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Lima Barreto, Hilton Cobra e as muitas vidas que vão além da morte

A matéria-prima da literatura, sem muita possibilidade de fuga, é a vida, seja a vivida diretamente por quem escreve, as que se dão a observar ou ainda as cabíveis na imaginação. Como, então, o registro das vivências com as quais um/a escritor/a trabalha literariamente pode ser prejudicial ao bom resultado de seus escritos? O problema estaria no que vem fraturado na origem ou no que é fraturado pelo contato, pela recepção? Em que termos e quando se estabelece o desencontro entre o/a autor/a, sua obra e o mundo no qual ambos buscaram e buscam existir?

Afonso Henriques de Lima Barreto, nasceu negro, livre, filho de pais também negros e livres, no Rio de Janeiro, em 13 de maio de 1881. Ao longo de quatro décadas, fez-se homem numa cidade que se expandia de modo intenso e desigual, e ousou acreditar que ele e o que tinha a dizer mereciam ser considerados. Ousadia não porque vivesse numa sociedade em que, de antemão, as pessoas não pudessem falar. A lei maior republicana defendia a valorização dos talentos e virtudes de seus cidadãos, tal como fizera a carta magna imperial… Brasileiro, não sendo mendigo, analfabeto, mulher ou militar de baixa patente (e olhe lá), qualquer indivíduo estaria apto a exercer até mesmo o direito ao voto.

Lima Barreto

Lima Barreto, 1909.

Ironias à parte, a ousadia começava quando, no trato cotidiano, a conversa se fazia outra. O país de Lima Barreto fora fundado na escravidão de africanos e seus descendentes, onde as possibilidades de liberdade e cidadania para essas pessoas se construíram em paralelo a crenças e costumes que as reivindicavam como incompatíveis e faltas de habilidades à condição de sujeitos autônomos. Ser humano convicto, Lima fez-se, pois, um atrevido incorrigível, que insistia em se incomodar com o “sentimento geral da [sua] inferioridade [ser] decretada a priori (Recordações do Escrivão Isaías Caminha), com o fato de “a capacidade mental dos negros [ser] sempre discutida a priori e a dos brancos, a posteriori” (Diário Íntimo).

Morreu, em 1922, na véspera do dia de finados, deixando o legado de uma vida que resultou em romances, contos, crônicas e mais um tanto de papeis escritos com objetivos diversos, nos quais, de modo natural ou intencional, deu vazão ao que Lélia Gonzalez chamaria tempos depois de “pretuguês”, produto de vidas que promoveram a africanização do português falado no Brasil. A despeito de interdições constantes, que atingiram até mesmo seu direito de andar nas ruas de sua cidade, interagiu com o mundo e criou personagens, diálogos, cenas que pareceram cruas e indigestas demais ao paladar dos adversários/críticos autorizados a dar a medida da sua obra e da sua própria pessoa. É que sua literatura força a presença de homens e mulheres negras e outros indesejados no primeiro plano, num momento de esforço concentrado para entendê-los como parte de um passado em vias de esquecimento e desaparição.

Não por acaso, ao longo de décadas, palavras como ressentimento, mágoa, isolamento, excentricidade, inadequação, estranheza, recalque e impotência se tornaram recorrentes nas mais diversas oportunidades para se falar a seu respeito e de tudo a ele relacionado. Difícil não construir a partir daí a imagem do fracasso ou quando muito de um sucesso trágico, com o qual não cabe estabelecer identificação positiva. Apresentado como sujeito desconectado do que seria a postura pressuposta e regular a outros “homens de cor” mais velhos e da sua geração, a Lima Barreto caberia o lugar de pária, exemplo incomum e inadequado de alguém que teria forçado a barra para falar de um racismo entranhado no paraíso da mestiçagem. Eis as linhas gerais de como se promover a fratura de uma pessoa, de um escritor e de uma obra.

Traga-me a cabeça de Lima Barreto, monólogo interpretado por Hilton Cobra, chega aos palcos, neste conturbado 2017, como um exercício de cura compartilhada com o público, no qual somos convidadas/os a ver o escritor negro como protagonista de um acerto de contas com o passado que cria novas possibilidades de futuro. “E quantas mortes existam, muitas, nelas eu viverei. Pois se em vida me submeti às mais sórdidas humilhações, em morte não cederei” – diz o personagem Lima Barreto, antes do início do seu confronto com as sete teses fundamentais defendidas por um grupo de eugenistas que requerem a exumação de seu corpo, a fim de examinar o cérebro desse homem que deveria ser geneticamente incapaz de produzir intelectualmente bem, porque não representante de uma raça tida como superior.

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Hilton Cobra, em Traga-me a cabeça de Lima Barreto, 2017. Foto: Valmyr Ferreira.

Ao longo de uma hora, temos assim o prazer de assistir à comissão formada por vivos e mortos da estirpe de Renato Kehl, Nina Rodrigues, Afrânio Peixoto, Fernando Azevedo, Gobineau e Monteiro Lobato ser contestada por um Lima Barreto que, a despeito de carregar suas dores, não se constrange ou se intimida mesmo diante de recorrentes tentativas de uso da autoridade dos renomados homens de ciência para controlá-lo e silenciá-lo. Em vez disso, é seu desejo de falar que orienta o tempo, o que é aproveitado para que possa até mesmo dialogar consigo mesmo, com sua ancestralidade, seus fantasmas, afetos e desafetos íntimos.

Sob a direção de Fernanda Júlia, diretora do Nata − Núcleo Afro-Brasileiro de Teatro de Alagoinhas e com texto assinado pelo experiente dramaturgo Luiz Marfuz, o espetáculo marca os 40 anos de vida artística e profissional de Cobra e é dedicado à “bem lembrada” Luiza Bairros, mulher que o “fez negro e a partir daí participou de forma decisiva de todas as etapas da [sua] vida”. Ele que é o fundador da Cia dos Comuns (2001); criador do Fórum de Performance Negra (2005) e do Festival Olonadé – A Cena Negra Brasileira (2010); e articulador do movimento Akoben – Por uma política cultural honesta (2012), ações catalizadoras do teatro negro nas últimas décadas.

Tal como a literatura de Lima, o teatro de Hilton Cobra é militante. Negrator, este. Negritor, aquele. Juntos, tornam-se uma presença arrebatadora! Ao se encontrarem no palco, celebram as vidas, as muitas, insistentes e desabusadas vidas negras, tal como debocha Lima em Cobra: “Em 1923, um político brasileiro, cujo nome não convém lembrar, afirmou que, na fusão de duas raças, venceria sempre a superior. E que, por isso, no Brasil, o negro desapareceria dentro de setenta anos. Bem, já lá se vão quase cem. E nós continuamos aqui. De plantão. Calados ou indignados, ressentidos ou revoltados, derrotados ou bem-sucedidos e, mais do que bem-nascidos, seremos sempre muito bem-lembrados”.

A primeira temporada da peça esteve em cartaz até hoje, dia 7 de maio, no Teatro Sesc Copacabana, no Rio Janeiro. Eu, que vi as duas últimas apresentações, saí com a sensação de que muito mais gente teria e merecia dizer sobre sua interação com o espetáculo, que não termina quando as luzes se apagam. Há rumores de que logo, logo estará de volta e que, se fizermos a nossa parte como público, a fúria transformadora do “pretiço barreto escritor” pode ir muito além da capital carioca.

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“Defrontamo-nos com a feroz urgência do agora” – Luther King é bom para a Humanidade

Na última terça-feira, 4 de abril, celebrou-se e problematizou-se o 50º aniversário do discurso Beyond Vietnam: a time to break silence [Além do Vietnã: um tempo de romper o silêncio], que o reverendo Martin Luther King Jr. proferiu na Riverside Church, próxima ao coração do Harlem, em Nova York, em 1967. Menos lembrado que o I have a dream, proferido durante a Marcha de Washington de 1963, esse discurso, escrito em parceria com o historiador Dr. Vincent Harding, marca o momento em que Luther King se posiciona enfaticamente contra a guerra e se afasta de uma fidelidade nacionalista ingênua.

Beyond Vietnan

Martin Luther King, em 4 de abril de 1967, na Riverside Church. Sentados: Rabino Abraham Heschel, Dr. Henry Steele Commanger e Dr. John C. Bennett.

