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O dia em que o imperador do Brasil perdeu a chance de conhecer o abolicionista Frederick Douglass

Este artigo é a versão em português de “The Emperor and the Abolitionist: A Brazilian Royal Visits the U.S.”, publicado na seção The Long View da Americas Quarterly em janeiro de 2020.

Dom Pedro II e Frederick Douglass. PHOTO12/UNIVERSAL IMAGES GROUP; CORBIS/GETTY

O dia era o 10 de maio de 1876, mais conhecido como aquele em que Ulysses Grant, então presidente dos Estados Unidos, e Dom Pedro II, o imperador do Brasil, inauguraram a exposição universal da Philadelphia, a propósito do centenário da independência norte-americana – e, ironicamente, da república que o monarca não queria ver em seu país.

A abertura da exposição foi o momento alto da visita do imperador aos Estados Unidos, que ficou conhecida no Brasil como a ocasião em que D. Pedro teria testado o telefone, última invenção de Graham Bell. Entusiasmado ao ver que a geringonça “de fato falava”, teria se comprometido a comprar o aparelho assim que a invenção fosse posta no mercado. A promessa foi cumprida.

A viagem de D. Pedro II foi extensamente documentada pelo jornal New York Herald, cujo correspondente, o repórter James J.O’Kelly, acompanhou o imperador desde a sua saída do Brasil. As matérias de O’Kelly foram em grande parte responsáveis pela imagem simpática e ilustrada do “monarca-cidadão”, que, no exterior, preferia assinar Pedro de Alcântara e se identificar como “apenas um cidadão brasileiro”.

Mas é evidente que o imperador brasileiro pretendia muito mais do que figurar como um simples cidadão interessado nas últimas novidades científicas. Naquela época, as Exposições Universais, verdadeiros espetáculos da modernidade, eram grandes feiras de negócios, organizadas para que os países participantes exibissem o que consideravam ser suas melhores contribuições nos campos da ciência, da indústria, das artes, da arquitetura, da tecnologia.

Com participação mais tímida nas exposições de Paris (1867) e de Viena (1873), na de Philadelphia o Império do Brasil, para potencializar a venda do café, sua principal commodity, queria ficar conhecido “as an agricultural region, possessing an extremely fertile soil, and to its inhabitants the occasion of appearing as peaceful, inteligent, and laborious people”. (The Empire of Brazil at the Universal Exhibition of 1876 in Philadelphia, 1876). D. Pedro ficou satisfeito com o que viu. Como escreveu em carta à filha Isabel, “Já corri quase toda a exposição. É imensa. Nós fazemos figura decente. (…) A nossa exposição agrícola faz lindíssima vista.” (11 de maio de 1876).

Vender café podia até ser fácil. Já apresentar um quadro positivo do maior regime escravista das Américas era mais difícil. As autoridades se esforçaram para descrever slavery as “imposed in Brazil by the force of circumnstances (…)”, that “will disappear in a few years more”, mas seria preciso muita imaginação para acreditar que “slaves are humanely treated”, working “moderately, and, usually during the day, resting at night, when they receive religious instruction or amuse themselves” (The Empire of Brazil… 1876).

Será que o simpático imperador teria conseguido convencer alguém na Philadelphia, pouco mais de dez anos após a abolição da escravidão nos Estados Unidos, que o Brasil era um país moderno, a escravidão não seria um empecilho para os negócios e que, “so unprepared to receive their freedom”, alguns dos recém-libertos “were employed as laborers on the estates of the nation”, where their “children are educated”? (The Empire of Brazil… 1876).

Abertura da Exposição da Philadelphia. 1876. Barberis from L’Illustrazione Italiana, No. 36/Getty

Difícil afirmar que sim. Afinal, como a propósito comentaria o jornal O Novo Mundo, então publicado em New York pelo brasileiro José Carlos Rodrigues, “É preciso ter bem na lembrança que essa nefanda escravidão não só impede a emigração para o Brasil como a importação de capitais para as indústrias agrícolas. Coloca o país em um estado fatal de suspeição tanto para o emigrante quanto para o capital. O emigrante pergunta: — Não me quererão tratar como escravo? O capital murmura: — Jamais irei para um país em que a terra só tem valor quando nela está amarrado um escravo”. (O Novo Mundo, agosto de 1876, edição 08071, p. 231).    

Mas, se a escravidão era, no linguajar da época, uma “nefanda instituição”, havia quem considerasse o Brasil à frente dos Estados Unidos quando o assunto eram as relações raciais.

Um dos convidados de honra à cerimônia de inauguração era Frederick Douglass, um dos maiores ícones do abolicionismo norte-americano. Após a abolição da escravidão, a questão de Douglass, ele próprio ex-escravo, era a luta contra o racismo nos Estados Unidos. No dia da cerimônia, ele quase teve sua entrada barrada na tribuna reservada aos convidados de honra, que incluía diplomatas e autoridades diversas, entre elas o imperador do Brasil. Um senador o reconheceu e o chamou para ocupar seu assento. Consta que a multidão, ao vê-lo, aplaudiu com veemência. Douglass mal havia se sentado quando se escutaram os primeiros acordes do hino brasileiro e mais aplausos. Era o imperador que subia ao mesmo palanque, de braços dados com a imperatriz Teresa Cristina.   

Teria o “monarca-cidadão” Pedro de Alcântara notado a presença de Douglass? Aos cinqüenta e oito anos, o homem alto de vasta cabeleira grisalha era facilmente reconhecido por onde passava. Mas o abolicionista não parece ter causado impressão especial no imperador. Ao menos não há qualquer referência a ele em seu diário, nos artigos de O’Kelly, nas cartas que enviou ao Brasil.

Uma pena. Embora tenha afirmado que “nenhum homem de cor é realmente livre num estado escravista”, Douglass, mais de uma vez, havia expressado admiração pelo Brasil, que lhe parecia um lugar onde, comparado aos Estados Unidos, não haveria “antipatia dos brancos de se misturar ou se associar aos negros”.

D. Pedro II parece não ter notado Douglass, mas não deixou de visitar Elizabeth Agassiz, viúva do naturalista suíço Louis Agassiz, zoólogo e professor de Harvard, falecido há pouco mais de dois anos. D. Pedro e Agassiz eram amigos de longa data.  Consta que ele teria sido o responsável por convencer D. Pedro a visitar aos Estados Unidos, cuja viagem seria “uma marcha triunfal de um extremo a outro do país”.

Agassiz também era um entusiasta do racismo científico, que via na miscigenação o principal fator da degeneração das raças humanas.  Assim como Douglass, o naturalista também tinha interesse todo especial pelo Brasil. Mas se, para o primeiro, no Brasil, “país que nós, com nosso orgulho, estigmatizamos como semibárbaro — não se trata as pessoas de cor, sejam livres ou escravos, da forma injusta, bárbara e escandalosa como tratamos”, para o segundo o Brasil seria o melhor exemplo da degeneração provocada pela miscigenação.

Para Agassiz, o Brasil era o perfeito contraponto dos Estados Unidos, aquilo que seu país de adoção jamais deveria se tornar. Para Douglass, o Brasil era um modelo a ser seguido.   

Talvez o 10 de maio de 1876 tenha sido mais propriamente o dia em que D. Pedro II perdeu a oportunidade de conhecer Frederick Douglass, e com ela a chance de fazer figura realmente decente na inauguração da Exposição Universal. Quanto a este, quase barrado na entrada da cerimônia, ignorado pelo imperador, quem sabe tenha percebido que, no fundo, o racismo brasileiro não era assim tão diferente do norte-americano.   

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Liberdade de expressão, a Rede Globo, e a Escrava Isaura … por Paula Halperin com apresentação de Keila Grinberg

Na mesma semana em que mais de 10.000 intelectuais de todo o mundo expressam sua preocupação com os cortes anunciados pelo governo federal na área de Ciências Humanas, o Conversa de Historiadoras recebe duas importantes contribuições de historiadores de universidades norte-americanas sobre a liberdade de expressão no país. No último sábado, Sidney Chalhoub, Professor Titular de História do Brasil da Harvard University, reforça as conexões entre liberdade acadêmica e liberdade de expressão. No texto a seguir, a historiadora Paula Halperin, Professora Associada da The State University of New York, lembra as conexões históricas entre liberdade de imprensa e liberdade de expressão no Brasil. Que não haja dúvidas: universidades sem ciências humanas são universidades sem pensamento crítico. Não há ameaça maior à liberdade de expressão. (KEILA GRINBERG)

Liberdade de expressão, a Rede Globo, e a Escrava Isaura

Paula Halperin

No dia 26 de abril passado, o Senado realizou uma sessão solene em homenagem aos 54 anos da criação da TV Globo, inaugurada em 1965. Transmitida naquela mesma noite pelo Jornal Nacional, a comemoração foi conduzida por Davi Alcolumbre (DEM-AP), presidente do Senado, contando com a presença do vice-presidente do Grupo Globo, José Roberto Marinho (filho de Roberto, fundador da emissora), outros executivos do Grupo, parlamentares e do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli.

A defesa da liberdade de imprensa e a qualidade e o didatismo da teledramaturgia da emissora foram os temas principais da comemoração. O Senador Randolfe Rodrigues (REDE/AP;  autor do pedido para a realização do evento), expressou que, em um momento como o atual em que a liberdade de imprensa está sob ameaça, “a TV Globo é um baluarte na defesa da liberdade constitucional ao longo da história (…) [o evento ] é para homenagear a Rede Globo e seu papel de integração nacional, mas é também para a defesa desse valor fundamental presente na nossa Constituição”.

