Bruzundanga. Dirigentes do partido da ave de bico comprido e do partido que nunca está fora do poder reuniram-se para planejar o novo governo, nomear ministros, pactuar o aprofundamento da política econômica em curso, que não vinha dando resultado, o que comprovava a excelência de sua concepção.

Uma sumidade do partido da ave de bico comprido acalmou os políticos que seriam depostos, perseguidos pelo juiz da roça e enviados para o calabouço. Explicou mui serenamente que o novo governo não seria vingativo. Um magistrado da Altíssima Corte do país tagarelava todos os dias, em entrevistas à mídia, a respeito de como julgaria os processos que ainda lhe chegariam à mesa para julgar (sic). Num último lance genial, uma espécie de cereja do bolo, um ex-presidente que era também um ex-intelectual, muito indignado com a possibilidade de o ex-presidente que era também um ex-operário ocupar uma pasta ministerial, sentenciou: “analfabeto não pode ser ministro”.

Que tempos memoráveis! Machado de Assis, intérprete-mor da Bruzundanga, escreveu um livro, chamado Memórias póstumas de Brás Cubas, que consistiu numa espécie de tratado de interpretação sociológica das duas semanas da história da Bruzundanga, naquele ano de 2016, decorridas entre o quarto e o décimo oitavo dias de março. Em tal compêndio de sapientíssima hermenêutica do repertório simbólico da sociedade bruzundanguense, o autor formulou o conceito de descaramento ou desfaçatez de classe.

Autor genial e complexo, Machado de Assis só teorizava por meio de alegorias, ou por linhas tortas, que é um jeito mais simples de dizer a mesma cousa. Por isso inventou Brás Cubas, outro guapo da história pátria, narrador e protagonista das Memórias. Brás Cubas não era um autor defunto, mas um defunto autor. Quer dizer, ele decidiu contar a própria história depois de morto, enviando os capítulos, direto do além-mundo, por correio sideral. A circunstância de morto dava ao autor daquelas páginas uma desenvoltura primorosa: “Agora… que estou cá do outro lado da vida, posso confessar tudo”; e se o livro, “fino leitor”, “te não agradar… pago-te com um piparote”, que, ao que parece, era como se dizia “peteleco” naquela época.

Por conseguinte, o primeiro elemento constituinte do conceito de desfaçatez de classe é o transbordamento de autoconfiança, ou o impudor radical, que passa a guiar as atitudes de Brás Cubas e seus semelhantes. Podem “confessar tudo” o que pensam e fazem. Brás Cubas foi sujeito rico, dono de propriedades no Rio de Janeiro imperial, senhor de escravos, entre eles Prudêncio. Este era “um moleque de casa”, “o meu cavalo de todos os dias”; “punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o”. Se Prudêncio reclamasse, Brás retorquia: “Cala a boca, besta!”.

Brás Cubas sofria de monomania em relação às mulheres. Ele organizou a sua narrativa em torno das personagens femininas de sua vida, desde Pandora ou a mãe Natureza, que lhe aparecera no delírio derradeiro antes da morte (ou no momento do nascimento do defunto autor), até Virgília, passando por Eugênia, Marcela, dona Plácida etc. Dona Plácida foi uma criada da família de Virgília, que se tornou depois alcoviteira dos amores clandestinos desta senhora com o memorialista.

Brás se perguntou certa vez sobre a utilidade da vida de dona Plácida, queria desvendar o porquê de sua vinda ao mundo. Chegou à seguinte conclusão: “para queimar os dedos nos tachos, os olhos na costura, comer mal, ou não comer, andar de um lado para outro, na faina, adoecendo e sarando, com o fim de tornar a adoecer e sarar outra vez, triste agora, logo desesperada, amanhã resignada, mas sempre com as mãos no tacho e os olhos na costura, até acabar um dia na lama ou no hospital”.

As historietas de Prudêncio e dona Plácida encapsulam o segundo elemento constitutivo do conceito de descaramento ou desfaçatez de classe. A desfaçatez de classe acontece quando a classe brascúbica, uma vez achacada de crise de despudor, como ocorreu na Bruzundanga naquelas memoráveis Jornadas de março de 2016, destampa ao mundo os mais recônditos segredos de sua maneira de ver as cousas, segundo a qual negros, mulheres e pobres existem para ralar ou empurrar traquitanas enquanto o patronato chiquérrimo vocifera, à beira-mar, contra a presidenta eleita.

Brás Cubas articulou teoricamente a ideia, central ao conceito sociológico de desfaçatez de classe, de que as desigualdades ou injustiças sociais são parte necessária da paisagem, assim como as montanhas, os rios e as praias: “Outrossim, afeiçoei-me à contemplação da injustiça humana, inclinei-me a atenuá-la, a explicá-la, a classificá-la por partes, a entendê-la, não segundo um padrão rígido, mas ao sabor das circunstâncias e lugares”.