 

Ainda que marcando um distanciamento do comunismo, Luther King acusava a guerra de ser “inimiga dos pobres” e defendia uma ação revolucionária pautada na solidariedade entre os povos, suas agendas de luta e o respeito pela Humanidade numa escala global. Conectava, portanto, a luta pelos direitos civis dos negros estadunidenses com esforços do povo vietnamita em defesa de sua independência do domínio francês. Denunciava a retirada de investimentos governamentais para a superação da pobreza interna para financiar a destruição de outros povos no exterior, e a desproporção de jovens negros enviados ao país asiático, quando esses eram desrespeitados como cidadãos enquanto estavam em solo nacional. E ia além. Apontava para o fato de que a ação violenta de seu país obrigava gerações futuras a responder por atrocidades injustificáveis cometidas contra outras nações como Guatemala, Peru, Venezuela, África do Sul, Moçambique, Camboja, Tailândia…

A conjuntura de emergências de lutas contra as desigualdades e injustiças cobrava posicionamentos sérios e responsáveis: “Esta é uma época para as verdadeiras escolhas e não para as falsas. Este é o momento em que as nossas vidas devem ser colocadas em jogo, se a nossa nação quiser sobreviver à própria insensatez. Toda pessoa de convicções humanitárias deve escolher o protesto que melhor convém às suas crenças, mas todos devemos protestar”.

Para além de nos fazer pensar sobre a cilada em que novamente se meteram os EUA − nação composta por grupos populacionais de todo o mundo sub-representados politicamente, mas numericamente representativos para o funcionamento do país −, o discurso de Luther King cai como uma luva não apenas para refletir sobre os significados da recente ação de Trump na Síria e suas medidas e as ameaças contra o México e países islâmicos. Revisitar esse passado serve como um convite a olhar nossas próprias histórias de ontem e de hoje.

A propósito, assistir ao vídeo da palestra de Jair Bolsonaro, deputado pelo Partido Social Cristão (PSC), representante da extrema direita, na sede da Hebraica-Rio, no último dia 3, me fez pensar que as palavras de Luther King seriam boas não apenas para os judeus, como dizia o avô da Keila Grinberg, mas para toda a Humanidade. Durante uma hora, foi dada oportunidade a um bufão fascista falar atrocidades racistas, machistas, sexistas, homofóbicas e elitistas e ainda ser aplaudido calorosamente por seu público seleto num lugar em que isso deveria ser terminantemente inviável.

A gravidade do fato faz com que as reações tenham que ir além do louvável protesto promovido por um grupo de judeus na porta da Hebraica no momento da palestra, registrado no vídeo O ovo da serpente; bem como das ações protocoladas pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e a Frente Favela Brasil, perante a Procuradoria-Geral da República em Brasília e o Ministério Público Federal no Rio. Há uma espécie de obrigação coletiva em defesa da vida a ser respeitada e com urgência. Se há quem se encante pelas atuais faces do totalitarismo, precisamos explicitar os múltiplos rostos das e dos que não abrem mão de desejar uma sociedade livre e de fato democrática. Pensar a esse respeito me remeteu a outros tempos, em que um desejo de solidariedade entre judeus, negros e nordestinos conseguiu algum resultado no Brasil.

Em outubro de 1992, Luiza Erundina, mulher e nordestina, era a prefeita de São Paulo. Diante do aumento do registro de ataques neonazistas a judeus, negros e nordestinos, um grupo de organizações realizou naquele mês o lançamento do Movimento de Entidades Democráticas contra o Ressurgimento do Nazismo e Todas as Formas de Discriminação, na sede da OAB-São Paulo. As cerca de trinta entidades envolvidas eram lideradas pelo Geledés – Instituto da Mulher Negra, a Federação Israelita do Estado de São Paulo e o Centro de Tradições Nordestinas. Numa ação posterior, reunindo cerca de dez mil pessoas no Vale do Anhangabaú, realizou-se um importante ato de repúdio ao racismo e de afirmação das identidades étnico-raciais e religiosas das comunidades agredidas.

Semanas antes daquele lançamento, a Polícia Federal havia prendido um líder de um grupo defensor da supremacia branca, sob a acusação de ele ter participado da invasão à rádio Atual, dedicada à cultura nordestina, deixando gravadas nas paredes frases racistas. Outros casos eram investigados, mas não demorou muito para que novos ataques com a mesma motivação fossem promovidos. O trágico assassinato do jovem negro, de 16 anos, Fabio Henrique Oliveira Santos, espancado até a morte por 30 “carecas” em abril de 1993 teve desfecho irreversível. Afora isso, como noticiou o Djumbay, jornal negro de Pernambuco, na edição de maio de 1993, as mulheres de Geledés passaram a receber na sede do Instituto cartas anônimas ameaçadoras. Uma delas apresentava este conteúdo:

“Aberta a temporada de caça as galinhas de Angola. Pagarão caro pela prisão de nossos líderes, negros malditos. Pensam que os brancos da África são idiotas para cederem o que é deles por direito, pedaços de carne podre ambulante? Sabemos como agem, onde e quando. Por isso parem de nos provocar.”

A articulação antirracista em São Paulo não se intimidou e conquistou a criação da primeira Delegacia de Crimes Raciais do Brasil ainda em 1993, iniciativa replicada em outras localidades, como o Rio de Janeiro no ano seguinte. Certamente esse foi um momento importante de quebra de silêncio e empenho pela criação e o fortalecimento de laços de solidariedade. O Geledés, por exemplo, desde 1991, havia implementado o SOS Racismo, um serviço de assessoria jurídica, cujos dados foram bastante úteis quando da criação da delegacia especial.

SOS Racismo

Geledés

No entanto, como avaliou Sueli Carneiro, fundadora do próprio Geledés, já em 2001, quando uma nova onda de forte violência racista precisou ser enfrentada: “O sucesso dessas ações nos conduziu ao erro de baixar a vigilância, de nos desarticular e de nos desmobilizar depois de empurrar para sombras os herdeiros de Hitler, ou seja nos esquecemos do ovo da serpente” (Sueli Carneiro. Pelo direito de ser. In: Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2001, p. 43).

Vivemos situação semelhante mais uma vez, e não estamos em meio a uma farsa. Diferentemente dos anos 1990, em que as ações discriminatórias e até mesmo letais poderiam ser circunscritas à ação de jovens ideologicamente confusos aproveitados por lideranças escondidas, agora temos os promotores do ódio abertamente defendendo suas convicções de opressão e massacre de populações negras, indígenas, pobres, mulheres, nordestinos/as, homossexuais, etc., ocupando cadeiras no parlamento, nas igrejas, discursando em espaços de prestígio, que conferem legitimidade ao que dizem.

O que observou Luther King, para os EUA de 1967, nos serve bastante bem cinquenta anos depois: “Não mais poderemos suportar o culto do deus do ódio ou curvar-nos diante do altar da retaliação. Os oceanos da história tornaram-se turbulentos pelas sempre crescentes marés do rancor. A história está abarrotada de naufrágios de nações e indivíduos que seguiram o caminho do ódio autodestrutivo. […] Defrontamo-nos com a feroz urgência do agora”.

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O discurso Beyond Vietnan foi traduzido para o português e publicado em: KING, Martin Luther. Um apelo à consciência: os melhores discursos de Martin Luther King. Rio de Janeiro: J. Zahar Ed., 2006.

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Bolsonaro não é bom para os judeus

Era começarmos a discutir uma questão política polêmica que meu avô, com ar matreiro e indiscutível sotaque ídiche, vinha com a clássica pergunta: isso é bom para os judeus? Só depois de ponderar a respeito ele dava sua opinião. Lembrei do meu avô a propósito do convite da Hebraica-Rio ao deputado de extrema-direita do PSC para palestrar no clube em evento exclusivo para convidados no próximo dia 03 de abril.

A Hebraica já conheceu dias melhores. Criado na década de 1950, o clube abrigou gerações de judeus cariocas que frequentavam a piscina, jogavam bola e biriba, iam à boate e às aulinhas de artesanato aos sábados. Hoje o clube aluga seus espaços para empresas de esportes, aloca uma pequena escola religiosa e um ou outro evento comunitário. A comunidade judaica mudou e, ao que parece, vem deixando a Hebraica para trás.

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Fayga Ostrower e o mural de sua autoria na Hebraica-Rio. Rio de Janeiro, 1962. Acervo Instituto Fayga Ostrower

A questão é que mesmo pouco frequentada, a Hebraica ainda é, e sempre será, uma casa judaica. E casas judaicas não abrigam fascistas.