Hoje, qualquer manifestação publica de defesa à liberdade de imprensa não é só fundamental como urgente. O evento, contudo, esconde um conjunto de falácias históricas. Homologar a necessidade de uma esfera publica democrática e igualitária com uma emissora de televisão que forma parte do conglomerado midiático mais importante do país seria cômico, se não fosse trágico. Assegurar que a Globo tem sido garantia de democracia e um baluarte na defesa da liberdade constitucional é, no mínimo, uma distorção dos fatos históricos, já que é de domínio publico que o Grupo Globo apoiou abertamente o golpe de 64, cresceu e se fortaleceu com a ditadura militar e frequentemente se associou à campanhas e políticos abertamente conservadores e golpistas.

Pressionado pelos eventos de junho de 2013, quando manifestantes nas ruas acusaram a emissora de ter sido aliada da ditadura militar, o Grupo publicou um pedido de desculpas no jornal O Globo em 1 de setembro daquele ano. “Apoio editorial ao golpe de 64 foi um erro”, foi o editorial que pretendeu reparar esse erro ao reconhecer publicamente o apoio. Dito reconhecimento, porém, faz referência só ao golpe, parcialmente justificado no artigo ao mencionar o radicalismo de Goulart e as antinomias da Guerra Fria. Se destaca, assim mesmo, a cumplicidade e o apoio dos outros jornais ao golpe, e sobretudo, uma suposta adesão massiva do povo brasileiro a ele. Nada se menciona sobre o comportamento da emissora e de todo o Grupo nos anos subsequentes, nem que a sua evidente modernização tecnológica, possível graças ao investimento do governo federal daqueles anos, foi o que permitiu à emissora se estender por todo o território nacional (cumprindo o projeto de integração tão almejado pelos militares) e reinar hegemônica durante décadas.

Esse reinado se estabeleceu assentado na qualidade do jornalismo e em uma teledramaturgia dinâmica, leve e moderna. Como a historiografia sobre o tema tem destacado, a “migração” de escritorxs, dramaturgxs e profissionais do cinema à emissora nos anos 60, em muito influenciou na construção de uma linguagem e uma estética inovadoras, principalmente na ficção narrativa, que ainda hoje enfatiza o realismo sobre o melodrama. Ciente desse fenômeno, o ministro Toffoli (recentemente envolvido em dois casos de imposição de censura a dois veículos da imprensa e participante da mencionada solenidade) homenageou em seu pronunciamento a qualidade da teledramaturgia brasileira que encontra nas novelas da emissora sua expressão mais verdadeira.

Segundo Toffoli, se não fossem as novelas da TV Globo, a população brasileira estaria assistindo a “enlatados da dramaturgia de uma outra nação, de outro país”, em obvia referencia à “dependência” de outras emissoras latino-americanas que, à diferença da Rede Globo, importam grande parte de sua programação dos Estados Unidos. A Globo, pelo contrário, exporta as suas novelas a vários países desde a década de 70, mostrando a cultura e as características dos brasileiros mundo afora, na ponderação do ministro. Considerando a novela Escrava Isaura (1976), ele se perguntou, “quem não se lembra de tanta coisa que aprendeu e conheceu da história do Brasil através da dramaturgia da Rede Globo?”.

A menção à novela Escrava Isaura não poderia ser mais propícia hoje, quando o racismo estrutural da sociedade brasileira se reproduz aberta e desavergonhadamente nas ruas, nas universidades e nas mídias. A ficção global da década de 70 procurou nas adaptações da literatura nacional esse “ser brasileiro” mencionado pelo ministro. Escrava Isaura, adaptação do romance homônimo de Bernardo Guimaraes (1875), personificou as  violências e injustiças da escravidão na figura de uma mulher branca, jovem, culta e submissa. Simplificando as razões históricas da escravidão no Brasil, omitindo o colonialismo, minimizando o caráter distintivo do racismo no país, a novela ensinou uma versão daquela historia aos brasileiros e brasileiras que a assistiam naquele ano de 1976 e na reprise no ano seguinte.

No final feliz e romântico da novela, Isaura ganha carta de alforria do seu amado, o fazendeiro abolicionista Álvaro, casando-se com ele e não sem antes liberar os escravos da fazenda onde vão morar, transformando as escravas e escravos em empregadas domesticas e peões rurais. No seu ultimo capitulo, a Escrava Isaura mostra os personagens negros dançando de alegria pela liberdade outorgada por Álvaro, para logo servir -na casa grande onde outrora eram escravos e escravas – os salgadinhos, bebidas e doces da festa de casamento dos seus novos patrões.

A novela enaltece a luta pela liberdade de Isaura e a coragem dessa e de outras mulheres brancas da história, que acham a escravidão hedionda e retrógrada. Isaura foi a heroína indiscutida da narrativa, amada no Brasil e no exterior, enquanto a experiente atriz Léa Garcia, que personificou a escrava-vilã Rosa, recebeu ameaças de telespectadorxs nas ruas. Sua personagem acaba se suicidando na novela; mesquinha, Rosa não suporta ver Isaura feliz, a própria liberdade não é suficiente. A narrativa menos pomposa, os diálogos mais ousados e realistas, a reconstrução de época e a bela fotografia nos exteriores convergeu com noções de harmonia racial e social que, aspirando ser ideologia oficial, circulavam no imaginário de uma época cheia de contradições e resistências.

Indubitavelmente, a educação sentimental de milhões de brasileiras e brasileiros (incluindo a de quem escreve e com certeza, a do próprio ministro Toffoli), cresceu, de forma peculiar, assistindo à teledramaturgia da Rede Globo. Com contradições, tensões e muitas simplificações, as narrativas históricas e sociais que as novelas projetaram e ainda projetam, não têm sido um reflexo das origens e trajetória conservadora da emissora, mas se relacionam de forma complexa e multifacetada com essa historia e a própria história do Brasil.   Em um momento como o atual, onde o saber acadêmico, o trabalho intelectual, a crítica, a militância politica das minorias e a liberdade de imprensa e expressão estão em risco, cabe a nós, historiadorxs, reconstruir essas narrativas, sem falácias nem meias verdades.

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O nazismo é de extrema direita (por Keila Grinberg e Monica Grin)

Em visita ao Yad Vashem, museu e memorial em homenagem às vítimas do Holocausto em Jerusalém, nossos governantes insistiram na tese delirante e absurda de que o nazismo foi um movimento de esquerda. Ela é falsa. O nazismo foi um movimento de extrema-direita surgido na Alemanha após a Primeira Guerra Mundial. Seu líder, Adolf Hitler, chegou ao poder em 1933 com um discurso eugenista de oposição ao liberalismo e às esquerdas. Uma de suas peças de propaganda era justamente o combate ao comunismo.  “Converter o comunista é a tarefa do movimento nacional-socialista (nazista)”, escreveu em Minha Luta, em 1925. Mais adiante, no mesmo livro, ele reafirma: “o problema futuro da nação alemã devia ser o aniquilamento do marxismo”.

O ditador não estava brincando. Iniciou seu governo cassando os mandatos dos deputados do Partido Comunista da Alemanha. Em março de 1933, o partido foi proibido. Seus líderes foram presos, torturados e confinados em campos de concentração. E isto foi apenas o começo: acreditando serem racialmente superiores, os nazistas empreenderam extermínio sistemático dos judeus, a quem consideravam racialmente inferiores. Tratamento especialmente cruel era dirigido aos judeus de esquerda, “opositores do regime”. A estrela amarela, marca de distinção e humilhação que todos os judeus deviam portar bordada às suas roupas era, no caso destes, amarela e vermelha.

Que o Partido Nazista é de extrema direita é consenso entre historiadores e especialistas no mundo inteiro. Quem duvida pode consultar os sites do Museu do Holocausto dos Estados Unidos, do Memorial do Holocausto em Berlim ou do próprio Yad Vashem. Ou, como fez esta semana o presidente do Brasil, caminhar por suas galerias. Ao que parece, ele perdeu a oportunidade de aprender quem foram as vítimas do nazismo: além dos judeus, os nazistas encarceraram, torturaram, escravizaram e mataram ciganos, eslavos, homossexuais, socialistas e comunistas, entre tantos outros. A negação deste fato é um desrespeito flagrante à memória daqueles que sofreram e morreram no Holocausto. É triste que o governo israelense, quem sabe esquecido da importância do sionismo de esquerda para a criação do Estado de Israel, nada tenha declarado a respeito. E é vergonhoso que as instituições judaicas brasileiras não tenham reagido a tamanho impropério.

Ou o governo brasileiro duvida das informações veiculadas por órgãos israelenses, norte-americanos e alemães, ou perversamente deturpa o passado. Ao final de sua visita, o presidente sintomaticamente declarou que “aquele que esquece o passado está condenado a não ter futuro”. A frase se aplica a ele mesmo – e nisso não podia ter mais razão. Bolsonaro quis mostrar erudição, mas a citação está errada. A referência correta é “aqueles que não conseguem lembrar o passado estão condenados a repetí-lo”. A frase vale para todos. Está na hora de lembrar o passado. E de respeitar a História. 

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Triângulos do Holocausto, 1936 (wikipedia)

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Como me tornei historiadora… divulgando a imperdível entrevista de Giovana Xavier ao NEXO JORNAL!

O blog hoje divulga a entrevista de Giovana Xavier, ao NEXO JORNAL, que começa indagando: Como você chegou a essa carreira? O que te motiva? Por que você a escolheu?