Quiçá o momento analiticamente mais promissor das Jornadas de março de 2016 tenha sido o comentário do ex-presidente que era também ex-intelectual, de que “analfabeto não pode ser ministro”. A concisão dialética da frase é notável. Ao decifrá-la à luz do conceito de desfaçatez de classe, temos uma visão de mundo construída por metáfora, ou pela transposição do sentido próprio ao figurado. Assim, “analfabeto” significa a maioria da população da Bruzundanga, cujo lugar social, em respeito à tradição, deve permanecer o mesmo na longa duração histórica, com tendência ao infinito. Já “ministro” é fórmula abreviada de dizer classe brascúbica, conforme a definição de Machado de Assis (op. cit., passim).

Um participante das manifestações de 18 de março, contrárias ao impedimento da presidenta, foi às ruas com um cartaz no qual criticava a tese de Machado de Assis a respeito da desfaçatez de classe, por considerá-la desnecessariamente hermética. Segundo o manifestante, a crise política da Bruzundanga se resumia ao seguinte: “Quando a senzala aprende a ler, a casa grande surta”. Isso escrito em letras garrafais, o que é uma maneira de vencer no grito, e Machado de Assis era gago, o que de antemão deu ganho de causa ao crítico popular.

Os anais históricos da Bruzundanga guardam um enigma. Os historiadores não descobriram o que aconteceu depois das Jornadas de março. Uns dizem que as duas semanas de desfaçatez de classe demonstraram o poder invencível da classe brascúbica, logo o impedimento da presidenta era fait accompli, favas contadas. Outros, adeptos de ver as cousas por meio de velhos adágios populares, sustentaram que “a cura veio pelo excesso do mal”. O descaramento de classe suscitou o demônio rubro da resistência, quer dizer, a virada satânica da história.

Outra personagem popular, cheia de ouvir tanta teoria, recorreu ao tesouro de sabedoria do esporte bretão e acabou com esta crônica: “o jogo é jogado, e só acaba quando termina”.

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A história como hiper-ficção. Sidney Chalhoub

(Sidney Chalhoub, historiador da Universidade de Harvard e da UNICAMP, enviou este texto para divulgação na sexta feira, 18 de março)

Itaguahy é aqui e agora, diria talvez Machado de Assis, ao observar o ponto ao qual chegamos. Ao inventar Simão Bacamarte, o protagonista de “O alienista”, Machado mobilizou sem dúvida referências diversas, tanto literárias quanto políticas. Parece certo que se inspirou também em personagens históricas concretas, ou em situações de sua época que produziam tais personagens. Na década de 1880, habitante da Corte imperial, ele assistia havia décadas à ciranda infindável de epidemias de febre amarela, varíola, cólera, etc. e a luta inglória dos governos contra tais flagelos. O pior da experiência era que o fracasso contínuo das políticas de saúde pública, ou da higiene pública, como se dizia com mais frequência, provocava, paradoxalmente, o aumento do poder de médicos higienistas e engenheiros. Esses profissionais se encastelavam no poder público munidos da “ciência” e da técnica que poderiam renovar o espaço urbano de modo radical e “sanear” a sociedade. Demoliam-se casas populares, expulsavam-se moradores de certas regiões, reprimiam-se modos de vida tradicionais, regulava-se muita cousa sob o manto do burocratismo cientificista. E as epidemias continuavam. Machado de Assis refere-se a esse quadro como “despotismo científico”, em “O alienista” mesmo, ao descrever “o terror” que tomara conta de Itaguahy diante das ações de Bacamarte. Havia inspetor de higiene e engenheiro da fiscalização sanitária a agir com convicção de Messias, cheios de autoridade, inebriados de seus pequenos poderes.

Simão Bacamarte, portanto, é desenhado d’après nature, para usar a expressão daquele tempo meio afrancesado, por mais caricatural que a personagem possa parecer. A arte imita a vida, segundo Machado de Assis, quem sabe. A estória que contou é conhecida por todos, talvez uma das referências intelectuais clássicas mais compartilhadas nesta nossa república da bruzundanga. Por isso é uma estória boa para pensar a nossa condição coletiva, Brasil, março de 2016. Bacamarte queria estabelecer de maneira objetiva e irrefutável os limites entre razão e loucura. Conseguiu amplos poderes da câmara municipal, dinheiro para construir a Casa Verde, seu hospício de alienados, e passou a atuar como que ungido por suas convicções científicas. Ao contrário do que imaginara inicialmente, encontrou uma diversidade assombrosa de loucos. Se o eram mesmo, continuam conosco, como os impagáveis loucos “ferozes”, definidos apenas como sujeitos grotescos que se levavam muito a sério. A galeria de loucos que tinha a mania das grandezas é quiçá a mais relevante em nossa situação atual. Havia o cara que passava o dia narrando a própria genealogia para as paredes, aquele pé rapado que se imaginava mordomo do rei, e outro, chamado João de Deus, propalava que era o deus João. O deus João prometia o reino do céu a quem o adorasse, e as penas do inferno aos outros. Ainda hoje em dia Simão Bacamarte acharia material humano de sobra para encher a Casa Verde. Se ampliasse a pesquisa para a internet, ele teria de investigar a hipótese de a loucura engolfar o planeta inteiro. Afinal, segundo ele, “a razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia, e só insânia”. Ou talvez não. Se Bacamarte lesse e visse a grande mídia brasileira, é possível que concebesse um conceito mais circunscrito de alienação mental. Sem a cacofonia virtual estaríamos expostos apenas à monomania de uns poucos, e a diversidade de opiniões é sacrossanta nesta nossa hora. Bendita internet.