Todos os anos lembramos da tragédia do Holocausto. Muitos sobreviventes relatam a revolta que sentiram ante a indiferença de seus vizinhos e amigos que nada fizeram para impedir a ascensão do nazismo. Não ajudaram os judeus porque o nazismo não era com eles. Para aqueles que acham que as ideias propagadas por Bolsonaro não lhes dizem respeito, esta é a hora de mostrarmos que não esquecemos do Holocausto. Que não somos indiferentes.

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Acervo International Day Against Fascism, http://dayagainstfascism.eu

Que ninguém se engane: quem diz “sem essa de Estado laico, somos um Estado cristão” não está do lado dos judeus. Quem é a favor da tortura e do estupro não pode estar do lado dos judeus. Homofóbicos não estão do lado dos judeus. Racistas são contra os judeus. Bolsonaro não é bom para os judeus.

Essa pergunta meu avô imigrante que fugiu do anti-semitismo na Russia jamais faria, mas é bom repetir a resposta porque parece que muita gente bem-intencionada ainda não entendeu: não, Bolsonaro não é bom para os judeus. E a indiferença não é uma opção.  

Carta aberta à Hebraica

Protesto contra a palestra marcado para 18:15h na calçada oposta à Hebraica. #Nãoemnossonome

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Fogo na Dor: o #8M e os temerários perigos da história única

Foi em fevereiro que pipocou na minha timelaje o chamado para uma Greve Internacional de Mulheres no dia 08 de março de 2017. As autoras, dentre as quais se incluem Angela Davis, Nancy Fraser e Tithi Bhattacharya, provocavam-nos a manter acesa a onda de protestos observada nas marchas de mulheres contra Trump, em 21 de janeiro nos EUA.

Autoras Greve Internacional #8M

Intelectuais Feministas autoras do Manifesto à Greve Internacional das Mulheres.

No documento, as ativistas conclamavam mulheres a lutarem por um feminismo que represente 99% das pessoas, revisando erros e acertos e focando na importância de uma agenda expandida – anti-racista, anti-imperialista, anti-heterossexista e anti-neoliberal – para os movimentos com este recorte. Por aqui, feministas negras do naipe de Deise Benedito e Lúcia Xavier aderiram à mobilização, compartilhando reflexões e propondo ações ligadas ao cenário brasileiro nas redes sociais. A rápida adesão por milhões de mulheres confirmou a impossibilidade crescente de separar o mundo e o ativismo em “real” e “virtual”. Afinal, em um país de maioria feminina, campeão em índices de feminicídio, trabalho doméstico e lesbobitransfobia, o que pode ser mais real do que conclamar as mulheres para irem às ruas lutarem por direitos trabalhistas, de saúde e segurança?

O fato é que este cenário de mobilização é alimentado porque sentimos na pele que nossas conquistas enquanto mulheres estão cotidianamente ameaçadas por políticas conservadoras, elaboradas por um patriarcado do século XXI, no qual o lar, os filhos e o orçamento doméstico definem, sem parcimônia, o “ser mulher”. Se não por acaso o conclame ao #8M, é assinado majoritariamente por mulheres “de cor” (women of color) no Brasil é preciso sempre lembrar que esse violento processo de biologização e hierarquização dos gêneros repercute de forma incisiva na vida das mulheres negras  em todos os campos.

Esse impacto confirma a importância de identificar os eixos de opressão que se articulam, como defendeu Kimberlé Crenshaw, ao criar nos anos 1990, o conceito de interseccionalidade. Trata-se de categoria central para compreender que classe é definida pelas experiências de raça, raça pelas experiências de gênero, gênero pelas experiências de sexualidade e assim sucessivamente. Nessa lógica, percebemos que a ausência de Mulheres Negras nos centros e notas de rodapé é prática corriqueira na academia, como narrado em “De mãos dadas com minha irmã: solidariedade feminista”, texto de bell hooks que nos ajuda a compreender a falta de nexo no modo de pautar o Racismo Estrutural, para dar um exemplo “à brasileira”.

Como as histórias não são únicas este 08 de março foi palco de uma conquista significativa. Na batalha por representatividade na mídia, tivemos Taís Araújo estreando no programa Saia Justa e narrando na primeira pessoa o Brasil brasileiro da falsa democracia racial que mata 23 jovens negros por minuto.

Tais Araújo - Saia Justa

A atriz e apresentadora Taís Araújo.

A fala da atriz, sintonizada com as agendas dos movimentos negros e feministas, no Canal GloboSat GNT, representa uma vitória para Mulheres Negras como a designer gráfica Maria Julia Ferreira, autora da campanha GNT Se Você Não Me Vê Eu Não Vejo Você!!!, de 2013.

Maria Julia Ferreira - GNT

A auto narrativa de Taís assim como as intervenções altamente qualificadas de Djamila Ribeiro em sua participação no Programa Estúdio I dedicado ao Dia Internacional da Mulher confirmam também a importância da luta por estarmos em todos os lugares. A inteligência que nos faz caminhar das margens para o centro, apropriando-nos das contradições e produzindo saberes em nome do fortalecimento da comunidade negra e de nossas pautas.

#8M - Dja Ribeiro

A filósofa e intelectual pública Djamila Ribeiro.

Nessa caminhada destaca-se o direito ao bem viver, reivindicado pela Marcha das Mulheres Negras e por ativistas como Dona Debora Silva, do Movimento das Mães de Maio. Direito este diariamente aniquilado como demonstra a triste história de João Victor de Souza de Carvalho, mais um de nossos meninos brutalmente impedido de ser humano aos 13 anos.João Victor de Souza

Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

Para seguirmos todos os dias pensando e praticando o #8M de forma interseccional e condizente com a realidade brasileira, também destacamos a criatividade e a força da psicóloga da UFRJ Luciene Lacerda, feminista negra idealizadora da Campanha 21 dias de Ativismo contra o Racismo. Abraçado por ativistas negros (e brancos) de diferentes áreas, o movimento realiza durante o mês de março centenas de atividades relacionadas à luta contra o racismo no Rio de Janeiro, na Baixada Fluminense e em Macaé.

#8M-21dias

A luta por existir e reexistir como insistimos atinge de forma específica mulheres negras, conforme comprovam os dados do IPEA no estudo Retrato das desigualdades. Lançada no último 06 de março, a pesquisa reúne dados sobre trabalho, família e escolaridade entre mulheres no país entre 1995 e 2015 e também foi lembrada no instigante texto da jornalista Luciana Barreto, que conecta rostos e vozes de intelectuais negras como Mônica Lima e Nathália Braga em celebração à nossa ancestralidade.

#8M - Luciana Barreto

Luciana Barreto, jornalista da TV Brasil

#8M - Luciene Lacerda

Na boa companhia de Luciene Lacerda, idealizadora da Campanha 21 Dias de Ativismo  Contra o Racismo. Foto: Daniele Grazinoli.

No meu mural do “Dia sem Mulher”, tem lugar cativo o texto “Calar é preciso” da jornalista Flávia Oliveira, propositalmente publicado no after day. Flavia, nossa intelectual negra que  em breve estreia como apresentadora do TED – Compartilhando Ideias, no Canal Futura, tacou fogo na dor narrando em números e reflexões densas a vulnerabilidade a que estão sujeitas às mulheres brasileiras dentro da combinação reforma política e restrição orçamentária. Tem assento permanente também mulheres como Dona Débora Silva, que carregam a sabedoria de transformar morte em vida frente ao genocídio da população negra.#8M - Flavia Oliveira

Flávia Oliveira, colunista do jornal O Globo

#8M - Mães de Maio

Dona Débora Silva, ativista do Movimento Mães de Maio.

Se na luta por sermos visíveis e respeitadas, Chimamanda Adichie ensinou-nos que muitas histórias importam, é hora dela própria repensar que as muitas mulheridades também importam. Nesse sentido, é o momento de todas Nós lutarmos em busca de um sol amarelo no qual o direito às identidades de gênero brilhe para além do pênis e da vagina. Essa travessia é oposta à trilhada por feminismos dito “radicais” que naturalizam a história única, biologizando experiências de gênero e distorcendo o sentido político de  radicalidade, originário da insurgência política negra nas lutas pela liberdade.