GIOVANA XAVIER

Esta é uma pergunta difícil de responder porque ela é resultado de muitas histórias. Fui criada por uma família de mulheres negras que acreditaram e colocaram em prática o poder da educação como instrumento de liberdade e ascensão social. Minha mãe, Sonia Regina (ancestral) foi a primeira da família a cursar a universidade. Isso revela uma característica típica de famílias negras: o investimento na formação de um indivíduo (geralmente o mais novo) como projeto de liberdade e transformação coletivo. Essa marca, sempre presente nas histórias que hoje escuto meus estudantes pretos contarem, é um saber que temos aprimorado como comunidade negra e que evidencia os limites da meritocracia como conceito que dê conta de explicar as oportunidades desiguais que recebemos a depender de quem somos em termos raciais, de gênero, de classe, sexualidade. Então posso dizer que o fato de ter sido socializada em um matriarcado que acreditou que eu poderia ser quem eu quisesse, estimulando-me a ler, escrever, aprender outros idiomas, motivou-me a transgredir, indo além do destino esperado para as meninas negras do Brasil: o trabalho doméstico, ramo em que inclusive trabalhei por um tempo, quando fui arrumadeira de pousada na Ilha Grande na adolescência. Meu primeiro trabalho foi aos 11 anos, entregando panfletos “Vendo Ouro” na ponte do subúrbio do Méier, no Rio de Janeiro, onde fui criada. Até hoje tenho pavor de receber esses papéis, por saber das violências e perversidades que rodeiam a juventude que desde cedo tem de se virar, encarando a rua como local de trabalho. Essas experiências de inserção no mercado informal somadas à oportunidade de ter estudado em uma escola branca de classe média me geraram um ponto de vista denso sobre como estar em dois mundos e, do interior deles, criar o meu próprio. Acho que esta tem sido minha busca pelo “caminho de casa”, para usar a expressão marcante da escritora ganense Yaa Gyasi. Na linha “força, foco e fé”, pergunto-me diariamente: como, na condição de mulheres negras, podemos e devemos reivindicar a intelectualidade, construindo um universo para chamar de nosso, dentro e fora da academia? A história, enquanto matéria dedicada à interpretação de processos sociais e à construção de identidades individuais e coletivas, oferece ferramentas para responder à minha pergunta. Entretanto, estamos falando ao mesmo tempo de uma disciplina que contradiz minha própria motivação se considerarmos que ela foi criada a partir de uma lógica branca, masculina e eurocêntrica. As ferramentas da história e da academia como um todo precisam ser empretecidas na forma de uma ciência para o negro, conforme sinalizado pelo sociólogo Eduardo Oliveira e Oliveira e pela historiadora Beatriz Nascimento nos anos 1980. Entendendo-me como continuidade, essa é minha missão, definida por meus ancestrais. É isso que me motiva a seguir fazendo ciência, diariamente.

Para a íntegra da entrevista: https://www.nexojornal.com.br/profissoes/2017/10/16/Como-me-tornei-historiadora-e-a-vida-entre-livros-arquivos-e-salas-de-aula

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25º Dia Internacional da Mulher Afro-Latino-Americana e Afro-Caribenha

Neste mês, completam-se 25 anos da realização do I Encontro de Mulheres Negras da América Latina e do Caribe, na cidade de Santo Domingo, República Dominicana. Entre os dias 19 e 25 de julho de 1992, mais de trezentas participantes de 32 países compartilharam experiências e formularam direcionamentos para agendas comuns. Os debates foram feitos tanto por quem esteve ali como representante de alguma organização ou coletivo quanto pelas participações independentes, sendo a presença das afro-brasileiras bastante ressaltada.

Como observado por Ochy Curiel − intelectual-ativista do movimento antirracista e lésbico-feminista da América Latina e do Caribe, no artigo “La Red de Mujeres Afrolatinoamericanas y Afrocaribeñas: un intento de acción política transnacional atacado por la institucionalización” −, naquele momento, a experiência nos movimentos sociais era algo bastante recente para muitas, faltando ainda estrutura e maturidade organizativa para que fosse possível, logo de cara, atuar a partir daquela escala ampliada. Mesmo assim, havia um desejo de impulsionar um espaço político transnacional que resultou na criação da Rede de Mulheres Afro-Latino-Americanas e Afro-Caribenhas (REDLAC); e a instituição do 25 de julho como Dia Internacional da Mulher Afro-Latino-Americana e Afro-Caribenha.

De lá para cá, esforços têm sido feitos para manter a REDLAC em pé, embora as condições efetivas para a realização dos objetivos estejam bem aquém do necessário. Isso, no entanto, não quer dizer que as questões colocadas a partir dali tenham se perdido. O que temos visto é a construção de caminhos diversos e distintos para mobilizar mulheres negras, fruto da influência das chamadas pioneiras e da apropriação da agenda por outras protagonistas. Além do que possível verificar no atual site da Rede, há um empenho de se aprofundar a perspectiva transnacional que pode ser medida pela crescente popularização do 25 de julho pelo continente.

Para ficarmos no que tem acontecido no Brasil, e sem a pretensão de dar conta de tudo o que está sendo feito, o primeiro exemplo a se destacar é o Festival da Mulher Afro-Latino-Americana e Caribenha, o Latinidades, que chega à sua décima edição com tema “Horizontes de liberdade: afro-futurismo nas asas da Sankofa”. A despeito dos reveses agravados pelo golpe, no sentido de enfraquecer as ações voltadas ao combate do racismo e do sexismo num país de maioria negra, as organizadoras desta edição convidam a uma reflexão coletiva da máxima relevância, sobretudo neste momento de aguda crise democrática: “como a arte e os saberes de mulheres negras, assim como nossas lutas históricas e contemporâneas por direitos e por liberdade, incidem no presente? Como podem nos orientar a pensar e a criar o futuro? O conceito de Sankofa, dos povos Akan, nos ensina que tudo aquilo que foi perdido, esquecido, renunciado ou roubado no passado, pode ser reclamado, reavivado, preservado ou recuperado no presente”. O Festival acontecerá novamente em Brasília, no Museu da República, na Semana da Mulher Afro-Latino-Americana e Caribenha, entre os dias 27 de 30 de julho. Confira a programação completa no site e também pela página do Latinidades no Facebook.

Latinidades

Na cidade do Rio de Janeiro, por sua vez, acontecerá, pelo terceiro ano consecutivo, a Marcha das Mulheres Negras no Centro do Mundo. Iniciada no contexto de preparação para a 1ª Marcha Nacional das Mulheres Negras, de 2015, esta manifestação também marcará a celebração dos dez anos da incorporação do nosso 25 de julho no calendário oficial do estado do Rio de Janeiro, por meio da Lei n. 5.071/07 – algo que em nível federal só foi conquistado em 2014, via Lei n. 12.987. Ação convocada pelo Fórum Estadual de Mulheres Negras – RJ, a marcha está marcada para o domingo 30 de julho, com concentração no Posto 4 da Praia de Copacabana, às 9h.

Marcha RJ

Em Salvador, num esforço de ampliação do alcance do Dia da Mulher Afro-Latino-Americana e Caribenha e de construção de uma agenda comum de intervenção, o Odara − Instituto da Mulher Negra deu início, em 2013, ao Julho das Pretas. A quinta edição traz o tema Pela Vida das Mulheres Negras, “destacando a necessidade de mais ações coletivas e políticas públicas que visem ao enfrentamento da violência recorrente e sistemática contra mulheres e meninas negras”. Neste ano, além de promover uma feira para empreendedoras negras, está garantida a realização de uma conferência com a intelectual-ativista afro-estadunidense Angela Davis no auditório da Reitoria da UFBA, que veio ao Brasil para dar um curso sobre Feminismo Negro Decolonial, em Cachoeira-BA.

Julho das Pretas BA

Também em São Paulo, por força do grupo da Marcha das Mulheres Negras de São Paulo, em articulação com a Aparelha Luzia, teve início neste último sábado o Julho das Pretas, um “ciclo de eventos para a construção da Marcha do #25deJulho”. A noite contou com a intervenção de mais vinte mulheres, que agitaram o espaço que já se tornou conhecido como um território de afirmação negra na cidade de São Paulo. No ano passado, a Marcha reuniu de duas mil mulheres negras no centro da cidade de São Paulo. E a agitação vista no primeiro dia do mês diz que este ano também será marcante.

Julho das Pretas SP

Esses e outros eventos têm apontado para uma dinâmica bastante interessante que articula ativismo, produção de pensamento de e sobre mulheres negras e formulação de políticas públicas. Longe de se tornar possível graças a uma relação bem resolvida com a academia e os organismos de Estado, as ações iniciadas a partir do movimento social de mulheres negras, interessadas num diálogo transnacional, têm criado possibilidades de ampliar e fortalecer o entendimento das mulheres negras a respeito dos significados de suas trajetórias e experiências, algo que certamente cria outras possibilidade de se fazer e contar histórias.

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Dossiê Conversa de Historiadoras Negras – Cotas na Unicamp Já!

Na próxima terça-feira, dia 30 de maio de 2017, o Conselho Universitário da Unicamp decidirá a respeito da adoção das cotas raciais no sistema de ingresso dos seus cursos de graduação. A mobilização está intensa e animada. Já nesta segunda-feira, 29, será realizado um Festival/Ato pelas Cotas, que contará com a participação de ativistas, artistas e demais membros da comunidade acadêmica.

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O Blog Conversa de Historiadoras se soma à essa onda contra o racismo e, portanto, em defesa da democracia, apresentando hoje um papo coletivo preto, o Dossiê Conversa de Historiadoras Negras − Cotas na Unicamp Já!, escrito por quatro mulheres que estiveram e/ou estão na Unicamp como discentes e docentes: Ana Flávia Magalhães Pinto, Giovana Xavier, Lucilene Reginaldo e Taina Aparecida Silva Santos.