O messianismo cientificista de Bacamarte se foi. Mas o curioso é que a ficção dele criou raízes na história brasileira, virou realidade. Muitos dentre nós, de cabelo bem grisalho ou até nem tanto, lembrarão da situação do país no final dos anos 1980 e no início da década seguinte, a viver a passagem sem ponte da ditadura para a hiperinflação. Em retrospecto, penso que havia um quê de continuação da ditadura naqueles planos econômicos todos que produziram até uma nova caricatura de Messias, o caçador de Marajás. Agora a população não era mais culpada de viver na imundície e nos maus costumes, a causar epidemias de febre amarela. No entanto, estava inoculada pelo vírus da cultura inflacionária. Daí vieram os czares da Economia ou ministros da Fazenda, ou que nome tivesse aquela desgraceira. As “autoridades” daquela ciência cabalística confiscavam poupança, congelavam preços, nomeavam “fiscais” populares dos abusos econômicos, podiam fazer o que lhes desse na veneta. Mas dava errado. A inflação voltava, os caras não acertavam. Vinha outro plano, mais confisco, mais arrocho salarial, e nada. Viveu-se assim por uma década, ou mais. Cada ministro era um pequeno deus, cujo poder tinha relação direta com a sua profunda ignorância sobre o que fazer para dar jeito na bruzundanga. Os higienistas do final do século XIX e os economistas do final do século XX tinham muito em comum. Em algum momento, o despotismo econômico se foi. Tinha de passar, passou. Tivemos democracia por algum tempo, com todos os seus rolos, mas sem salvadores da pátria, o que era um alívio. Livres, ainda que sob a batuta do deus Mercado, uma espécie de messianismo sem Messias, ou sem endereço conhecido.

Eis que surge, leve e fagueiro, o messianismo judiciário. De onde menos se esperava, a cousa veio. Simão Bacamarte encarnou de novo, vive-se a história como a realização radical da ficção, hiper-ficção. As operações de despolitização do mundo são as mesmas –no despotismo científico do XIX, no despotismo econômico do XX, no despotismo judiciário do século XXI. De repente, num processo que historiadores decerto explicarão no futuro, com a pachorra e a paciência daqueles que não vivem o presente às tontas, pois não sabem esquecer o passado, um determinado poder da república se emancipa dos outros, se desgarra, engole tudo à sua volta. Em nome da imparcialidade, da equidade, da prerrogativa do conhecimento (tudo igualzinho aos higienistas e aos economistas de outrora), eles provincializam a nação inteira, e negam, a cada passo, o que professam em suas perorações retóricas: agem de forma partidarizada, perseguem determinados indivíduos e organizações, transformam a sua profunda ignorância histórica num poder avassalador.

Todos sabemos como terminou a estória de Simão Bacamarte. Depois de testar tantas hipóteses, de achar que a loucura poderia quiçá abarcar a humanidade inteira, ele concluiu que o único exemplar da espécie em perfeito equilíbrio de suas faculdades mentais era ele próprio. Por conseguinte, o anormal era ele, alienado só podia ser quem não tinha desequilíbrio algum em suas faculdades mentais. Bacamarte trancou-se na Casa Verde para pesquisar a si próprio e lá morreu alguns meses depois. Pode ser que haja aí um bom exemplo. Alguém saberia dizer, por favor, onde Machado de Assis deixou a chave da Casa Verde?

P.S. A semelhança entre Simão Bacamarte e um determinado juiz de província do Brasil atual me foi sugerida por um amigo aqui de Harvard, a quem agradeço pela inspiração. Obrigado a todos aqueles que sairão às ruas, neste 18 de março, em defesa da democracia.

#VemPraDemocracia

Fotos do Album de Felipe Altenfelder

Manifestações pela democracia, em defesa do mandato de Dilma Roussseff, em 18/3/2016 em São Paulo, Rio de Janeiro, Fortaleza, Recife, Rio Branco, Porto Alegre, Curitiba e Brasília

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