E por falar nas muitas histórias que verdadeiramente nos importam, encerramos o texto com o registro da banca de defesa de monografia da estudante Isadora dos Santos Nascimento. Após cumprir os ritos acadêmicos com toda a competência e sensibilidade herdada de nossas ancestrais, a jovem publicou malandramente em seu Instagram: #vaiterpretapedagoga.

#8M - Isadora Nascimento

A pedagoga Isadora dos Santos Nascimento comigo, a Profa. Dra. Núbia Oliveira e o Prof. Dr. Sergio Luiz Baptista na cerimônia defesa da monografia intitulada Relações étnico-raciais nos manuais didáticos de História do 4 e do 5 ano dos anos iniciais do Ensino Fundamental: análise das imagens da população negra na Faculdade de Educação da UFRJ.

No 08 de Março e sempre UM SALVE a Isadora, à Dona Débora e a todas as Mulheres Negras do Brasil e do mundo por lutarmos de múltiplas formas pelo direito de existir e reexistir.

Axé!

#8M - Mulheres Negras

Feministas Negras na Greve Internacional das Mulheres, 08 de março no Rio de Janeiro.

 

 

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O que é uma Anticandidatura? Em apoio à indicação de Beatriz Vargas ao Supremo Tribunal Federal

A vacância de uma cadeira no Supremo Tribunal Federal com a morte do Ministro Teori Zavascki, relator dos processos da Lava Jato, colocou no centro do debate público a seguinte pergunta: o que se deseja de alguém que venha a ocupar um assento na Máxima Corte?

Considerando o papel do STF na defesa da Constituição da República Federativa do Brasil, gostaríamos que a pessoa indicada, além de atender aos requisitos obrigatórios de nacionalidade brasileira, cidadania plena, reputação ilibada e notável saber jurídico, seja uma praticante da empatia no seu sentido macropolítico. Mas o que isso quer dizer exatamente?

Que defendemos que a vaga do STF seja preenchida por uma juíza que possua conhecimentos críticos em pautas cruciais à manutenção de um regime democrático no Brasil: equidade de gênero, raça, sexualidade, reforma agrária, segurança pública, sistema penitenciário. Por isso, expressamos nosso apoio a Beatriz Vargas, indicada por diversas organizações dos movimentos sociais (Mulheres, Indígenas, Negros, LGBT) e ativistas independentes como a advogada adequada ao preenchimento da vaga.

Quando falamos em Anticandidatura, não estamos indicando um nome a Temer, mas fortalecendo o debate público sobre a importância de um Poder Judiciário com representantes escolhidos de forma democrática e condizente com as principais questões a serem enfrentadas no Brasil.

Neste contexto, o termo Anticandidatura refere-se à urgência de apresentar formalmente ao Presidente Michel Temer uma contraproposta de nossa autoria à indicação de Alexandre Moraes, uma vez que o mesmo distancia-se dos requisitos que consideramos necessários para compor o grupo dos onze ministros do STF.

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Dona de longa trajetória no Direito, a Anticandidata Beatriz Vargas é docente da UnB, referência nos debates sobre descarcerização do sistema penitenciário e possui destacada atuação na defesa dos direitos humanos, em especial no que tange ao Movimento Sem-Teto, às crianças e adolescentes e à diversidade racial e de gênero.

Reforçando nosso potencial de sujeitas políticas na luta pela democracia, convidamos todas (os) a assinarem conosco o Manifesto da Anticandidatura Feminista de Beatriz Vargas ao STF

Amanhã, 15/02 às 10h, o documento será entregue ao Senado no Plenário 6 da Ala Nilo Coelho. O ato contará com a participação de feministas de todo o Brasil.

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“Reza de Mãe” para que a Casa Grande siga surtando!!

 

“Domingo era dia de refresco, mas o suco vinha morno” (Reza de Mãe, p. 59)

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Lançamento de Reza de Mãe na Aparelha Luzia, 3.11.2016

Todos os dias, Vingança traveste-se de Esperança, toma lá uma talagada de café e se lança como protagonista de uma sequência dinâmica e monótona de ações que falam da vida e do seu inverso. Vingança tem seus múltiplos sentidos e feições. É gente homem, mulher, criança, jovem e pessoa que carrega o peso de ter visto muito acontecer, mas pouca coisa mudar.

Vingança é a desforra de diariamente sobreviver à guerra de entrar no busão/trem lata de sardinha/navio negreiro, para encarar o esculacho do subemprego e da subalternidade; de aprender a beber pouca água e segurar a bexiga para suportar a viagem de horas até o centro da cidade ou a volta de lá; de engolir a humilhação sofrida “quando perguntou se ia receber sua paga”; de chegar em casa, encontrar a filha já dormindo e mesmo assim contar histórias emboladas, pedir proteção à santa para que os “esgotos” não alcancem a pureza da menina e, sem sentir, desabar no sono…

Vingança é também encarar torcidas rivais e se firmar ponta de lança em torneio de futebol de bairro no fim de semana; trocar solidariedade com outras iguais na fila da visita e não sucumbir após as “três cocorinhas”; é matar e também morrer para ridicularizar a quem tanto ajudou a rebaixar outras vidas; é comemorar uma conquista besta, mas grande porque coletiva e sair pela quebrada juntando pau para fazer fogueira na companhia do pequeno parceiro.

E Vingança boa é ainda transformar tudo isso em sustento para a prosa, desafiar modelos narrativos e colocar a gente negra e periférica no centro da escrita literária, com suas falas, seus medos, sonhos, felicidades e frustrações. E não se trata apenas de temática, coisa de interesse de quem alimenta fascínio por um cotidiano alheio, que cabe em determinadas páginas dos jornais, mas segue estranho aos catálogos de livros de literatura, sobretudo se escritos por quem, de tanto naturalizar, desnaturalizou essas e outras cenas e histórias.

Eis o “troco” passado por Allan da Rosa em seu novo livro Reza de Mãe e outros contos, cuja primeira reunião de lançamento aconteceu na Ação Educativa, no último 17 de outubro, e que já foi recebido em outros espaços de cultura negra de São Paulo, como a Aparelha Luzia, o Núcleo de Consciência Negra e o GRES Quilombo. A responsabilidade da publicação foi confiada e assumida pela Editora Nós, empresa criada ano passado pela jornalista e escritora Simone Paulino, com foco em projetos literários inovadores. Não por acaso, é assim que se expressam seus anseios editoriais: “Vamos ser plurais, democráticos, inclusivos, afetivos. Princípio este que se reflete também na concepção da marca – uma palavra única, de três letras, mas indivisível, com um centro aberto no qual as pessoas e as ideias poderão entrar”. De fato, será muito importante que isso aconteça e permaneça!

Pois marcando a estreia do autor na prosa de ficção, as 104 páginas que compõem o volume são o primeiro resultado concentrado das andanças que o escritor Allan da Rosa têm feito por veredas outras que as da poesia. Historiador, angoleiro, mestre e doutorando em Educação pela Universidade de São Paulo (USP), homem negro, morador do Taboão da Serra e caminhador do mundo, ele havia publicado Vão (Edições Toró, 2005); Morada, com Guma (Edições Toró, 2007); Da Cabula (Prêmio Nacional de Dramaturgia Negra, 2014); Zagaia (DCL, 2007); A Calimba e a Flauta, com Priscila Preta (Capulanas, 2012); e Pedagoginga, Autonomia e Mocambagem (Aeroplano, 2013).

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Reza de Mãe, aliás, mais do que um novo caminho, parece-me um adensamento desse esforço reflexivo que vem de alguns anos, em que literatura, educação, ancestralidade, arte e história são postos em diálogo, a fim de garantir a conversa com quem não pode ficar de fora dela. Sem cair num didatismo simplificador, os quinze textos mantêm estreita relação com princípios da própria Pedagoginga, já que: “Lâmina e dádiva que atravessa a Pedagoginga é sim bailar [nas nossas] contradições, para que nossa compreensão não se mutile e não nos enforque na hipocrisia, para que não anunciemos liberdade mas oferecendo cabresto” (Pedagoginga, Autonomia e Mocambagem, p. 17). Parente próxima da Pretagogia, a escrita de Allan da Rosa é dessas inúmeras elaborações intelectuais que escapam à matriz limitada que sustenta a convicção de sujeitos como Marco Antonio Villa, que se só conseguem tratar como desatino e heresia aquilo que não reflete a si mesmos.