 

“Enxugando gelo”: as cotas em debate na Universidade Estadual de Campinas

Lucilene Reginaldo, Professora do Departamento de História – Unicamp

Na próxima semana, no dia 30 de maio, o Conselho Universitário da Unicamp irá discutir e votar uma proposta de mudança na sua política de ação afirmativa para o ingresso nos cursos de graduação. Desde 2004, a universidade adota um modelo de bonificação com acréscimo de pontos na nota do vestibular aos estudantes oriundos de escolas públicas e autodeclarados pretos, pardos e indígenas. Entre as críticas recebidas pelo programa, destaca-se o impacto diminuto da política no tocante ao ingresso de negros (pretos e pardos) e indígenas. A insistência e ressonância destas críticas na comunidade acadêmica – e penso que tão somente elas – foram responsáveis por algumas mudanças significativas no sistema de bonificação que, entre outras consequências, conseguiu elevar o número de estudantes negros ingressantes através do concurso vestibular. Os números, entretanto, continuam abaixo da representação demográfica da população negra no estado de São Paulo e não impactam de maneira semelhante todos os cursos.

A proposta a ser votada nos próximos dias tem como principal subsídio o relatório do grupo de trabalho – reivindicado e instituído com a responsabilidade de organizar três audiências públicas no segundo semestre de 2016 – formado por representantes das organizações que pautaram o tema das cotas na paralisação estudantil (Frente Pró-Cotas e Núcleo de Consciência Negra), professores e funcionários.  Em síntese, e à luz de amplo debate sobre o papel da universidade pública no combate ao racismo e às desigualdades sociais, bem como de uma avaliação minuciosa das experiências de implementação de cotas, o que se propõe para Unicamp é uma política de reserva de vagas (cotas) informada por critérios sociais e raciais.

Cotas - Audiências

Primeira Audiência – Cotas e ações afirmativas: perspectiva histórica e o papel da Universidade Pública no Brasil, 13.10.2016. Fonte: Jornal da Unicamp 

Desde fevereiro, o relatório e proposta inicial do GT têm sido amplamente discutidos em diferentes espaços da Unicamp, tendo encontrado em alguns momentos resistências mais ou menos sistemáticas. Levada pelo movimento e pela força da condição e das circunstâncias – se assim posso dizer – como membro do GT que elaborou o relatório, tenho participado de vários debates com diferentes grupos e em várias unidades, atravessando inclusive a “confortável e previsível” fronteira das ciências humanas, conversando com professores, alunos e funcionários da área de saúde, das engenharias, das ciências exatas. Embora em muitos momentos tenha me sentido teletransportada para os acalorados debates ocorridos entre 2002 e 2006 – o que obviamente nos remete ao franco atraso e à resistência da Universidade de Campinas, em particular, e das universidades paulistas em geral, em relação às políticas de ação afirmativa baseadas no princípio das cotas – o debate atual tem algo de contemporâneo. Assim, mesmo a reprodução dos velhos argumentos, quando repostos no momento político atual, redimensiona e atualiza as antigas resistências.

Confesso, com certa hesitação, a recorrência de certos argumentos pôs à prova minha considerável paciência e capacidade de argumentação! “Ninguém sabe quem é negro no Brasil”. “As cotas colocarão em perigo os centros de excelências”. “As cotas enxugam gelo! Precisamos melhorar o ensino básico”. Diante destes argumentos a apresentação de dados que demonstram as desigualdades raciais no tocante à renda, educação, saúde e segurança, amplamente divulgados e debatidos há décadas, os estudos e avaliações que atestam o desempenho positivo dos cotistas e os resultados acadêmicos da diversidade, bem como as limitações das políticas universalistas no combate às desigualdades raciais, nem sempre foi bem sucedida.

Sem muita precisão metodológica, arrisco identificar uma face coletiva neste conjunto de argumentos. Nas entrelinhas da argumentação de impossibilidade de uma política de acesso ao ensino superior que defina metas e priorize os grupos que estão sub-representados ou ausentes na universidade pública se revela a defesa da manutenção de privilégios que não são jamais questionados na sua natureza histórica. Desse modo, a defesa do centro de excelência tem por suposto a universalidade de uma elite científica e intelectual. Diante das reticências deste grupo, cujo desconhecimento – proposital ou contingente – do histórico de implantação das cotas no Brasil frequentemente remetia a discussão à estaca zero, os versos de BNegão foram evocados como consolo: “Sigo na batida, a frequência desse pensamento não pode ser captada com perfeição por um receptor enferrujado pelos padrões do dia-a-dia/Enxugando o gelo, sua realidade segura por um fiapo de cabelo”.

É certo que o debate sobre as cotas extrapola os muros dos centros de excelência – o que não é nenhuma novidade – mas, de certa forma, singularmente se recoloca no contexto político atual. Políticas de ampliação da cidadania, o que quer dizer, direitos políticos, acesso aos bens materiais e de prestígio são inadmissíveis para a pequena parcela de privilegiados da sociedade brasileira. Desde a minha “área de conforto”, ou seja, olhando para o passado, não tenho dúvidas de que a interpretação é pertinente. Mas o que realmente me preocupa neste momento são as consequências desta pertinência para o futuro da nossa fragilizada democracia.

Cotas Já − Para que uma reunião de estudantes negros/as não seja convite para piada sobre quilombo?

Ana Flávia Magalhães Pinto, pós-doutoranda e doutora em História pela Unicamp

Considerada a segunda melhor universidade da América Latina, pelo QS University Rankings, a Unicamp se orgulha de ser uma referência na pesquisa acadêmica no Brasil e manter “a liderança entre as universidades brasileiras no que diz respeito a patentes e ao número de artigos per capita publicados anualmente em revistas indexadas na base de dados ISI/WOS”. Vendo através dessas lentes, mesmo que a instituição não esteja entre as cem melhores do mundo, estaríamos legitimados a falar tranquilamente sobre qualidade e excelência. Todavia, é o atraso da Unicamp que a torna digna de atenção no atual cenário. Um atraso perante a democracia, que também poderia ser visto por meio de números, mas que é facilmente percebido nas salas de aula e nos espaços abertos da universidade.

A presença de estudantes negros (pretos e pardos) nos cursos de graduação segue sendo empiricamente tímida, a despeito do que dizem as estatísticas divulgadas nos resultados de vestibular e dados de matrícula. Diante desse fato, a dificuldade e a demora da Unicamp, como instituição, em reconhecer o maior impacto das políticas de cotas em relação a outras políticas de ação afirmativa voltadas ao enfrentamento das desigualdades sociorraciais, como o PAAIS, a colocam em situação de atraso e nos obriga a seguir fazendo um debate recuado em relação ao que se encontra bastante avançado em outras universidades brasileiras.

Sindicato de Empregadas Domésticas Campinas

Sindicato das Empregadas Domésticas de Campinas em apoio à implementação das cotas na Unicamp. Fonte: Núcleo de Consciência Negra da Unicamp.

A despeito de toda a disputa discursiva, ideológica, política etc. que se vivenciou desde pelo menos o início dos anos 2000, a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), de 26 de abril de 2012, projetou a discussão para um outro nível. Ou seja, quando a suprema corte julgou improcedente a ação movida pelo partido Democratas (DEM), em 2009, contra o programa de ingresso de estudantes negros da UnB, reconheceu a constitucionalidade das políticas de cotas raciais nas universidades, e as considerou como medidas necessárias para corrigir o histórico de discriminação racial no Brasil; uma etapa decisiva foi cumprida, tendo como desdobramento imediato a promulgação da Lei n. 12.711, de 29 de agosto 2012, e a posterior Lei n. 12.990, de 9 de junho de 2014, que versa sobre a reserva de vagas em concursos públicos.

A lei federal, por certo, não rege o funcionamento de universidades estaduais, como a Unicamp, o que faz com que as coisas tenham aqui uma trajetória particular. E, por falar em particularidades e generalidades, às vésperas da votação pelo Conselho Universitário da proposta de incorporação das cotas raciais na política de acesso à graduação, me peguei pensando sobre episódios corriqueiros que ajudam a entender como o atraso desta universidade pôde ser não apenas tolerado, mas também tomado como marca de prestígio. As cenas não se limitam a registros de dor, mas mesmo as demonstrações de afeto e solidariedade estabelecidas por nós, pessoas negras, estão infelizmente conectadas a violências, porque funcionam como mecanismo de defesa e reação a hostilidades.

Logo que ingressei na Unicamp para cursar o doutorado, em 2009, achava um barato ser cumprimentada por funcionários/as negros/as que reconheciam com facilidade a novidade da minha presença nas áreas públicas da universidade e me lançavam um sorriso suave e uma faísca no olhar ao passar por mim, gestos de uma cumplicidade silenciosa. O mais divertido era saber que isso acontecia com outros/as poucos/as colegas também negros/as. Da mesma forma, era motivo de festa cada vez que se sabia de um/a estudante negro/a aprovado/a no processo de seleção de qualquer programa de pós-graduação. O costume da exclusão fazia com que as doses homeopáticas de inclusão fossem sentidas como porções cheias.

Essa sensação agradável, porém, logo tinha seu encanto roubado ao fatalmente se adquirir o hábito de ficar apreensiva/o já antes de entrar nas bibliotecas sabendo que, a qualquer momento, mais um/a estudante branco/a poderia te abordar pedindo para que você procurasse algum livro ou prestasse algum serviço pra ele/a. Ou ainda quando um/a colega de curso se mostrava surpreso/a por você dominar mais do que o conteúdo das disciplinas, sobretudo por não entender como isso se casava com sua profunda erudição sobre os “Pagodes Anos 90”, antes de isso se tornar moda entre a galera “cult-bacaninha”. E o que dizer quando um professor, ao avistar um grupo de estudantes negros reunidos em volta de uma mesa pública do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, se aproximou e perguntou com ar de empolgação: “Isso aqui é um quilombo?”.