Escritos com tinta batizada de cerol, as tramas de palavras de Allan da Rosa grudam e cortam interpretações rasteiras a respeito das pessoas, famílias e espaços da chamada periferia, que para muitas/os de nós é o centro do mundo, o pior e o melhor dele. Os contos dialogam entre si não apenas por meio de personagens que aparecem em diferentes histórias e situações, mas também tendo como referencial as possibilidades e impossibilidades de proteção, afeto, contato e cuidado entre gerações de pessoas representadas. Nesse sentido, justamente por garantir a seus sujeitos ficcionais características humanas, não espere encontrar nas páginas do livro um equilíbrio acalentador entre dor e alegria. Como na vida das pessoas de carne e osso, não é sempre que se tem a mesma quantidade de arroz e feijão no prato. Mas o fato é, tal como os tais córregos poluídos que ainda margeiam certas sequências de casas, de que gosta de falar Allan, as pessoas seguem, enquanto não desaparecem.

Reza de Mãe carrega, portanto, um forte potencial didático e pode muito bem servir nas salas de aula como um recurso outro que as tão importantes letras e músicas de rap e outros versos da literatura afro-brasileira contemporânea. Afinal, mesmo sendo a produção e a publicação de poesias menos interditadas, não é de hoje que há investimentos na escrita negra em prosa. Uma medida desse empenho se acompanha nas edições dos Cadernos Negros dedicadas a isso desde os anos 1980. Sem falar das obras individuais de escritores/as como Oswaldo de Camargo e Conceição Evaristo, cujo o livro Olhos d’Água conquistou o terceiro lugar do 57º Prêmio Jabuti (2015) na categoria Contos e Crônicas. De tal sorte, em tempos de esforços de negação da legitimidade de temas, perspectivas e pessoas incomuns ao alegado centro, é hora de investir na ampliação de nosso conhecimento pelas escritas negras e periféricas. Fica, portanto, o convite para se chegar à nova criação do capoeira Allan da Rosa.

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O poder da criação

Gosto de ser professora. Meus caminhos profissionais me levaram por outras veredas também, mas a sala de aula tem sido a mais constante, aquele lugar em que encontro sentido para as coisas que estudo e pesquiso. E gosto muito de participar da formação de professores, de História principalmente, e ver como aquilo que a gente constrói, sonha e cria no campo do conhecimento é transformado em um saber próprio que o docente produz ali, naquele lugar quente e complexo de encontro com os estudantes da Educação Básica. O quente aqui não se refere às agruras do clima, mas ao calor do debate e da criação.

Evidentemente, não vivo num idealismo piegas que me faz ver só campos floridos no trabalho do professor. Sei que esses profissionais, em sua maioria, tem um dia a dia duríssimo, e são muitas vezes desrespeitados por seus alunos, colegas e empregadores. A luta é cotidiana e não sem razão muitas vezes o enfrentamento das dificuldades gera o adoecimento, o desânimo e até o abandono da profissão. Todos os dias vários talentos para o magistério são perdidos, por não se sentirem capazes de enfrentar as durezas da profissão. O que fazer quando a falta de mínimas condições, de salários dignos, de efetivo apoio de gestores faz de tantos projetos para o ensino sonhos fracassados?

Não são apenas as frases bonitas colocadas nas redes sociais e murais da escola no dia do professor que vão conseguir animar a rapaziada. Homenagear é bom, celebrar é bom, e flores e bombons nunca são demais, mas o que pode significar a decisão entre desistir e seguir, entre seguir arrastando uma opção profissional da qual se orgulha, mas que esbarra numa realidade desgastante, tem que ser mais. Tem que trazer reconhecimento, e abrir novas possibilidades aos professores – de mostrarem, inclusive, que o que fazem, em meio a todas as dificuldades, é de uma qualidade excepcional. E não por que são heróis ou sacerdotes abnegados de um trabalho missionário. Mas, por que se fortalecem na sua própria capacidade de atuar em sala de aula. Criar novos modos de se aprender e ensinar é uma forma de resistir, é contrapor-se ao rolo compressor da mediocridade. E isso acontece.

E de onde eu consigo tirar tanto otimismo nesse contexto temerário? Afinal, estamos em tempos de projetos de mordaça ao professor, de denuncismo na escola, de cerceamento ao livre exercício de pensar e questionar – sem o qual nada se aprende. O ensino de História em especial tem se tornado alvo dessa onda reacionária que pretende atingir a livre navegação do pensamento em sala de aula. Os conteúdos de questionamento e de crítica inerentes ao saber histórico escolar são alvo preferencial daqueles que jogam no campo do obscurantismo, do racismo e da intolerância.

Felizmente, tenho boas notícias. A primeira turma do Mestrado Profissional em Ensino de História que conclui agora o curso apresentou os mais diversificados e estimulantes resultados daquilo que um investimento no professor poderia trazer. Os trabalhos finais de curso defendidos frente às bancas examinadoras trouxeram consistência teórica e criatividade que funcionam como sinais inequívocos de esperança. Foram dois anos de trabalho duro, com carga de disciplinas pesada e muitos debates em sala. Propostas de trabalho articulando textos teóricos e experiências práticas nasceram do dia do curso, desafiando os professores e estudantes.

E o que tivemos como resultados? Alguns exemplos, só para dar uma ideia: a produção de desenhos animados para se trabalhar com educação para relações étnico-raciais no ensino de História no ensino fundamental; um site com sugestões de atividades com o uso de canções da música popular brasileira (sambas) no ensino de História no ensino médio; a partir da trajetória pessoal e profissional de dois artistas plásticos negros do Brasil oitocentista, surgiu uma proposta de trabalho com diversas atividades para se conhecer esses personagens e discutir a relação entre ensino de história e representatividade afro-brasileira; uma reflexão sobre a laicidade do ensino por meio de estudos de casos de escolas situadas em territórios religiosos de filiação distinta; elaboração de metodologias e estratégias para ensino de História no campo da Educação Patrimonial; produção de um documentário para servir como uma visita virtual ao sítio histórico e arqueológico do Cais do Valongo, candidato a patrimônio da humanidade; uma proposta de trabalhos com ensino de História numa comunidade quilombola no Tocantins… entre tantos outros, e há muitos mais em finalização. Esses produtos são acompanhados por uma sólida reflexão teórica, em que o propor a fazer está articulado a pensar o fazer, e um só se realiza por meio do outro.

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Alessandro Paz, Joana Darc Ribeiro e Lucas Moreira Calvo: professores do ProfHistoria festejando conclusão de seus trabalhos finais de mestrado

Quando vejo e conheço esses trabalhos sinto que estamos cerrando fileiras. Não nos rendemos, nem vamos. O poder transformador dessas criações dos professores do ProfHistória não nos deixa entregar o jogo. Como se trata de um mestrado em rede nacional, esses trabalhos vêm de diferentes partes do Brasil, ou seja, têm professoras e professores produzindo ideias e reflexões sobre o campo e criando alternativas para o ensino de História em muitos lugares nesse nosso país. E isso tudo também quer dizer que nas universidades há outros docentes também empenhados em fazer com que aconteça, orientando, estimulando, acompanhando essas histórias. E o melhor: essa foi a primeira turma, e a segunda turma está aí, chegando junto, ainda que sem as mesmas condições até agora (que venham as bolsas para todos os professores da rede pública, como ocorreu na primeira!), e vem mostrando com força a que veio.

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Ana Luiza Ribeiro Garcia realizando exposição sobre seu trabalho final de mestrado (um documentário sobre o Cais do Valongo, para uso em sala de aula) no encontro Narrativas do Rio, na Casa da Ciência da UFRJ

E fica ainda mais bonito quando a gente vê que há movimentos próximos a esses acontecendo em outras partes desse mundo, que o saber que se cria em sala de aula é percebido não só como um conhecimento a ser respeitado, como que para os estudantes que vivem essas experiências pedagógicas pensadas e elaboradas num sentido do questionamento frente à realidade, da transformação e autonomia do pensamento, a escola e o aprender vira outra coisa – muito melhor.

Na Martinica, professoras de escolas da rede pública levaram aos seus estudantes de ensino fundamental aspectos da história da escravização de africanos, considerando a presença fundamental dessas pessoas na história da ilha e das Américas. Sem deixar de passar pelo sofrimento e dor, e considerando as iniciativas e resistências e, sobretudo, a força vital de nossos antepassados, propuseram que as crianças, por meio da arte e poesia, representassem essas histórias. O resultado não poderia ser mais comovente e belo, principalmente por que foi apresentado por elas e eles, ocupando de forma afirmativa e protagonista seu lugar de criadores. No Espaço Museu Domaine de La Pagerie, nas cercanias da cidade de Fort de France, alunos das escolas de ensino fundamental Sarrault, Long Pré, Ilex Sixtain e Marius Hurrard apresentaram seus olhares sobre a história da escravidão. E como expositores, falaram sobre seus trabalhos.

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Cartaz da exposição em que estudantes do Ensino Fundamental da Martinica apresentaram seus trabalhos literários e artísticos sobre a história da escravidão africana

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Alunos do Ensino Fundamental de uma escola pública na Martinica apresentam seus olhares sobre a escravidão a partir de produção artística e literária

Conhecendo a eles e as suas professoras deu para juntar com a riqueza dos resultados dos alunos do ProfHistoria e acreditar que estamos aí, no mundo. E sabemos que ainda há muitas experiências sendo desenvolvidas no Brasil, em escolas e outros espaços educativos. Temos que nos conhecer mais.

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Manuela Yung-Hing, Diretora do Museu Domaine de la Paigerie apresenta professoras e estudantes que realizaram a exposição “Olhares sobre a escravidão”

PS (31/10/2016). Resistir à onda conservadora que se vê cada vez mais ameaçadora no Brasil, mais do que uma postura necessária, torna-se um compromisso com a liberdade e com a vida. Vamos que vamos: que os tambores soem cada vez mais fortes, seja no Brasil, na Martinica, ou em África.

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Produção artística dos estudantes de Ensino Fundamental da Martinica. Algo semelhante pode estar sendo realizado nas nossas salas de aulas hoje, por tantos professores que se atrevem a tocar em tão delicado tema. Reparem: a imagem do escravizado é marcada por palavras de revolta, de insubmissão e de negação da sujeição. 

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Espelho, espelho meu: Raissa Santana e uma coroa para chamar de nossa


Eu estava sentada no colo de minha avó Leonor, uma das ancestrais na qual ergo minhas costas, quando assisti Deise Nunes receber a coroa de Miss Brasil, na narração de Silvio Santos. Aquela noite de domingo de 1986 foi diferente de todas as outras. As adultas permitiram que as crianças da casa assistissem televisão até mais tarde. Lembro de minha mãe, Sonia (em memória), mudando de tempos em tempos a TV de canal em busca de mais notícias. A cada pio mirim recebíamos um psiu coletivo das Pretas do clã. Na segunda-feira, que aprendi desde cedo, tratar-se de “dia de branco” (eita contradição!), a história foi outra. Na hora do recreio, eu, menina de sete anos, educada em uma escola branca do subúrbio, fui a Deise. A brincadeira era outra. A Macaca autopromoveu-se Miss Brasil da escola.

Passaram-se três décadas, ou nas palavras da vitoriosa Raissa Santana, um “jejum de trinta anos”, até que uma segunda Mulher Negra conquistasse o título de soberana da beleza. E neste tempo não tivemos domingo, nem dia santo. Tornei-me professora universitária (diga-se de passagem doutora em história das mulheres e da beleza negra) e assim como eu milhões seguimos lutando cotidianamente em espaços variados, forjando caminhos possíveis para o reconhecimento das belezas de quem somos e das histórias que carregamos.

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Fotografia: Divulgação

Em um país em que nós (52% da população) ocupamos a base de todas as estatísticas, ser Miss Brasil importa, como muito bem narrado por Flavia Oliveira. Conquistar a coroa, símbolo político por meio do qual costumamos narrar nossos cabelos, representa uma forma de combate às mortes simbólicas que vivenciamos desde a gestação. Mortes em vida que envolvem “torcida” para que nasçamos com pele mais “clara” e cabelo “melhor”, ofensas a cabelos crespos e feições grossas, hipersexualização de corpos, subestimação da capacidade intelectual, perseguição às religiões que praticamos. Agora mesmo estou a auxiliar uma estudante de Pedagogia a encontrar uma instituição de educação formal para realizar seu estágio porque devido ao turbante e aos fios de conta, que representam a sua fé, a jovem já perdeu a conta de quantas vezes ouviu: “Não há mais vagas”.

Evidentemente que por ser quem sou e pelo tipo de trabalho que desenvolvo, concordo com a ideia de que os concursos de miss reproduzem o machismo, o patriarcado e os padrões de beleza hegemônicos, que são alcançados à custa de uma série de violências contra as mulheres desde o século XIX. Ao mesmo tempo, por ter a academia – um mundo branco, masculino e eurocêntrico, como lugar de inserção, não desisto de me perguntar: quais os caminhos possíveis para conquista do protagonismo negro em estruturas indiscutivelmente opressoras?

A primeira coisa que me vem à cabeça e pela qual sou absolutamente compromissada é a necessidade de construirmos nossos próprios espaços de formação e representação. O trabalho que realizamos no Grupo de Estudos e Pesquisas Intelectuais Negras UFRJ é apenas um exemplo.

Para que nossos espaços se fortaleçam, se não todas, algumas de Nós, precisamos também conquistar visibilidade e reconhecimento nos lugares hegemônicos. Não há como fugir, mas há como transgredir. Um exemplo recente encontra-se na minha (in) tensa participação como uma das autoras do livro Mulheres: um século de transformações, publicação em homenagem ao Caderno Ela, o qual já sabemos não nos representa.

Nas últimas três semanas, minhas noites de quinta-feira foram dedicadas a discutir com a equipe do suplemento e as organizadoras da obra, os efeitos catastróficos que a nossa invisibilização em um veículo de comunicação de grande porte gera para a comunidade negra: um crime semanal. Há quem acredite tratar-se de perda de tempo, desgaste desnecessário… Por meu turno, penso que têm coisas que só nós podemos fazer por nós. A quem cabe denunciar nossa invisibilização na exposição em homenagem à “mulher brasileira”, realizada no Espaço Ipanema? Quem deve proteger a história de Carolina Maria de Jesus, narrando o quão desrespeitoso é escolher retratá-la retirando água de um poço? Em um país racista, em que aprendemos a valorizar a branquidade e rejeitar a negritude, quem, se não Nós, para se organizar e reivindicar que as redações de jornais contratem profissionais negros?

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Fotografia: Carolina Maria de Jesus, capa do Níger, Coleção Oswaldo de Camargo. Em 1960,  a equipe editorial do jornal negro cuidou de eternizar a imagem da mineira de Sacramento, como autora, preterindo as cenas de subalternidade. Agradeço a Ana Flávia Magalhães Pinto por compartilhar a imagem.

Após muitos confrontos, na semana seguinte, pudemos ver também Thais Araújo representadas na exposição. E, é óbvio que este tipo de retratação é insuficiente, mas é um caminho que também precisa ser trilhado. Após a escuta sensível da editora Renata Izaal, saímos de lá comprometidas com a manutenção dos diálogos com o Caderno Ela. Por que? Somos protagonistas do mercado consumidor brasileiro (em 2014 movimentamos 32 bilhões de reais). Além disso e não menos importante: como educadora, lembro sempre que é o jornal O Globo que chega a todas as bancas. Que é dele que as crianças pretas recortam as imagens para confeccionar os murais das escolas. Que é este o impresso disponível para leitura nos lugares em que trabalhamos, inclusive na casa das patroas…

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Exposição Mulheres: um século de transformações, Espaço Ipanema,  06/10/16.

Transgredir passa por colocar a margem no centro com nossas próprias mãos. Passa por questionar noções universais de mulher, raça, beleza. Articular marcadores sociais, reconhecendo que as experiências de gênero são distintas a depender do grupo racial a que pertencemos, torna possível compreender que para Mulheres Negras, historicamente narradas como puro corpo, sem alma e humanidade, ser eleita símbolo nacional de beleza é algo que, se devidamente trabalhado, pode se tornar uma lança para as novas gerações, que encontrarão na imagem de Raissa, a baiana de 21 anos (e que representou o estado do Paraná), um espelho possível para o amanhã.