Os registros do atraso da Unicamp em prejuízo à promoção da democracia no Brasil que poderiam ser feitos por estudantes, funcionários/as concursados/as e terceirizados/as, e os/as poucos/as professores/as negros/as dariam para a edição de muitos volumes, repletos de informações suficientes para evidenciar a fragilidade da excelência da instituição. Isso, aliás, serviria muito bem para marcar a inquestionável legitimidade das políticas de cotas, defendidas hoje por mais gente além de nós negros, ainda minoria nesse espaço. Seja como for, o momento agora é para que posicionamentos sejam tomados. Diante da mobilização que rompe os limites da universidade, no dia 30, saberemos até que ponto a Unicamp gosta de avanço, liderança e bons conceitos.

A luta antirracista e o poder ser: afrontes e a construção de um novo projeto humanista

Taina Aparecida Silva Santos, graduanda em História pela Unicamp

Entre luzes e som, só encontro, meu corpo, a ti. Velho companheiro das ilusões de caçar a fera. Corpo de repente aprisionado pelo destino dos homens de fora. Corpo/mapa de um país longínquo que busca outras fronteiras, que limitam a conquista de mim. Quilombo mítico que me faça conteúdo da sombra das palavras. Contornos irrecuperáveis que minhas mãos tentam alcançar (Beatriz Nascimento, O conceito de quilombo e a resistência cultural negra [1977]. In: Alex Ratts. Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo:Imprensa Oficial, 2006).

 Entre todos os processos que compõem a luta pela implementação das cotas raciais na Unicamp, um especial, tem me chamado muito a atenção, não pelo fato de eu fazer parte disto, mas, sim, pela sensação de sentir-me pertencente ou ligada a algo que muitos outros negros e negras com que partilho esses momentos andam percebendo também. Demarco a experiência desses corpos pretos, primeiramente, pela violência a que o racismo os submetem pelo simples fato de existirem. Essa reflexão é importante, pois, chegado o momento que a discussão tomou grandes proporções a ponto de tornar-se imprescindível que a comunidade como um todo, acadêmica ou não, tomasse posições verbalizadas, silenciosas, favoráveis ou contrárias, acredito que, para aquelas e aqueles de pele escura, essa questão sacudiu nossas identidades pessoais e coletivas. Algo complexo que, ao refletir sobre, me vejo mais desvendando um caminho, um mapa, do qual ainda não sei as fronteiras e nem onde conseguirei alcançar, porém, a cada dia que passa, fica mais evidente que esse mapa são os nossos corpos, como nos lembra Beatriz Nascimento (Cf. Christen Smith. Lembrando Beatriz Nascimento: quilombos, memórias e imagens negras radicais. In: Sidney Chalhoub e Ana Flávia Magalhães Pinto (orgs.). Pensadores negros, pensadoras negras: séculos XIX e XX. Belo Horizonte: Fino Traço, 2016). Corpos que, no contexto em questão e até na experiência da formação de movimentos negros no Brasil e na diáspora, têm constituído um território negro.

Marcha Antirracista (66)

Ato durante a Greve Unicamp, 2016. Fonte: Núcleo de Consciência Negra da Unicamp.

Desde que iniciei meus estudos na Unicamp, em 2014, eu participo de um grupo de negras e negros que se reúne uma vez por semana, durante o horário do almoço, em umas mesinhas que ficam na parte central da Universidade – PB. Ao me aproximar desses estudantes acabei conhecendo os outros poucos negros e negras – estudantes, funcionários e professores presentes nessa ilha branca da cidade de Campinas, que atuavam, circularam ou circulavam em torno do Núcleo de Consciência Negra, outros grupos que tiveram composição e atuação semelhante dentro ou fora da universidade. Conheci, também, pretos e pretas que não fizeram parte de nenhum grupo do tipo, porém, independentemente de cada de nós, 2016 presenciamos algo inédito na história da Unicamp: a universidade parou com a eclosão de uma greve estudantil, na qual a denúncia do racismo tomou proporções incríveis e as cotas raciais junto com a ampliação das políticas de permanência estudantil tornaram-se uma das pautas principais da mobilização.

Protagonizados pelos estudantes negros, os embates para convencer as pessoas de que a violência que aflige as nossas vidas importam foram duros e acirrados, em muitos momentos até dolorosos, pois, se pensarmos na presença negra na Unicamp, esses afrontamentos vêm de muito antes dessa greve. Entretanto, a politização em torno da discussão das cotas que se transformou numa “quizumba”, como diria Lélia Gonzalez, abriram os meus olhos para perceber os significantes dos nossos corpos como territorialidades multilocalizadas em determinados tempos nesse espaço, pois uma série de outros estudantes negros, para além daquele grupo que se reunia todas as sextas-feiras nas mesinhas do PB, ao meio dia, passou a tomar para si essa luta também, tensionando o cotidiano inquestionável a ponto instaurar um clima no qual se deu a entender que situações racistas não passariam mais em branco, nem em silêncio. É certo que nem eu, nem nenhum dos meus colegas invetou a roda da luta antirracista na Unicamp, que isso seja lembrado, em respeito àquelas e àqueles que vieram antes de nós. Porém, muitas conversas “não colam mais”, principalmente àquelas que tentam justificar uma naturalização da nossa ausência em espaços como uma universidade pública que é mantida com nosso dinheiro. Nossas vozes, se multiplicaram e estamos avançando no sentido de nos compreendermos enquanto sujeitos de direito inscritos em corpos que se constituem enquanto territórios políticos.

A mobilização encadeada pela discussão sobre o desprezo que a Unicamp – enquanto reflexo da realidade social, política e econômica brasileira, em especial, paulista – vem alimentando em relação às nossas vidas, logo, também, em relação às políticas de combate ao racismo, evidenciou uma territorialidade para além de um espaço físico, apontando para uma rede entre nossos corpos que conectou os negros e negras que ali estavam. Acabou, também, potencializando a compreensão de uma linguagem entre nós que ampliou a sensibilidade no que diz respeito àquilo que nos fere, o que, também intensificou a altura dos nossos gritos.

Esse processo tem sido curioso, pois a conexão entre nós está longe de se dar no âmbito de uma possível essência. Pelo contrário, esse território é constituído sobre muitas diferenças e contradições que fazem parte do ser. No entanto, todos esses movimentos têm nos mostrado que essas possibilidades causadas pela interrelação entre corpos negros e esse espaço tão hostil indicam a necessidade da reformulação de um novo pacto de humanidade, pois, se é sobre racismo que estamos falando, reconhecer a desumanização das populações negras e indígenas como um dos maiores massacres da nossa sociedade é essencial para compreender a dimensão de um problema que ainda perdura nas nossas vidas.

Sendo assim, não para concluir, mas sim, para passar a bola nesse momento de reflexão que essa luta, entre outras, nos inspira, compartilho as palavras de Abdias do Nascimento:

“Os negros têm como projeto coletivo a ereção de uma sociedade fundada na justiça, na igualdade e no respeito a todos os seres humanos, na liberdade; uma sociedade cuja natureza intrínseca torne impossível a exploração econômica e o racismo. Uma democracia autêntica, fundada pelos destituídos e os deserdados desse país, aos quais não interessa a simples restauração de tipos e formas caducas de instituições políticas, sociais e econômicas as quais serviram unicamente para procrastinar o advento de nossa emancipação total e definitiva que somente pode vir com a transformação radical das estruturas vigentes. Cabe mais uma vez insistir,: não nos interessa a proposta de uma adaptação aos moldes de sociedade capitalista e de classes. Essa não é a solução que devemos aceitar como se fora mandamento inelutável. Confiamos na idoneidade mental do negro, e acreditamos na reinvenção de nós mesmos e da nossa história. Reinvenção de um caminho afro-brasileiro de vida fundado em sua experiência histórica, na utilização do conhecimento crítico e inventivo de suas instituições golpeadas pelo colonialismo e o racismo” (Abdias do Nascimento. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1980).

Corpos Pretos, conselhos brancos: racismo acadêmico e cotas raciais na Unicamp

Giovana Xavier, Professora de Ensino de História UFRJ e coordenadora do Grupo Intelectuais Negras

Recentemente, fui convidada a contribuir com um artigo para o terceiro número do jornal do Coletivo Nuvem Negra da PUC, uma organização incrível de universitários pretos que, dentre outras ações, deram vida à destemida campanha “Quantas Professores Negros a PUC-Rio tem?”, que traz como objetivo a realização de um censo racial da categoria docente na universidade em que estudam. Pois bem.

O grupo de estudantes, nos quais se destacam jovens lideranças como Lucas de Deus e Yasmin Thainá, solicitou-me dedicar algumas linhas ao legado das Intelectuais Negras nas universidades brasileiras, dentre as quais podemos e devemos sempre lembrar de Azoilda Loretto da Trindade, Beatriz Nascimento, Lelia Gonzales, Luiza Bairros para ficarmos com algumas. Para mim, professora universitária que faz questão de explicitar sua raça e titulação através da identidade Preta ‘Dotora’, o convite do Coletivo despertou, além do orgulho e da importância de apoiar as novas gerações, a reflexão do quanto as conquistas alcançadas até aqui são irreversíveis.

Marcha Antirracista (29)

Ato durante a Greve Unicamp, 2016. Fonte: Núcleo de Consciência Negra da Unicamp.

Pensar nessa irreversibilidade, expressa na hashtag #nenhumdireitoamenos, significa também refletir o quanto nossas conquistas têm sido construídas às custas de muitas violências às quais nossos corpos pretos estão submetidos, dentro e fora do espaço acadêmico. Como a conversa aqui é in-academia e pautada por historiadoras Pretas, rememoro algumas das minhas histórias como estudante de doutorado na Unicamp, sempre na esperança de que as palavras lançadas nos fortaleçam e inspirem para a construção de projetos políticos que nos representem.

A primeira delas − um trauma com o qual tive de lidar por muitos anos − refere-se à hostilidade de meus colegas de turma de doutorado quando apresentei meu projeto de pesquisa na linha de História Social da Cultura (Cecult). À ocasião, a investigação focava-se na temática dos concursos de beleza negra em São Paulo nas primeiras décadas do século XX. Até hoje fico a me perguntar: qual seria o problema: a beleza ou o negra? Muitas são as respostas, mas nenhuma delas nos exime de algo com o qual temos de lidar como corpos pretos no mundo acadêmico branco: o preço de ser identificada e interpretada como a exceção do seu grupo racial. Ser exceção na Unicamp fez com que eu passasse quatro horas sujeita a “conselhos” bem intencionados sobre como “escrever melhor”, “procurar temas de pesquisas mais adequados”, “programas de pós-graduação que combinassem mais comigo”. O mais cool de tudo isso é que prestei bastante atenção em todas as dicas. Menos de um ano depois da conclusão do doutorado estava eu concursada e empregada como Professora Adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Namastê!

A segunda história, também passada no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, refere-se a uma situação em sala de aula. Ao realizar uma disciplina obrigatória, o professor, que dentro das contradições que só as elites brancas têm o direito de experimentar, não era muito chegado a lecionar, dividiu o programa de seu curso em seminários, que ficaram sob a nossa responsabilidade. Ao longo de um semestre, cada grupo de pós-graduandos escolhia seu tema, preparava um seminário e apresentava à turma. Um dos grupos, composto por pessoas brancas, em sua maioria com sobrenomes dominados pelas consoantes (o que é autoexplicativo das muitas facetas do privilégio) apresentou-nos a biografia de Primo Levi. Lembro-me que o grupo levou a turma às lágrimas, dadas as tragédias e violências ignóbeis do Nazismo alemão. Recordo também que havia na sala, algumas exceções da pele preta, além de mim. Ufa!

Lá pelas tantas, interrompi o grupo e pontuei o quanto como historiadores deveríamos discutir qual grupo tem o direito de ter sua história interpretada a partir da categoria “holocausto”. Seria oportuno debatermos os diferentes status entre “holocausto” do povo judeu e “genocídio” da população negra. Torta de climão servida, o professor, figura rara nas suas próprias aulas, lembrou-me educadamente que existiam muitos poucos negros nas universidades, por isso as pesquisas sobre escravidão, tráfico e desumanização eram tão escassas. A colega ao meu lado, ostentando suas consoantes, olhou-me de cima a baixo, com a certeza escravocrata de que cada um tem seu lugar e lançou: “se não está satisfeita, faça você mesma pesquisas sobre sua história e sua gente”.

***

Se de boas intenções o inferno está cheio, fica a pergunta: o que seria dos corpos pretos sem os conselhos brancos?

Quando olho para trás e vejo onde chegamos hoje, enche-me de orgulho estar de fora e de dentro de uma Unicamp na qual os lugares da mesa estão sendo bagunçados. A votação, no próximo 30 de maio no Conselho Universitário da Unicamp, sobre a proposta de mudança da política de ações afirmativas para ingresso na graduação, me faz cantar:

Eles querem que alguém / Que vem de onde nóis vem / Seja mais humilde, baixa a cabeça / Nunca revide, finja que esqueceu a coisa toda.

 Não esqueceremos! Afinal, aprendemos com Mãe Beatá de Iemonjá, transformada ontem em estrela, que quantas vezes voltarmos à terra retornaremos Negros.

Mãe Beata

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Lima Barreto, Hilton Cobra e as muitas vidas que vão além da morte

A matéria-prima da literatura, sem muita possibilidade de fuga, é a vida, seja a vivida diretamente por quem escreve, as que se dão a observar ou ainda as cabíveis na imaginação. Como, então, o registro das vivências com as quais um/a escritor/a trabalha literariamente pode ser prejudicial ao bom resultado de seus escritos? O problema estaria no que vem fraturado na origem ou no que é fraturado pelo contato, pela recepção? Em que termos e quando se estabelece o desencontro entre o/a autor/a, sua obra e o mundo no qual ambos buscaram e buscam existir?

Afonso Henriques de Lima Barreto, nasceu negro, livre, filho de pais também negros e livres, no Rio de Janeiro, em 13 de maio de 1881. Ao longo de quatro décadas, fez-se homem numa cidade que se expandia de modo intenso e desigual, e ousou acreditar que ele e o que tinha a dizer mereciam ser considerados. Ousadia não porque vivesse numa sociedade em que, de antemão, as pessoas não pudessem falar. A lei maior republicana defendia a valorização dos talentos e virtudes de seus cidadãos, tal como fizera a carta magna imperial… Brasileiro, não sendo mendigo, analfabeto, mulher ou militar de baixa patente (e olhe lá), qualquer indivíduo estaria apto a exercer até mesmo o direito ao voto.

Lima Barreto

Lima Barreto, 1909.

Ironias à parte, a ousadia começava quando, no trato cotidiano, a conversa se fazia outra. O país de Lima Barreto fora fundado na escravidão de africanos e seus descendentes, onde as possibilidades de liberdade e cidadania para essas pessoas se construíram em paralelo a crenças e costumes que as reivindicavam como incompatíveis e faltas de habilidades à condição de sujeitos autônomos. Ser humano convicto, Lima fez-se, pois, um atrevido incorrigível, que insistia em se incomodar com o “sentimento geral da [sua] inferioridade [ser] decretada a priori (Recordações do Escrivão Isaías Caminha), com o fato de “a capacidade mental dos negros [ser] sempre discutida a priori e a dos brancos, a posteriori” (Diário Íntimo).

Morreu, em 1922, na véspera do dia de finados, deixando o legado de uma vida que resultou em romances, contos, crônicas e mais um tanto de papeis escritos com objetivos diversos, nos quais, de modo natural ou intencional, deu vazão ao que Lélia Gonzalez chamaria tempos depois de “pretuguês”, produto de vidas que promoveram a africanização do português falado no Brasil. A despeito de interdições constantes, que atingiram até mesmo seu direito de andar nas ruas de sua cidade, interagiu com o mundo e criou personagens, diálogos, cenas que pareceram cruas e indigestas demais ao paladar dos adversários/críticos autorizados a dar a medida da sua obra e da sua própria pessoa. É que sua literatura força a presença de homens e mulheres negras e outros indesejados no primeiro plano, num momento de esforço concentrado para entendê-los como parte de um passado em vias de esquecimento e desaparição.

Não por acaso, ao longo de décadas, palavras como ressentimento, mágoa, isolamento, excentricidade, inadequação, estranheza, recalque e impotência se tornaram recorrentes nas mais diversas oportunidades para se falar a seu respeito e de tudo a ele relacionado. Difícil não construir a partir daí a imagem do fracasso ou quando muito de um sucesso trágico, com o qual não cabe estabelecer identificação positiva. Apresentado como sujeito desconectado do que seria a postura pressuposta e regular a outros “homens de cor” mais velhos e da sua geração, a Lima Barreto caberia o lugar de pária, exemplo incomum e inadequado de alguém que teria forçado a barra para falar de um racismo entranhado no paraíso da mestiçagem. Eis as linhas gerais de como se promover a fratura de uma pessoa, de um escritor e de uma obra.

Traga-me a cabeça de Lima Barreto, monólogo interpretado por Hilton Cobra, chega aos palcos, neste conturbado 2017, como um exercício de cura compartilhada com o público, no qual somos convidadas/os a ver o escritor negro como protagonista de um acerto de contas com o passado que cria novas possibilidades de futuro. “E quantas mortes existam, muitas, nelas eu viverei. Pois se em vida me submeti às mais sórdidas humilhações, em morte não cederei” – diz o personagem Lima Barreto, antes do início do seu confronto com as sete teses fundamentais defendidas por um grupo de eugenistas que requerem a exumação de seu corpo, a fim de examinar o cérebro desse homem que deveria ser geneticamente incapaz de produzir intelectualmente bem, porque não representante de uma raça tida como superior.

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Hilton Cobra, em Traga-me a cabeça de Lima Barreto, 2017. Foto: Valmyr Ferreira.

Ao longo de uma hora, temos assim o prazer de assistir à comissão formada por vivos e mortos da estirpe de Renato Kehl, Nina Rodrigues, Afrânio Peixoto, Fernando Azevedo, Gobineau e Monteiro Lobato ser contestada por um Lima Barreto que, a despeito de carregar suas dores, não se constrange ou se intimida mesmo diante de recorrentes tentativas de uso da autoridade dos renomados homens de ciência para controlá-lo e silenciá-lo. Em vez disso, é seu desejo de falar que orienta o tempo, o que é aproveitado para que possa até mesmo dialogar consigo mesmo, com sua ancestralidade, seus fantasmas, afetos e desafetos íntimos.

Sob a direção de Fernanda Júlia, diretora do Nata − Núcleo Afro-Brasileiro de Teatro de Alagoinhas e com texto assinado pelo experiente dramaturgo Luiz Marfuz, o espetáculo marca os 40 anos de vida artística e profissional de Cobra e é dedicado à “bem lembrada” Luiza Bairros, mulher que o “fez negro e a partir daí participou de forma decisiva de todas as etapas da [sua] vida”. Ele que é o fundador da Cia dos Comuns (2001); criador do Fórum de Performance Negra (2005) e do Festival Olonadé – A Cena Negra Brasileira (2010); e articulador do movimento Akoben – Por uma política cultural honesta (2012), ações catalizadoras do teatro negro nas últimas décadas.