Não sabemos (nem precisamos) mensurar em número o impacto do primeiro lugar no pódio assim como da presença de seis candidatas negras participando no Miss Brasil 2016, mas devemos estar sensíveis ao fato de que milhões de meninas negras no Brasil tiveram no sábado, dia 01/10/16, validado o seu direito de sonhar. Isso porque por conta do racismo, estrutura que não criamos, mas a qual estamos sujeitas, esta possibilidade inexiste. Nossas meninas permanecem violentadas, sendo ensinadas a projetarem o trabalho doméstico como destino. Seguimos em vigílias noturnas, sem saber ao certo se nossos meninos pretos voltarão para casa.

Eu realmente acredito que fazermos-nos visíveis a partir de nossos corpos e pontos de vista em concursos de beleza, na mídia, no mundo acadêmico e demais espaços de prestígio é de suma importância para combatermos o extermínio de nossa juventude, a esterilização à revelia de nossos corpos, o encarceramento de nossa comunidade.

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Fotografia: divulgação. Da esq./dir. Deise D’Anne (Miss Maranhão); Raissa Santana (Miss Brasil); Beatriz Nalli (Miss Espírito Santo); Sabrina Paiva (Miss São Paulo); Vitoria Esteves (Miss Bahia); Mariana Theol (Miss Rondônia).

Apropriar-nos do potencial político que a categoria de beleza negra evoca significa materializar o ato de lutar para sermos quem quisermos ser, um direito relacionado à nossa história de pertencimento a uma comunidade negra, plural em seus modos de ser, sentir e existir. Não somos todas Raíssa, mas a coroa de Raissa é de Todas Nós.

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Debate”Empoderamento feminino: um debate sobre a trajetória da mulher na moda”, ao fundo a jornalista Melissa Jannuzzi, consultora de moda. (Fotografia: Amana Mattos, 06/10/16).

E para terminar, a Miss Brasil Raissa por Raissa, já que suas falas andam sendo recortadas para atender a ideais de democracia racial que não nos pertencem:

“Eu estou muito emocionada. Isso aqui é uma mistura de emoções muito grande. Eu não esperava ganhar esse título, mas estou muito feliz por ter conquistado esse título e por poder representar a beleza negra e incentivar meninas que têm o sonho de ter alguma coisa, de conquistar, de ser uma modelo, de ser uma miss… Agora, quero incentivar essas meninas e mostrar para elas que elas podem”.

 

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Seminário Ventres Livres? Mulheres Negras e Maternidades 28/09, 30/09, 01/10 no Museu da Maré

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20 de novembro: Consciência Negra. 13 de maio: Abolição da Escravatura. 25 de julho: Mulher Negra Afro-Latina Caribenha. Mais do que feriados ou simples celebrações, estas datas têm sido apropriadas pelos movimentos sociais negros como dias para visibilizar demandas e pautas relacionadas às lutas contra o racismo no Brasil.

A construção de calendários de mobilização é marcada pela participação de diferentes organizações e sujeitos, com intepretações também diversas acerca da história e do legado da escravidão e do pós-abolição. Um dos principais exemplos de valorização do protagonismo negro está na tessitura do 20 de novembro como contraponto ao 13 de maio e à princesa Isabel como “Redentora”. E por que não pensar o 25 de julho, sancionado pela então Presidenta Dilma Roussef Dia Nacional Tereza de Benguela, como contraponto ao 8 de março, quando é celebrado, dentro de uma perspectiva universalista, o Dia Internacional da Mulher?

Nesse contexto de disputas em torno de datas e símbolos negros, qual seria o lugar da Lei Rio Branco? Popularmente conhecida como “Ventre Livre”, a lei de 28 de setembro de 1871 determinava em seu primeiro artigo que “os filhos de mulher escrava que nascerem no Império desde a data desta lei, serão considerados de condição livre”. Parte da violenta história da escravidão, tal legislação relaciona-se diretamente aos limites e possibilidades impostos para o exercício da maternidade de mulheres negras escravizadas e libertas.

Se por um lado os direitos senhoriais de tutelar filhas e filhos de escravas com menos de oito anos, de utilizar os serviços do “menor até os 21 annos de idade” e de “criar e tratar” as crianças representaram políticas senhoriais de precarização da liberdade e manutenção do poder patriarcal, por outro, a existência de famílias negras durante todo o período escravista e o empenho de mães em proteger e permanecer ao lado das crianças e jovens gerados em seus ventres evidenciam a resistência de mulheres negras. Dentro de situações limítrofes, elas criaram sentidos específicos de maternidade, informados por suas identidades desiguais de gênero e raça.

Em um esforço de articulação passado presente e identificadas com os feminismos negros interseccionais, apostamos em uma ideia de “Ventre Livre” que transcenda a temporalidade da escravidão, conferindo espaço para a problematização do termo, propositalmente grafado no plural e na forma interrogativa – Ventres Livres? 

O Grupo de Estudos e Pesquisas Intelectuais Negras convida-nos a pensar quais são os Territórios dos Ventres Livres diante:
– Das experiências de cuidado e maternidade entre mulheres negras de classes e territórios diversos.
– Da patologização das identidades de gênero de pessoas trans.
– Da perpetuação do trabalho doméstico.
– Do extermínio das juventudes negras.
– Do alarmante crescimento do sistema carcerário.

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Ancoradas na principal marca do grupo – a valorização das “Escritas de Si”, durante três dias, 50 Intelectuais Negrxs de diferentes territórios do Rio de Janeiro pautarão questões organizadas em três eixos: Educação Infantil, Masculinidades e Sexualidades. A programação conta também com a Companhia de Teatro Paralelas, que encenará a Peça Umdoum e com o Espaço Erê – Rede de Cuidados Infantis Cooperativos, que oferecerá brincadeiras, contações de histórias e jogos inspirados nas culturas iorubás para acolher as crianças enquanto os adultos participam das rodas e demais atividades.

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Encerramos ressaltando que este Seminário, idealizado em conjunto com  Janete Santos Ribeiro, inaugura a parceria com o Museu da Maré, coordenado Profa. Claudia Rose. Isso porque enquanto Historiadoras Negras entendermos que a favela é o nosso grande quilombo, um espaço de construção de identidades, produção de saberes,empreendedorismos e resistências que dizem respeito às histórias das populações negras, como tão bem nos ensinou a historiadora Beatriz Nascimento, que não por acaso teve sua produção silenciada em nossa historiografia.

“Você pode substituir Mulheres Negras como objetos de estudo por Mulheres Negras contando a sua própria História”. #ficaadica #intelectuaisnegrasufrj

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Programação completa disponível em: https://www.facebook.com/intelectuaisnegrasufrj/posts/1778917429052830

Inscreva-se: https://docs.google.com/forms/d/e/1FAIpQLSeJL4FS6wp3TYPMoO2mc3iBJMeJsv95D_loBIgdb_RrU3oQcA/viewform?c=0&w=1

INFORMAÇÕES: intelectuaisnegras@gmail.com

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Pensamento Único em Tempos de Temer

Em respeito às histórias de vida de Diego Vieira Machado e Joselita de Souza

No último dia 8 de julho, o presidente interino Michel Temer recebeu uma delegação de 33 lideranças evangélicas, entre os quais deputados e representantes da Confederação dos Conselhos de Pastores e Evangélicos do Brasil (Concepab), do Fórum Evangélico Nacional de Ação Social e Política (Fenasp) e da Aliança de Pastores Evangélicos do Brasil (Apeb). A reunião tinha pauta bem definida: “o combate à ideologia de gênero” e “a defesa da família”. Conforme divulgado pelo deputado distrital Rodrigo Delmasso (PTN), autor do projeto da chamada escola sem partido que tramita na Câmara Legislativa do DF, foi entregue “uma carta da Concepab […] reafirmando e pedindo compromisso para que o governo Temer retire qualquer tipo de questão relacionada à ideologia de gênero. […] O presidente se comprometeu em encaminhar isso ao ministro da Educação para que isso [‘a ideologia de gênero’] possa ser banido das escolas do nosso país”. O bispo Robson Rodovalho, presidente da Concepab, saiu bastante confiante do encontro: “O presidente nos recebeu e foi inteiramente solícito com as nossas reivindicações. Acreditamos que vamos ter êxito”.