Tal como a literatura de Lima, o teatro de Hilton Cobra é militante. Negrator, este. Negritor, aquele. Juntos, tornam-se uma presença arrebatadora! Ao se encontrarem no palco, celebram as vidas, as muitas, insistentes e desabusadas vidas negras, tal como debocha Lima em Cobra: “Em 1923, um político brasileiro, cujo nome não convém lembrar, afirmou que, na fusão de duas raças, venceria sempre a superior. E que, por isso, no Brasil, o negro desapareceria dentro de setenta anos. Bem, já lá se vão quase cem. E nós continuamos aqui. De plantão. Calados ou indignados, ressentidos ou revoltados, derrotados ou bem-sucedidos e, mais do que bem-nascidos, seremos sempre muito bem-lembrados”.

A primeira temporada da peça esteve em cartaz até hoje, dia 7 de maio, no Teatro Sesc Copacabana, no Rio Janeiro. Eu, que vi as duas últimas apresentações, saí com a sensação de que muito mais gente teria e merecia dizer sobre sua interação com o espetáculo, que não termina quando as luzes se apagam. Há rumores de que logo, logo estará de volta e que, se fizermos a nossa parte como público, a fúria transformadora do “pretiço barreto escritor” pode ir muito além da capital carioca.

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“Essa história é o presente”

Hoje, 23 de abril, se festejou São Jorge em diferentes partes do Brasil, mas no Rio de Janeiro tal celebração, como sempre, assumiu especial importância. Desde a meia-noite se escutaram fogos e vivas por diversos cantos da cidade e muitos admiradores e fiéis do santo se juntaram para aguardar a alvorada em frente aos templos católicos que a ele são dedicados. Durante o dia, a sua imagem circulou por ruas da cidade em cortejo.

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Rio de Janeiro, bairro do Estácio, 23 de abril de 2017. Foto de Fernanda Crespo.

Em terreiros os tambores tocaram para Ogun, orixá trazido das terras iorubanas da África pelos escravizados e que aqui foi identificado com o guerreiro católico. Conta a história que Jorge, guerreiro nascido na Turquia, com trajetória de muitas bravuras, recusou a obedecer a ordem do Imperador romano Diocleciano e por isso foi condenado. Ogun, em sua origem protetor da agricultura, guardião da forja e patrono dos ofícios manuais, na diáspora africana no Brasil passou a ser representado carregando a espada com a qual é reconhecido como o vencedor das demandas. Dois, mas para muitos, um só.

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É verdade que o santo católico do dia é reivindicado como patrono pelas forças da repressão assim como pelos seus combatentes. Mas, nessa noite, nas ruas da cidade dos cariocas, sobretudo nas esquinas do centro velho e do subúrbio e nas comunidades, sobressai sua face de aguerrido defensor dos desfavorecidos. E é dessa face que eu me lembro quando não consigo esquecer a condenação do jovem Rafael Braga.

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E vem também à mente história de Ana Liz. E me recordo dos rostos negros na galeria dos condenados da Casa de Correção do Rio de Janeiro no século dezenove – rico e emocionante acervo de imagens e histórias disponível na Biblioteca Nacional. .

Domingos_liberto

Junto a essas imagens me chegam também à memória os anúncios de fuga de escravizados nos jornais da cidade na mesma época, trazendo a descrição por vezes detalhada da aparência com a indicação de marcas corporais que assinalavam o sofrimento daquelas pessoas – em sua maioria jovens, muitas ainda crianças.

 

Nesse momento, chega forte a frase de James Baldwin no “Eu não sou seu negro”, excelente documentário sobre a história de luta por direitos dos negros estadunidenses: “a história não é o passado. Essa história é o presente”. Assim como é presente o racismo na nossa sociedade, que não foi revogado com a legislação que aboliu a escravatura nem mesmo com os avanços da Constituição Federal que o reconheceu como crime inafiançável e imprescritível.

Na alvorada de Jorge e Ogun, o que se pode pedir é outra justiça. Essa é a demanda de nossos dias em que crianças e jovens negros continuam morrendo a cada poucos minutos, como registram as estatísticas oficiais assustadoras. É uma demanda forte no nosso país, cujo povo tem todas as razões para duvidar daqueles que foram encarregados da criação, aplicação e ponderação das leis. Que venham outros santos e orixás para ajudar e fortalecer, serão muito necessários porque a luta é grande, e há muitas frentes. Como diz a letra da linda canção de Moacyr Luz, Medalha de São Jorge: “a malvadeza desse mundo é grande em extensão”. Mas, que principalmente possamos nos fortalecer – nós, nesse plano terrenal, juntos, contra essa maldade toda, tão forte e tão antiga.

Está chegando o dia 28 de abril, data da greve geral nacional, convocada para lutarmos contra a perda de nossos direitos, e contra as reformas pretendidas pelo governo – que só viriam a aprofundar a exclusão e a injustiça. Será um momento para que tudo isso possa ser dito em alto e bom som. E que se diga e se repita até lá. Não podemos, nem vamos esquecer. E a perseverança vai ganhar do sórdido, como também disse outra canção feita pra Jorge, lindamente interpretada pelo Soul de Brasileiro.

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“Defrontamo-nos com a feroz urgência do agora” – Luther King é bom para a Humanidade

Na última terça-feira, 4 de abril, celebrou-se e problematizou-se o 50º aniversário do discurso Beyond Vietnam: a time to break silence [Além do Vietnã: um tempo de romper o silêncio], que o reverendo Martin Luther King Jr. proferiu na Riverside Church, próxima ao coração do Harlem, em Nova York, em 1967. Menos lembrado que o I have a dream, proferido durante a Marcha de Washington de 1963, esse discurso, escrito em parceria com o historiador Dr. Vincent Harding, marca o momento em que Luther King se posiciona enfaticamente contra a guerra e se afasta de uma fidelidade nacionalista ingênua.

Beyond Vietnan

Martin Luther King, em 4 de abril de 1967, na Riverside Church. Sentados: Rabino Abraham Heschel, Dr. Henry Steele Commanger e Dr. John C. Bennett.

 

Ainda que marcando um distanciamento do comunismo, Luther King acusava a guerra de ser “inimiga dos pobres” e defendia uma ação revolucionária pautada na solidariedade entre os povos, suas agendas de luta e o respeito pela Humanidade numa escala global. Conectava, portanto, a luta pelos direitos civis dos negros estadunidenses com esforços do povo vietnamita em defesa de sua independência do domínio francês. Denunciava a retirada de investimentos governamentais para a superação da pobreza interna para financiar a destruição de outros povos no exterior, e a desproporção de jovens negros enviados ao país asiático, quando esses eram desrespeitados como cidadãos enquanto estavam em solo nacional. E ia além. Apontava para o fato de que a ação violenta de seu país obrigava gerações futuras a responder por atrocidades injustificáveis cometidas contra outras nações como Guatemala, Peru, Venezuela, África do Sul, Moçambique, Camboja, Tailândia…

A conjuntura de emergências de lutas contra as desigualdades e injustiças cobrava posicionamentos sérios e responsáveis: “Esta é uma época para as verdadeiras escolhas e não para as falsas. Este é o momento em que as nossas vidas devem ser colocadas em jogo, se a nossa nação quiser sobreviver à própria insensatez. Toda pessoa de convicções humanitárias deve escolher o protesto que melhor convém às suas crenças, mas todos devemos protestar”.

Para além de nos fazer pensar sobre a cilada em que novamente se meteram os EUA − nação composta por grupos populacionais de todo o mundo sub-representados politicamente, mas numericamente representativos para o funcionamento do país −, o discurso de Luther King cai como uma luva não apenas para refletir sobre os significados da recente ação de Trump na Síria e suas medidas e as ameaças contra o México e países islâmicos. Revisitar esse passado serve como um convite a olhar nossas próprias histórias de ontem e de hoje.

A propósito, assistir ao vídeo da palestra de Jair Bolsonaro, deputado pelo Partido Social Cristão (PSC), representante da extrema direita, na sede da Hebraica-Rio, no último dia 3, me fez pensar que as palavras de Luther King seriam boas não apenas para os judeus, como dizia o avô da Keila Grinberg, mas para toda a Humanidade. Durante uma hora, foi dada oportunidade a um bufão fascista falar atrocidades racistas, machistas, sexistas, homofóbicas e elitistas e ainda ser aplaudido calorosamente por seu público seleto num lugar em que isso deveria ser terminantemente inviável.

A gravidade do fato faz com que as reações tenham que ir além do louvável protesto promovido por um grupo de judeus na porta da Hebraica no momento da palestra, registrado no vídeo O ovo da serpente; bem como das ações protocoladas pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e a Frente Favela Brasil, perante a Procuradoria-Geral da República em Brasília e o Ministério Público Federal no Rio. Há uma espécie de obrigação coletiva em defesa da vida a ser respeitada e com urgência. Se há quem se encante pelas atuais faces do totalitarismo, precisamos explicitar os múltiplos rostos das e dos que não abrem mão de desejar uma sociedade livre e de fato democrática. Pensar a esse respeito me remeteu a outros tempos, em que um desejo de solidariedade entre judeus, negros e nordestinos conseguiu algum resultado no Brasil.

Em outubro de 1992, Luiza Erundina, mulher e nordestina, era a prefeita de São Paulo. Diante do aumento do registro de ataques neonazistas a judeus, negros e nordestinos, um grupo de organizações realizou naquele mês o lançamento do Movimento de Entidades Democráticas contra o Ressurgimento do Nazismo e Todas as Formas de Discriminação, na sede da OAB-São Paulo. As cerca de trinta entidades envolvidas eram lideradas pelo Geledés – Instituto da Mulher Negra, a Federação Israelita do Estado de São Paulo e o Centro de Tradições Nordestinas. Numa ação posterior, reunindo cerca de dez mil pessoas no Vale do Anhangabaú, realizou-se um importante ato de repúdio ao racismo e de afirmação das identidades étnico-raciais e religiosas das comunidades agredidas.

Semanas antes daquele lançamento, a Polícia Federal havia prendido um líder de um grupo defensor da supremacia branca, sob a acusação de ele ter participado da invasão à rádio Atual, dedicada à cultura nordestina, deixando gravadas nas paredes frases racistas. Outros casos eram investigados, mas não demorou muito para que novos ataques com a mesma motivação fossem promovidos. O trágico assassinato do jovem negro, de 16 anos, Fabio Henrique Oliveira Santos, espancado até a morte por 30 “carecas” em abril de 1993 teve desfecho irreversível. Afora isso, como noticiou o Djumbay, jornal negro de Pernambuco, na edição de maio de 1993, as mulheres de Geledés passaram a receber na sede do Instituto cartas anônimas ameaçadoras. Uma delas apresentava este conteúdo:

“Aberta a temporada de caça as galinhas de Angola. Pagarão caro pela prisão de nossos líderes, negros malditos. Pensam que os brancos da África são idiotas para cederem o que é deles por direito, pedaços de carne podre ambulante? Sabemos como agem, onde e quando. Por isso parem de nos provocar.”

A articulação antirracista em São Paulo não se intimidou e conquistou a criação da primeira Delegacia de Crimes Raciais do Brasil ainda em 1993, iniciativa replicada em outras localidades, como o Rio de Janeiro no ano seguinte. Certamente esse foi um momento importante de quebra de silêncio e empenho pela criação e o fortalecimento de laços de solidariedade. O Geledés, por exemplo, desde 1991, havia implementado o SOS Racismo, um serviço de assessoria jurídica, cujos dados foram bastante úteis quando da criação da delegacia especial.

SOS Racismo

Geledés

No entanto, como avaliou Sueli Carneiro, fundadora do próprio Geledés, já em 2001, quando uma nova onda de forte violência racista precisou ser enfrentada: “O sucesso dessas ações nos conduziu ao erro de baixar a vigilância, de nos desarticular e de nos desmobilizar depois de empurrar para sombras os herdeiros de Hitler, ou seja nos esquecemos do ovo da serpente” (Sueli Carneiro. Pelo direito de ser. In: Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2001, p. 43).

Vivemos situação semelhante mais uma vez, e não estamos em meio a uma farsa. Diferentemente dos anos 1990, em que as ações discriminatórias e até mesmo letais poderiam ser circunscritas à ação de jovens ideologicamente confusos aproveitados por lideranças escondidas, agora temos os promotores do ódio abertamente defendendo suas convicções de opressão e massacre de populações negras, indígenas, pobres, mulheres, nordestinos/as, homossexuais, etc., ocupando cadeiras no parlamento, nas igrejas, discursando em espaços de prestígio, que conferem legitimidade ao que dizem.

O que observou Luther King, para os EUA de 1967, nos serve bastante bem cinquenta anos depois: “Não mais poderemos suportar o culto do deus do ódio ou curvar-nos diante do altar da retaliação. Os oceanos da história tornaram-se turbulentos pelas sempre crescentes marés do rancor. A história está abarrotada de naufrágios de nações e indivíduos que seguiram o caminho do ódio autodestrutivo. […] Defrontamo-nos com a feroz urgência do agora”.

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O discurso Beyond Vietnan foi traduzido para o português e publicado em: KING, Martin Luther. Um apelo à consciência: os melhores discursos de Martin Luther King. Rio de Janeiro: J. Zahar Ed., 2006.

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Samba na universidade

No dia 21 de março passado, no Salão Nobre do prédio histórico da UFRJ no Largo de São Francisco de Paula número 1, centro do Rio de Janeiro, o compositor, escritor e intelectual Martinho da Vila ministrava a aula magna de início de semestre do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A sala estava lotada, não havia lugar nem no chão, todos os espaços foram tomados por estudantes, professores e funcionários e pelo público externo que compareceu ao evento acadêmico. Na sua fala, Martinho trouxe ideias sobre a importância da universidade e sobre o racismo. Sua presença nesse dia também fazia referência à data da aula magna – quando se celebra um dia de luta e de dor na história da população negra no mundo.

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Martinho da Vila ministrando aula magna no Instituto de História da UFRJ

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Aula inaugural de Martinho da Vila no Instituto de História da UFRJ

Em 21 de março de 1960, no bairro de Shaperville, na cidade de Joanesburgo, na África do Sul, aproximadamente vinte mil pessoas protestavam contra a lei do passe que passaria a obrigar a população negra do país a carregar um documento que permitiria a minoria branca no poder ter maior controle sobre a sua movimentação. O protesto pacífico, de absoluta maioria negra, com muitos estudantes jovens, foi reprimido com truculência pelas tropas do governo sul-africano, levando à morte sessenta e nove pessoas e ferindo outras cento e sessenta e nove. Essa ação violenta do regime racista do apartheid, que ficou conhecida como Massacre de Shaperville causou grande comoção local e também no mundo, levando a que a Organização das Nações Unidas passasse a estabelecer a data como Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial.

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Massacre de Shaperville, África do Sul

A presença do sambista em local de destaque e reconhecimento acadêmico nesse dia em especial teve relação não apenas com o significado dessa data, mas também com as mudanças pelas quais as universidades brasileiras vêm passando. Nos últimos anos, principalmente em função das ações afirmativas implantadas no acesso de alunos às universidades públicas, tem havido sensível alteração no perfil dos estudantes de graduação e pós-graduação. E, acompanhando essa transformação, tem crescido o ativismo negro e ampliado os espaços de debate sobre temas que são trazidos pelas demandas desses grupos. A aula magna de Martinho da Vila no IH-UFRJ, além de fazer parte do calendário acadêmico oficial, esteve também vinculada a uma série de eventos incluídos na campanha denominada 21 dias de ativismo contra o racismo, iniciativa inédita de diversos grupos e instituições desenvolvida em diferentes espaços do Rio de Janeiro durante o mês de março, para discutir e visibilizar diversas frentes de luta contra a discriminação racial. O resultado dessas inúmeras iniciativas e encontros tendo como foco a luta contra o racismo terá sua atividade de encerramento amanhã, segunda-feira, dia 27 de março, numa atividade na UERJ, marcando com a militância o espaço dessa universidade que, sendo pioneira na adoção de políticas de ação afirmativa e com reconhecido mérito acadêmico em diversas áreas do conhecimento, vem sofrendo um gravíssimo processo de desmonte por parte do governo estadual.

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21 dias de ativismo contra o racismo: encerramento

Martinho da Vila atualmente frequenta o curso de Relações Internacionais numa universidade privada, iniciativa que teve a partir de sua nomeação como embaixador da ONU junto aos países de língua portuguesa, e fez público seu entusiasmo e interesse sobre o que vem aprendendo. Citou inclusive um de seus professores mais admirados, o antropólogo Jacques D’Adesky, que estava presente. A aula magna de Martinho da Vila e o que disse sobre a luta contra o racismo fez lembrar a linda letra do samba de Candeia, Dia de Graça, que diz: “E cante o samba na universidade. E verás que seu filho será príncipe de verdade. Aí então jamais tu voltarás ao barracão. ” Certamente não se pode tomar a poesia ao pé da letra, a luta para não voltar ao barracão ainda se revela longa. Mas, sem dúvida, a entrada de mais estudantes negros e pobres na universidade contribui decisivamente para a desconstrução de formas de pensar o mundo e a história e, sobretudo, de agir frente a ela. A academia se beneficia, e mais ainda a sociedade. O dia de graça é um dia como foi esse mesmo, e de outras formas de escuta e diálogo que devem vir.

Dia de Graça, samba de Candeia

Considerar a presença de novos sujeitos no campo acadêmico relaciona-se diretamente com luta contra o racismo e também com a necessidade de um compromisso permanente com a defesa da história e da memória das populações que foram longamente silenciadas. Isso traz à preocupação preservar e valorizar lugares de memória da população africana, como o Cemitério de Pretos Novos, na zona portuária da cidade do Rio de Janeiro. Trata-se muito provavelmente do mais importante campo santo de inumação de africanos recém-chegados às Américas em toda a diáspora africana no continente. Hoje, o local que vem sendo à duras penas conservado e aberto à visitação e pesquisa, está ameaçado por falta de apoio mínimo para seu custeio. Nossos ancestrais, que sobreviveram à travessia, mas não à vida como cativos recentemente desembarcados, exigem nossa atuação para que a materialidade de sua história continue a ser objeto de estudo e conhecimento. O Instituto de Pretos Novos resiste, e não está sozinho.

#IPNresiste

Durante sua fala, Martinho da Vila também cantou e fez cantar a letra de outro samba, de Dona Ivone Lara, Sorriso Negro, e chamou a atenção para a frase “Negro sem emprego, fica sem sossego...”, contextualizando as consequências desses difíceis dias que a sociedade brasileira vem passando, com a presente ameaça aos direitos conquistados em anos de luta e frente às reformas que atingem especialmente os trabalhadores. Em diversos momentos recorreu à poesia de sambas para trazer à plateia suas reflexões. Nessa ocasião de aprendizagem memorável, mostrou uma vez mais que essas e outras produções culturais negras e populares têm muito a dizer na academia. Celebramos um dia de luta nos encantando com a inteligência e a elegância do intelectual sambista, conscientes da importância de nos mantermos juntos e firmes para os novos embates.

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