Reunião Políticos Evangélicos com Temer

Presidente interino Michel Temer recebe presidente da Concepad e lideranças evangélicas, 8/7/2016. Foto: Beto Barata/PR

 

Michel Temer evidencia mais uma vez com quem quer dialogar e em benefício do quê. Não há espaço para a pluralidade. Não fosse a presença de uma mulher branca e um homem negro, seria mais reunião restrita a homens brancos, voltados a seus próprios interesses. Convém lembrar que, sob o argumento da agressão à moral e à liberdade de consciência, os proponentes, defensores e propagadores do movimento “escola sem partido”, fundado em 2004, pelo advogado Miguel Nagib, também estão atuando no sentido de dificultar o ensino de história e cultura africana, afro-brasileira e indígena, bem como inviabilizar o debate sobre educação antirracista e outros aspectos que levam a uma reflexão sobre as desigualdades sociais no país.

Não por acaso, nessa mesma semana, no rastro da repercussão acerca do ofício diretamente enviado pela deputada Sandra Faraj à direção do Centro Educacional n. 6 de Ceilândia, solicitando “esclarecimentos” e “providências legais cabíveis” por considerar abusiva a abordagem de temas como sexualidade e homofobia numa aula de Biologia, Delmasso ainda chamou atenção para si. É que em dezembro de 2015, ele também tomara a mesma atitude dirigindo-se à diretora do Centro Educacional n. 7 de Ceilândia, por considerar que uma atividade teatral desenvolvida na escola violaria o artigo 5º da Constituição, promovendo proselitismo religioso. “A violação aos dispostos supracitados acima, [sic] se deu a partir do momento em que, alunos foram obrigados, de maneira autoritária, a fazer danças e vestirem roupas que lembram a religião do Candomblé” – consta no Ofício n. 001/2015 da Frente Parlamentar de Diversidade Religiosa, assinado por ele. O caso não gerou muitos comentários à época. Agora, com uma maior audiência, cabia retomar o assunto.

Rodrigo e Michel 8.7.2016

Deputado Rodrigo Delmasso e presidente interino Michel Temer, 8/7/2016. Fonte: Facebook.

Ainda que tomadas como coisa de lunáticos por alguns de nós, essas propostas e ações, que demonstram como perseguição religiosa, racismo,  misoginia e homofobia caminham juntos, não apenas contam com apoio do presidente em exercício, como encontram respaldo e ressonância nas ideias e posicionamentos de indivíduos e grupos considerados democráticos e bem formados. Acredito, portanto, que valha a pena gastar algum tempo procurando refletir sobre a viabilidade da ascensão de propostas tão abertamente ameaçadoras aos direitos garantidos pela Constituição de 1988, num momento da história do país em que eles começavam a se consolidar, engendrando uma considerável, embora não profunda, alteração nos termos e nos sujeitos do debate sobre os significados da cidadania e da democracia no Brasil.

Em editorial intitulado “História Oficial”, de 14 de janeiro de 2003, o jornal Folha de São Paulo manifestou sua opinião a respeito da aprovação da Lei n. 10639:

“A ideia de combater o racismo pela educação pluralista faz sentido. O mesmo não se pode dizer da proposta de fazê-lo baixando uma norma que obriga todas as escolas, de ensino fundamental e médio, pública e particulares, a ministrar aulas de histórias e cultura afro-brasileira. […] Grandes mudanças pedagógicas, não importa o quão justas e urgentes seja, não se fazem por golpes de caneta, pela aplicação linear e irrefletida de palavras de ordem. A luta contra o racismo na educação é um processo. E um processo que já começou. Os bons livros de didáticos de hoje abordam a questão das etnias no Brasil de uma maneira muito mais equilibrada e democrática do que o faziam poucos anos atrás”.

Difícil ler essas frases e não sucumbir ao impulso de compilar essa estrutura argumentativa com discursos de debatedores oitocentistas que admitiam o mal da escravidão, mas rejeitavam qualquer proposta de intervenção direta do Estado nos negócios dos escravistas, muito menos a ruptura imediata com aquele sistema de exploração do trabalho. Assim como houve quem acreditasse que os senhores escravistas seriam capazes de por sua própria vontade e consciência dar fim ao entrave que impedia uma participação honrada do Brasil no concerto das nações civilizadas, acreditava-se que, em 2003, gestores, editoras, professores e toda a comunidade escolar estavam inevitavelmente direcionados a promover uma educação livre de preconceito raciais e até de outras ordens.

É interessante perceber como naquele momento o editorialista da Folha se valeu de algo que está disposto na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, para fortalecer o seu argumento. Como destaca, a LDB “dá ampla liberdade para as escolas e comunidades fixarem seus currículos de acordo com suas realidades regionais e históricas”. De tal sorte, ele estaria apto a defender que: “Para uma escola do Norte ou do Centro-Oeste, por exemplo, a história dos índios pode ser mais relevante do que a dos negros. Já para a comunidade polonesa do Paraná, pode ser mais interessante valorizar a história do Leste Europeu”. O ensino de história e cultura africana e afro-brasileira num país como o Brasil seria algo a ser tratado como de interesse apenas da população negra ou das cidades e estados com expressiva presença negra?

Essa visão limitada do que seria a educação nacional ou a educação pluralista dificilmente alcançaria os propósitos de uma educação antirracista aos moldes do que motivou a proposta e a aprovação da lei − um longo processo, diga-se de passagem. Esse, aliás, talvez seja o principal entrave à implementação das Leis 10.639 e 11.645. Como observou a ex-ministra Luiza Bairros, da Seppir, em 2013, o ponto central da lei é que ela “pede para o Brasil modificar a maneira como ele equilibra as matrizes culturais que formaram o país. […] implementar ou não implementar a lei remete a uma disputa do ponto de vista de valores e de significados profundos da formação do Brasil”.

De fato, a despeito das boas ou más intenções, os entendimentos sobre o que constituem essas novas abordagens e conteúdos de história e cultura africana, afro-brasileira e indígena nas escolas mantêm estreita ligação com a nossa capacidade de lidar com as peculiaridades do racismo à brasileira. Sendo assim, nem chega a surpreender o fato de muitas pessoas absorverem com certa facilidade a redução das mais variadas expressões da cultura e história dos afro-brasileiros a uma dimensão religiosa, e não reagirem de pronto a atitudes como a do deputado Delmasso. Muitas vezes, até mesmo falar sobre ações de resistência à escravidão tem sido entendido como pretexto para se professar as religiões de matriz africana em sala de aula.

2016-07-10 (1)

Performance teatral no Centro Educacional n. 7 de Ceilândia-DF, dezembro de 2015. Fonte: Facebook

 

Isso, por certo, mantém estreita relação com o que está sendo defendido no Projeto de Lei n. 867, de 2015, apresentado à Câmara Federal, pelo deputado Izalci (PSDB-DF), político abertamente comprometido com os interesses e demandas das escolas particulares, tal como demostrou em seu apoio ao 1° Congresso Nacional sobre a Doutrinação Política e Ideológica nas Escolas, que ocorreu em Brasília, em 24 de julho de 2014, numa ação da Federação Nacional das Escolas Particulares (Fenep). Numa interpretação bastante controversa da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, busca-se legitimidade para uma perspectiva única e de não diálogo entre os diferentes: “São vedadas, em sala de aula, a prática de doutrinação política e ideológica bem como a veiculação de conteúdos ou a realização de atividades que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes”.

De tal sorte, tendo em vista os casos de resistência a implementação das Leis 10.639 e 11.645, mais do que inaugurar uma prática de censura e cerceamento das práticas educacionais, o projeto vem a dar lastro jurídico às investidas conservadoras já presentes no cotidiano escolar. Não fosse isso suficiente, o post “Ideologização do programa escolar em prejuízo dos estudantes”, é cristalino ao exprimir a opinião do/dos responsáveis pelo site “Escola sem Partido – Educação sem Doutrinação” acerca da temática. Ali, antes de reproduzir o conteúdo da Lei n. 11.645, há a seguinte observação: “Nada contra o estudo objetivo dessas matérias. É evidente, no entanto, que (a) esse estudo não será objetivo, mas pautado pelos critérios do politicamente correto; e (b) o tempo dedicado a assuntos e disciplinas muito mais relevantes para os alunos terá de ser sacrificado”.

O nível do debate, mais uma vez, fica rente ao chão e nem é preciso perguntar o que se entende por “estudo objetivo”, “assuntos e disciplinas mais relevantes aos alunos”. De todo modo, é tempo de pensar a respeito das correspondências entre determinados discursos.

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